Declaração do presidente mostra que ele sabe muito bem uma regra fundamental do jogo político: o poder deve ser encenado
“A imprensa tem que entender que eu, Johnny Bravo, Jair Bolsonaro, ganhou, porra”. Sim, a comparação, proferida pelo presidente do Brasil na segunda-feira (5/8), é tão risível quanto grave. Mas Bolsonaro não está louco. O recente ataque à imprensa, que culmina com agressões ao Judiciário e à OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), demonstra que o presidente está plenamente lúcido e apelando à parcela mais extrema de seus apoiadores, aqueles que justificam o autoritarismo como “medidas antissistema”. Nesse aparente destempero do presidente, é preciso entender a encenação ao seu público. Há um diálogo sendo travado ali. Bolsonaro, ao defender o filho, defende-o como a um cargo de nobreza. Naquele cenário, aprendeu sua melhor atuação: a do rei repulsivo. Aprendeu, talvez o mais importante e, por isso, o mais perigoso: a política é espetáculo.
Num dos melhores trabalhos de Antropologia já produzidos, o norte americano Clifford Geertz analisa a sociedade de Bali no século XIX. Antes da chegada dos colonizadores, a sociedade balinesa era formada por pequenas comunidades autônomas e relacionadas. Não havia concentração de poder, exceto nos rituais fúnebres do rei. Nessas cerimônias, tudo era teatral, dramático, encenado. O auge era quando as três esposas do monarca atiravam-se às chamas. Nada mais espetacular. Nada mais poderoso.
Ao estudar a sociedade balinesa, Geertz percebeu que o poder deve ser encenado. Encenado para ser compreendido. Encenado para ser exercido. Duvido muito que o nosso presidente tenha lido a obra de Geertz, mas certeza que já assistiu ao desenho do Johnny Bravo como nos confidenciou.
Fato é que com o desenho animado, talvez o presidente tenha chegado à mesma conclusão de Geertz: o poder deve ser encenado. Entendeu, por certo, seu papel como protagonista. Suspeito, porém, que a intenção de Bolsonaro não seja interpretar o musculoso e tolo personagem loiro do desenho. Acredito que em sua mente, sua atuação se aproxime mais a do tirano rude, paranoico e rodeado de inimigos malignos dispostos a usurparem sem poder. Nesta trama, os únicos a quem o protagonista pode confiar é a família real, formada pela bela rainha e pelos três intrépidos filhos e sucessores. Algo como o Vingador da “Caverna do Dragão”, se é para usar a cultura pop como referência. Um enredo conhecido e fácil ser entendido.
Pois é a esse enredo que Bolsonaro tem recorrido ao proferir seus recentes ataques à imprensa, à Justiça, à memória dos mortos pela ditadura. Ao recorrer a esse papel e a esse enredo, o presidente apela a seu público, que, fiel, o reconhece como o mocinho da história. É a esse público inflamado por teorias da conspiração, nas quais haveria um perigo comunista em curso no Brasil de 2019, que o personagem-Bolsonaro busca anuência em seus rompantes verbais e em suas posturas autoritárias.
Neste teatro, grandes baluartes democráticos como a imprensa livre, o Judiciário e mesmo a ciência são vistos como os vilões, dispostos a sacarem o mocinho de sua missão redentora. Há quem já tenha visto esse filme. Há quem tenha medo do final.
(*) Silvia Gonçalves é jornalista, cientista social e doutoranda pela UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora)