Janice Ferreira, a Preta, e Edinalva Franco receberam a visita da Comissão Arns, falaram da sensação de injustiça e da falência do sistema prisional
Desde 24 de junho de 2019, a rotina de Janice Ferreira da Silva, a Preta Ferreira, e de Edinalva Franco é dentro de uma cela que é trancada todos os dias às 17h. As militantes de movimentos de luta por moradia de São Paulo foram presas junto com outras pessoas em uma operação do DEIC (Departamento Estadual de Investigações Criminais) da Polícia Civil de São Paulo por suspeita de extorsão. Elas estão presas na Penitenciária Feminina de Santana, na zona norte de São Paulo.
Na sexta-feira (4/10), três integrantes da Comissão Arns – grupo formado por juristas, intelectuais, jornalistas e ativistas, incluindo seis ex-ministros, com o objetivo de identificar, acompanhar e denunciar casos de violações de direitos humanos – foram visitar as militantes. Segundo a socióloga e cientista política Maria Victoria Benevides, porta-voz da comissão nessa visita, foi uma tarde “muito emocionante, em que pude ver duas mulheres de militância, de fibra, que não fazem nada disso por interesse próprio, fazem pela luta social”. Acompanharam Maria Victoria, a cientista política Maria Hermínia Tavares de Almeida e a socióloga Margarida Genevois, que é presidente do honra do grupo.
“Algo que achei muito impactante foi elas reafirmarem o compromisso com a luta, inclusive dizendo que faz parte da história de vida delas a luta pela moradia, mas que também, a partir dessa experiência no cárcere, querem passar a lutar pela defesa dos direitos das mulheres presas para um tratamento digno, um julgamento justo, uma defesa adequada em função de tudo que elas estão vivendo”, afirmou Maria Victoria à Ponte.
“Elas falaram muito daquelas que não pertencem a nenhum movimento, que não têm família e que quando saem não têm nada, que tem a vida destruída pela prisão. Não tem possibilidade de emprego, são abandonadas por companheiros que tinham antes de serem presas, não tem amparo na doença, não tem onde morar. Um horror total. Elas disseram que vão continuar a luta por moradia somada a essa nova luta”, contou.
A socióloga destacou que considera um absurdo o fato de Edinalva e Preta estarem presas preventivamente há cerca de 100 dias. “Elas não oferecem nenhum tipo de perigo para a sociedade, têm uma história de luta e estão sendo vítimas de uma injustiça”, declarou.
Preta milita no MSTC (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto do Centro) e tem o ativismo no sangue, já que é filha de Carmem, liderança da luta, que também foi presa na mesma operação e solta quinta-feira passada, 3/10. Edinalva milita no MMPT (Movimento de Moradia Para Todos). Apoiadores da luta chegaram a realizar protestos contra as prisões e denunciaram o que chamaram de tentativa de criminalizar os movimentos sociais.
E não parou por aí: em julho, o promotor Cassio Roberto Conserino apresentou denúncia contra as lideranças e listou práticas de extorsão que teriam sido cometidas por Ananias Pereira dos Santos, do MLSM (Movimento de Luta Social por Moradia), implicado na queda do edifício Wilton Paes de Almeida, no Paissandu, em maio do ano passado, como se fossem práticas generalizadas dos demais movimentos de moradia.
Além disso, o promotor usou o fato de membros dos movimentos chamarem uns aos outros de “irmãos”, em parte de ligações interceptadas, como “prova” de que fariam parte da facção criminosa PCC, conforme mostrado em reportagem da Ponte.
Para Maria Victória Benevides, foi muito importante o encontro da Comissão com as duas lideranças. “O relato delas foi muito importante, de grande impacto. Nós tivemos uma ideia do que foi o início da prisão pelo Deic, quando elas foram muito mal tratadas, segundo elas, algemadas e jogadas no camburão. Passaram três dias sem comer, sem beber, dormindo no chão”, contou.
Maria Victoria destacou o quanto o período de cárcere afetou a vida das duas. Edinalva chorou bastante ao falar dos filhos. “Um largou a faculdade, o outro de 14 anos foi morar com a avó, a filha que estava estudando no exterior com bolsa voltou porque não tinha cabeça mais pra estudar”, relatou a integrante da Comissão Arns.
Preta falou para Maria Victoria sobre a sensação de injustiça e estar privada de liberdade sem poder seguir trabalhando e lutando pela causa que carrega no sangue.
Preta e Edinalva estão em celas individuais em uma ala para pessoas com curso superior e tem usado o tempo ocioso lendo livros e debatendo alguns temas. Edinalva tem se apegado bastante à fé e ao sobrenome Franco, em referência à resistência da ex-vereadora Marielle Franco, assassinada em março do ano passado. “Ela disse que pensava bastante na Marielle, no fim trágico que ela teve e que elas estão presas, mas estão vivas e que isso é uma injeção de ânimo para sair dali e seguir na luta, coisa que foi tirada da Marielle. E ela disse: ‘nós sabemos que incomodamos, que o nosso trabalho incomoda o presidente, o governador, o prefeito, mas nós vamos continuar na luta'”, relatou.
Por fim, antes da despedida, Maria Victoria disse que as duas deram mais um testemunho de luta. “Elas diziam: eles podem tirar a liberdade mas não vão tirar a nossa essência, o que nós temos. Podem ate fazer mal ao nosso corpo, mas não atingem a nossa alma”.
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