Heverton Enrique Siqueira, 20 anos, foi levado ‘para averiguação’ na zona leste de SP e teria sido reconhecido depois que PM pediu que ele colocasse o capuz
Heverton saiu de casa pouco depois das 8h30 do dia 10 de outubro para tomar um ar. Asmático, ele estava se sentindo mal dentro de casa, localizada na rua Manuel do Patrocínio, região de Sapopemba, zona leste de São Paulo. Minutos depois, seria levado para o 69º DP (Distrito Policial) acusado de um roubo a carro ocorrido 1,6 quilômetro distante dali. Permaneceria preso pelo simples fato de ter sido reconhecido pela vítima em um procedimento irregular.
Vinte minutos antes de Heverton ser preso em flagrante, por volta das 8h10, um motorista que trabalha com aplicativo de transportes chegava na rua rua Manoel França dos Santos, quando dois rapazes o abordaram. Inicialmente, ele pensou que um fosse seu amigo e ia cumprimentá-lo, quando um dos criminosos anunciou o assalto. Ele usaria uma arma e entrou no carro junto de outro homem, este mais velho. O motorista chamou a polícia.
Ao mesmo tempo, a família de Heverton conta que o rapaz estava em sua casa, que fica cerca de 24 minutos andando, segundo consulta no Google Maps, do local onde o veículo Renault Logan foi roubado. Leyliane Santos, 24 anos, vive com o irmão, além de seu marido e dois filhos. Ela conta que viu a hora que o jovem acordou e ambos estavam em uma ligação no exato momento do crime.
“Tenho dois filhos, um vai para a escola e o outro para a creche. Eram 7h da manhã quando acordei para preparar as bolsas deles, levei para as escolas. O Heverton estava dormindo. Voltei e ele já estava acordado. Eram 7h30 quando ele foi ao banheiro e ficamos conversando. ‘Como acordei cedo, vou acordar minha namorada também’, ele me disse. Brincamos com ela. A ligação em vídeo foi feita 8h09, conversamos com ela até 8h19 e ele desligou”, relembra a irmã, que conta com apoio da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio para denunciar a prisão, que afirma ser injusta, de seu irmão.
Depois da conversa familiar, que está registrada em prints, os dois seguiram o começo do dia: Leyliane foi lavar roupa e o irmão, que sofre de asma e havia passado por uma noite de crise sem dormir bem, foi para a rua. A ideia era ficar em uma praça três ruas abaixo de onde moram, na Rua Oreste Damolin. Apesar de asmático, o rapaz fuma cigarro e aproveitou a saída para isso. Foi quando os policiais o abordaram.
Segundo consta no boletim de ocorrência, registrado às 11h55, os PMs Samuel Soares dos Santos e Kaique Monteiro Passos patrulhavam a área quando foram informados que um Renault Logal havia sido roubado. A partir das características dadas dos suspeitos – negro aparentando ser adolescente com camisa azul e amarela, e um jovem pardo com blusa clara – chegaram em Heverton e um adolescente na praça e os abordaram. O relato dos parentes e testemunhas é de que os PMs já chegaram perguntando “onde está a arma?”.
“Lembro que já eram 9h e pouco. Minha tia veio chamar falando que a polícia tava abordando ele e o garoto”, relembra a irmã. “Disseram que o menino era acusado de um roubo e levariam meu irmão para averiguação. Ele não estava com nada, nem celular. Na delegacia, o policial disse que a vítima tinha reconhecido”, prossegue Leyliane.
Na delegacia, a vítima do crime realizou o reconhecimento dos suspeitos e afirmou que identificava os dois como sendo os assaltantes. No entanto, só indicou Heverton quando este colocou um capuz a pedido dos policiais, segundo contam os familiares. O procedimento não segue os padrões impostos pelo artigo 226 do Código de Processo Penal. O texto diz que “a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida”. Na sequência, o suspeito é colocado com outras pessoas de “qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la”.
O advogado Ricardo André de Souza, 41, diz já ter entrado com pedido de liberdade provisória e considera haver provas de que Heverton não cometeu o crime do qual é acusado. “Temos indícios de que ele é inocente, não cometeu crime e a vítima, por lapso, descuido ou para ver alguém preso para ter justiça de alguma forma, o reconheceu”, avalia, condenando o formato do reconhecimento feito pelos policiais. “Foi feito bem precário, forçado na verdade, pela polícia. Fez para tirar o inquérito da frente e colocar como resolvido”, critica o defensor.
