Músico que se matou após espancar mulher com quem se relacionava foi homenageado pela família Bolsonaro e outros políticos, como Joice Hasselmann, que o chamou de ‘professor’; para especialistas, homenagens legitimam violência contra a mulher
Um homem casado espanca uma mulher, com quem se relacionava de modo extraconjugal, até que ela perca a consciência. Em seguida, ele comete suicídio. A mulher está internada com hematomas e passará por cirurgia após o inchaço no rosto, provocado pelas agressões, passar. A morte de Tales Alves Fernandes, 25 anos, chamado de Tales Volpi ou MC Reaça, protagonista da violência no dia 1/6, gerou homenagem do presidente Jair Bolsonaro (PSL) e de seus filhos, além de outros políticos. Ao ignorarem a vítima das agressões e lamentar a morte do funkeiro, especialistas consideram que o capitão reformado do Exército e os parlamentares estimulam a violência contra a mulher.
MC Reaça produziu músicas em apoio a Bolsonaro na campanha eleitoral, época em que ganhou notoriedade do político e seus apoiadores. O conteúdo das letras expõe machismo, críticas a políticos de esquerda e exalta Olavo de Carvalho ao mesmo tempo em que deprecia o educador Paulo Freire. “Dou pra CUT pão com mortadela / E pras feministas, ração na tigela / As mina de direita, são as top mais bela / Enquanto as de esquerda tem mais pelo que cadela”, diz trecho do “Proibidão Bolsonaro”, sua principal autoria.
Em uma rede social, o chefe do Executivo disse que o artista será lembrado pelo dom, pela humildade e por seu amor pelo Brasil. “Tales Volpi, conhecido como Mc Reaça, nos deixou no dia de ontem. Tinha o sonho de mudar o país e apostou em meu nome por meio de seu grande talento. Será lembrado pelo dom, pela humildade e por seu amor pelo Brasil. Que Deus o conforte juntamente com seus familiares e amigos”, escreveu Jair Bolsonaro, no mesmo dia da morte.
Outros parlamentares também prestaram homenagem ao artista, incluindo dois filhos de Bolsonaro. Eduardo Bolsonaro, deputado federal (PSL-SP), postou uma foto ao lado do cantor durante o segundo turno eleitoral. “Fica a imagem de um homem alegre, trabalhador, gente fina e criativo. A sua força deu resultado! Vai com Deus Tales Volpi ‘Mc Reaça'”, escreveu o deputado, que aparece em vídeo compartilhado no Facebook sendo chamado de “fã” pelo funkeiro. Já Carlos Bolsonaro, vereador (PSL-RJ), publicou um vídeo em que o MC sai em defesa de Jair Bolsonaro. “Obrigado sempre pela força! Descanse em paz!”, disse o vereador.
A deputada federal Joice Hasselmann (PSL-SP) também se manifestou sobre a morte de MC Reaça. “Perdemos um jovem, um professor, um músico, um ativista. MC Reaça deixou um vazio. Que Deus conforte a família de Tales”.
As homenagens ao agressor são criticadas por profissionais que atuam no combate à violência contra a mulher. Em entrevista à Ponte, a advogada Marina Ganzarolli, cofundadora da deFEMde (Rede Feminista de Juristas) e coordenadora da Comissão da Diversidade Sexual da OAB-SP (Ordem de Advogados do Brasil), condenou as falas, principalmente as do presidente.
“É gravíssimo, porque você tem a maior autoridade executiva do país legitimando não só um discurso de ódio, mas fazendo uma apologia quase a um crime. Não é uma apologia direta, mas, no momento em que você endossa e corrobora alguém que acabou de cometer uma tentativa de feminicídio, alguém que fala da violência contra a mulher em suas letras, você corrobora com a ideia de que a violência contra a mulher é natural. Você naturaliza a violência contra a mulher”.
Os registros de violência contra a mulher vêm crescendo nos últimos anos. De acordo com um levantamento encomendada pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública) e feita pelo Instituto Datafolha, realizado em fevereiro de 2019, dezesseis milhões de mulheres sofreram algum tipo de violência no último ano. Além disso, mais de 75% das vítimas conhecem o agressor e 42% dos casos acontecem dentro de casa.
Em nota enviada para a imprensa, o HAOC (Hospital Augusto de Oliveira Camargo), em Indaiatuba (SP), afirma que a jovem passará por cirurgia, mas ainda não há data definida, por causa da gravidade dos ferimentos, e confirma que a mulher não estava grávida – esse era um dos motivos levantados para as agressões e consequente suicídio.
“Somos impedidos por lei de comentar detalhes por se tratar de uma questão de sigilo médico/ paciente, porém, devido rumores, a vítima autoriza que seja esclarecido que, ao dar entrada na unidade hospitalar, foi realizado exame Beta HCG cujo resultado é negativo, ou seja, não está grávida”, diz nota.
Para Ganzarolli, além de naturalizar a violência contra a mulher em situação de violência, a atitude do presidente legitima as ações de agressores. A advogada lembra que muitas mulheres não conseguem sair desse ciclo, porque não querem se livrar do homem e sim da violência em si. Por isso, muitas vezes mulheres agredidas retornam ao convívio com o agressor, seja porque ele é o pai dos filhos ou porque é o homem por quem a vítima se apaixonou.
“Quando o chefe do Executivo diz isso, corrobora e naturaliza a violência contra a mulher com uma fala como essa, endossando um agressor, o recado que ele passa é para os homens. É para os homens que cometem violência ou para os homens que ainda não cometem e, ao ver, se sentem legitimados, defendidos e protegidos pelo Estado para cometer. Isso é mais grave ainda. Você passa um recado principalmente para os homens, não só aos agressores, mas aqueles que podem vir a agredir, querem agredir ou têm vontade de vir a agredir”, critica Marina.
Marina também lembra dados alarmantes da violência contra a mulher no Brasil nos últimos anos. “Somos o país que mais mata mulheres trans no mundo, o lesbocídio cresceu 237% de 2014 para 2017. Então, olhando para as nossas estatísticas de violência, aquele chefe máximo do Executivo, que é precisamente o poder que cuida da gestão de política pública de saúde e de segurança no enfrentamento da violência contra as mulheres, na garantia dos direitos das mulheres, ao dizer isso, ele não só naturaliza a violência como quase faz uma apologia indireta com a violência, dizendo que ele endossa, corrobora, aprova esse tipo de conduta”, defende.
Uma pesquisa realizada entre março de 2015 e março de 2017, pelo CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), apontou que o Brasil abre um novo inquérito policial a cada três horas pra apurar possíveis casos de feminicídio.
Sergio Barbosa, filósofo e coordenador do programa de responsabilização de homens autores de violência contra a mulher do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, que trabalha com a desconstrução da violência masculina, responsabilizando os homens pelas agressões, também enfatiza que homenagens como essa estimulam mais violência.
“Claro que influencia. Quando o presidente ou qualquer outro personagem político apresenta um comportamento desse, diante das redes sociais, além de incentivar esse estímulo, dá um viés de legitimidade, culpabilizando sempre a mulher. Ela que favoreceu, ela que permitiu essa situação. Isso que é a perversidade da violência contra a mulher. A violência não é só contra a mulher, é contra as mulheres num todo”, argumenta Barbosa.
Já a promotora de justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, Fabíola Sucasas, que também é diretora da APMP Mulher (Associação Paulista do Ministério Público), acredita que é preciso ver a situação com muito cuidado. Para Fabíola, julgar o presidente por prestar condolências a alguém que morreu não deve ser o foco da discussão.
“Em um país onde o feminicídio tem sido uma das pautas mais discutidas, em um país que está em 5º lugar no ranking mundial de mortes de mulheres por razões tão especiais, é triste saber que as vítimas ainda estão em um longo processo de ter seus direitos efetivados, dentre eles o de viver livre de qualquer violência”, lamenta. “Não está aqui em jogo o sentimento de um homem que ocupa um cargo tão importante, mas a espera de que as mulheres possam receber proteção e assistência, e que a violência possa ser devidamente reprimida e também prevenida”, defende a promotora.
Para Sucasas, é importante observar que o sentimento das condolências pode não representar a escolha de um lado, o do agressor, mas somente o sentido nobre dos pêsames. “O sentimento de mínimo respeito para mulheres que se encontram nas mais variadas estatísticas das mais variadas formas de violências, praticadas muitas em nome de uma autoafirmação de masculinidade, não pode ser em nenhum momento ignorado, pelo contrário”, expõe a promotora. “É importante que, muito além do sentimento, seja um verdadeiro compromisso de que o Brasil se importa com esta realidade e que não medirá esforços e investimento para sairmos desse ranking vergonhoso”, finaliza.
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