Usada pela polícia para abordar e, em muitos casos, justificar violações, ‘fundada suspeita’ é subjetiva

    Grupo de estudo da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo mapeou em decisões judiciais o que é alegado como ‘fundada suspeita’ e concluiu que policiais criminalizam regiões, criam ‘figurinhas carimbadas’ e usam o termo ‘conduta sugestiva’ com frequência para justificar uma abordagem

    “Ao passarem pela rua Aricanduva, avistaram dois indivíduos em atitude suspeita. Em razão de se tratar de um local onde costumeiramente ocorre a venda de substâncias entorpecentes, os policiais militares decidiram abordar aqueles dois indivíduos”. Esse é o trecho do boletim de ocorrência de um caso ocorrido em São Mateus, periferia da zona leste de São Paulo, que terminou com a morte de Rafael Aparecido de Souza, irmão de um dos jovens citados como suspeitos pela PM, em abril deste ano.

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    A narrativa dos policiais traduz na prática o que um dos estudos que compõem o projeto “Quem policia a Polícia”*, desenvolvido por estudantes da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e orientado por Maria Cecilia Asperti e Thiago Amparo, concluiu: a fundada suspeita, que justifica uma abordagem policial e até mesmo busca pessoal, prevista no artigo 244 do CPP (Código de Processo Penal), é baseada em critérios subjetivos.

    Os 137 acórdãos de apelação criminal no período de 2016 a 2019 analisados pelo grupo de pesquisa mostram que a ausência de objetividade nesses critérios tem feito o Tribunal de Justiça de São Paulo endossar atitudes de abuso policial. “Esse fato, apesar de alarmante, visto a partir das lentes de um jurista, apenas retrata a realidade da segurança pública brasileira”, diagnostica o relatório produzido a partir das análises.

    O chamado “local conhecido” é usado em 27,73% das alegações de “fundada suspeita”, combinado ao “empreender fuga”, que aparece em 21,89%, e a “denúncia anônima”, que aparece em 21,17%. O “nervosismo” e a “conduta sugestiva” também são argumentos que aparecem em 16,05% e 18,24%, respectivamente. Em 22 acórdãos, os pesquisadores concluíram que não havia “fundamentação fática” para a realização da abordagem.

    “O levantamento demonstra que, primordialmente, a abordagem policial funda-se na discricionariedade do policial, fato esse que colabora para que atributos físicos e de localização do indivíduo sejam utilizados como ‘prova’ de suspeita. Sendo a revista pessoal uma exceção aos direitos de intimidade e liberdade, postulados na própria Constituição Federal, sabemos que é necessária justificação correta e devido processo legal para que possa ocorrer. Meramente morar em bairro considerado ‘conhecido pela polícia’ pela ocorrência de crimes é suficiente para tal exceção? Estão todos que moram, trabalham ou passam por esses bairros imediatamente sob suspeita e assim, sujeitos a revista pessoal a todo e qualquer momento?”, questiona trecho do estudo.

    O nosso cartunista Antonio Juniao ilustra algumas dessas situações inspiradas em trechos dos acórdãos analisados:

    O levantamento chama a atenção para alguns pontos. Um deles é a alegação de “empreender fuga”. “Mostra certo contrassenso, dado que a tentativa de fuga ocorria após a abordagem ser sinalizada pela polícia, ou seja, após a decisão de abordar”, pontuou o estudo. A outra é a descrição do “nervosismo”, por exemplo, que tendeu a ser bem enxuta e não estabeleceu mensuração objetiva para a classificação. É por situações assim que os agentes policiais acabam cometendo abusos, realizando revistas pessoais por mero ‘feeling‘ e suas ações jamais são questionadas ou revertidas. O que deveria ser exceção, vira regra.

    “Com essa ausência de critérios de controle, cria-se uma polícia que somente irá replicar preconceitos instaurados na sociedade. O fato de uma pessoa estar vestida de determinada maneira, estar em determinado local ou meramente ocupar um carro passa a ser determinante na definição de quem será abordado ou não. Cria-se um cenário no qual alguns jamais serão revistados e outros o serão regularmente, independente de conduta, e isso tudo será aceito nas instâncias superiores. Não é um problema em si haver discricionariedade policial, porém, há grande dificuldade de avaliação posterior quando nem mesmo registros do que aconteceu são acessíveis pelo público”, conclui o estudo.

    Droga é maior motivador da ‘fundada suspeita’

    Outra importante constatação foi de que de 75% dos acórdãos analisados (102) eram sobre tráfico de drogas, o que contraria o senso comum no sentido de que a abordagem policial se daria, predominantemente, em casos de porte de armas. Se inclusos os demais crimes referentes a drogas (como porte para consumo próprio), a porcentagem chega a 76,4%, enquanto os casos relativos a crimes sobre o porte de armas brancas ou armas de fogo correspondem somente a 3,7% das decisões.

    *Giovana Cavalca Meirelles Reis, Livia Barini Silva Flora, Stella Ferreira dos Santos e Felipe Cintra de Barros Ribeiro Conrado são as participantes da pesquisa.

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