Drama de família
Depois de saber que o irmão ficaria preso, Leyliane viu Heverton apenas uma vez antes de ele ir para o CDP (Centro de Detenção Provisória) 4 de Pinheiros – hoje ele foi transferido para o CDP de Mauá. A jovem conseguiu autorização do delegado Daniel Bruno Colombino para entrar na carceragem e dar a notícia ao irmão. “Nunca o vi chorar tanto, foi o pior para mim: vê-lo naquele lugar, dizer que ele ia ficar e ele chorar. Ele pegou na minha mão, disse que ama e pediu um beijo”, conta, emocionada.
Outra irmã, Leislaine Santos acusa o delegado de incriminar seu irmão. “O delegado disse que ele era ladrão, que tinha roubado, sendo que o Heverton estava dentro de casa. ‘Não adianta ficar discutindo comigo, não, ele está preso e já era’, ele me disse”, conta à Ponte. Naquela manhã, ela havia marcado de buscar o irmão para ambos levarem seu carro na oficina, o que não foi possível. “No mesmo dia foi a audiência de custódia, a juíza determinou que ele ficasse preso. Não consegui mais falar com ele, fomos atrás de filmagens para tentar mostrar que ele é inocente”, diz.
Segundo apurado pela Ponte, duas câmeras de segurança registraram o momento em que os dois suspeitos de praticar o roubo ao Renault Logan abandonam o veículo e saem correndo. Os dois seriam conhecidos na região e nenhum era o adolescente apreendido pela PM ou Heverton. Os moradores temem divulgar as imagens com medo de represálias.
Heverton vive com a irmã do meio e foi criado por familiares, pois a mãe sofria com dependência química. Há meses, o rapaz apresenta quadro de depressão, o que fez Leyliane o tirar da casa da tia para conviver com os sobrinhos. “Criança anima, né?!”, diz, sendo complementada por Leislaine. “Ele tem depressão, toma remédio. Tinha acabado de começar um novo tratamento, antidepressivo”, conta.
O rapaz havia conseguido umas roupas com amigos, que as compraram na 25 de Março, para revender e ter um sustento. O que estava o ajudando a melhorar os pesamentos ficou no passado, lamenta a irmã. “Ele disse que estava difícil na rua, mas que ali dentro [cadeia] seria pior, que ele ia se matar. Foi a pior coisa que poderia ter acontecido”, confessa. “Estão sendo os piores dias da minha vida, parece que alguém morreu”.
Jorgia Cristine Siqueira também se emociona ao falar do filho. Relembra dos momentos difíceis que passou com o vício em crack, mas que foi a gestação do menino que a fez largar a pedra. “Fiz tanta coisa errada e não passei por isso. Meu filho, que nunca fez nada, está passando? Parece que estou vendo um filme”, diz, contando um pouco mais sobre como é sua relação com os filhos.
“Minha relação é de amigo, porque não os criei, mas eles me respeitam como mãe. O Heverton sempre esteve do meu lado, quando tive crises de pânico, me ajudava. Às vezes eu ligava para perguntar o que ele achava da roupa que eu estava usando”, cita. “Quando chega de noite eu choro muito, era a hora que eu falava com ele. Dói muito. Eu mudei por ele, ele me tirou das drogas. Quando eu soube que estava grávida, eu parei de traficar, de roubar”, confessa.
A preocupação também é quanto ao futuro. Estudante do 3º ano do ensino médio, Heverton se preparava para um trabalho em um supermercado, vaga que a família agora acredita estar comprometida pela prisão.
A Ponte tentou entrar em contato por telefone com a família do garoto que foi preso junto com Heverton, mas não obteve retorno.
A Ponte questionou a SSP (Secretaria da Segurança Pública) de São Paulo, liderada pelo general João Camilo Pires de Campos neste governo de João Doria (PSDB), sobre a prisão e reconhecimento de Heverton e do adolescente.
Em nota, a pasta confirma a prisão em flagrante feita pela PM. “Ambos foram apresentados ao 69º DP (Teotonio Vilela), onde a vítima compareceu e reconheceu a dupla como autores do crime. O maior foi encaminhado para audiência de custódia e o infrator à Fundação Casa”. No entanto, nada respondeu sobre a forma de reconhecimento utilizada no caso e sobre a própria versão da família, que defende a inocência de Heverton.
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