Jean Jhonatan da Silva levou 5 tiros na porta de sua casa, na periferia da capital; segundo testemunhas, PM chegou atirando quando o homem estava rendido
A dona de casa Suellem Juliana Gomes Ferreira, 22 anos, mora na favela do Caixa D’água, no Cangaíba, zona leste de São Paulo, há quatro meses. Vive com as suas filhas, um gato e um cachorro. Apesar do pouco tempo, já criou laços no lugar. Desde terça-feira (5/10), recebe visitas a cada hora. A causa dessas visitas, porém, é o motivo pelo qual ela pensa em vender sua casa. Seu companheiro, Jean Jhonatan da Silva, 25 anos, que dividia o espaço com ela, as filhas, o gato e o cachorro, foi morto na porta de sua casa com cinco tiros no peito disparados por um policial militar.
Os vizinhos de Suellem temem pela sua vida. Além da lembrança de ver o marido ser alvejado e cair na porta de sua casa, onde o casal criava duas filhas pequenas, uma de 5 anos e outra de 2 anos, o episódio que todos querem esquecer deixou duas marcas de tiro e o sangue na entrada da casa. “Nem a chuva levou o sangue da porta”, conta a, agora, viúva, se referindo aos pés-d’água que caem em São Paulo desde terça-feira. Nem a chuva, tampouco o esforço de vizinhos na limpeza com água sanitária retirou as marcas vermelhas do chão.
Apesar da dor, a mulher quer ser ouvida. A morte do seu marido, com quem viveu lado a lado durante os últimos sete anos, ganhou versões que ela não confirma. Briga de casal, ameaça de morte, tentativa de feminicídio, tiroteio. Essas foram algumas das notícias que circularam pelo bairro, pela PM e pela imprensa. Mas Suellem conta que o dia 5 de outubro foi bem diferente de tudo que tem sido espalhado por aí.
Jean foi preso em outubro de 2019 e ficou 15 dias preso por suspeita de estelionato. Na primeira segunda-feira de novembro (4/11), foi solto e voltou para casa. Na terça, ele e Suellem passaram o dia juntos enquanto as filhas do casal estavam na casa da avó materna. De fato, afirma Suellem, houve uma discussão entre ela e Jean, mas a dona de casa garante que foi uma discussão boba. O motivo era que Jean queria ir assinar os papéis da sua liberdade e Suellem pedia para que eles fossem, primeiro, buscar as filhas na casa da mãe.
A morte de Jean foi registrada no 24º DP (Ponte Rasa). A reportagem da Ponte esteve na delegacia para obter a versão oficial que foi registrada para o caso, mas não conseguiu obter informações. O motivo alegado pelo chefe dos escrivães era de que as investigações seriam feitas no 62º DP (Jardim Belém), em Ermelino Matarazzo, também na zona leste, por causa do incêndio em um ônibus na noite seguinte à morte de Jean, na quarta-feira (6/11).
Na manhã da quinta-feira (7/11), a Ponte foi ao local em que ônibus foi incendiado. O clima era de extrema tensão pois moradores relataram que, após o incêndio, policiais militares fizeram abordagens violentas na região como forma de obter informações das pessoas que atearam fogo no veículo. “Ou conta ou voltamos para matar vocês”, prometeu um policial a um grupo de jovens, que relataram a ameaça à reportagem. Segundo falas dos moradores, o incêndio do ônibus foi um protesto pela morte de Jean. Nenhum dos representantes das duas delegacias quiseram comentar a morte de Jean e tampouco confirmaram se a queimada foi um protesto da população contra a morte do jovem.
Após insistência e colaboração da Rede de Proteção e Resistência contra Genocídio, a reportagem conseguiu conversar com alguns moradores que, anteriormente, estavam reticentes e temendo represálias caso denunciassem as violências que sofreram. Com tempo, a família de Jean aceitou falar. Na sexta-feira (8/11), Suellem recebeu a reportagem em sua casa e contou como tudo aconteceu.
“Eu tava lá fora e ele entrou para casa, pegou a arma dele em cima do guarda-roupa e disse que ia sair. Ele tinha acabado de ser solto e precisava assinar os papéis. Quando ele chegou na porta de casa, ele colocou a arma no chão e levantou as mãos para cima, porque ele deu de cara com a polícia. Ele foi morto aqui na porta de casa”, relata Suellem à Ponte.
Suellem confronta a versão oficial de que os policiais foram chamados para atender um caso de violência doméstica com tentativa de feminicídio. “É tudo mentira o que estão falando, eles simplesmente pegam a versão deles e não querem saber da nossa. A mídia coloca a versão do policial, mas é tudo mentira. E se as minhas filhas estivessem dentro de casa? Ele não ia me matar como estão falando, jamais. Foi só uma discussão, como qualquer casal. Você pode ver que eu estou ilesa. Ele não apontou arma nenhuma na minha cara, ele não me bateu, ele não me ameaçou”, crava.
A dona de casa critica a ação da polícia militar. “Isso é uma injustiça, não tinha necessidade nenhuma. Se fosse o caso de tentar conter a pessoa, eles deveriam conversar, não chegar atirando do jeito que eles chegaram. Ele não me fez de refém como estão falando, ele não disparou pra cima da polícia porque não tinha bala nenhuma dentro da arma. Temos as imagens aqui da rua que mostra isso, mas a Corregedoria veio e pegou”, denuncia Suellem.
Jean, na descrição da esposa e dos vizinhos, era uma pessoa prestativa, brincalhão e gentil. “É difícil aceitar uma coisa dessas. Meu marido tinha se rendido, colocou as mãos para cima, mas os policiais chegaram atirando. Todo mundo que conhece ele sabe que ele é gente boa, que não merecia morrer. Moramos aqui tem quatro meses, mas pode perguntar para todo mundo: ninguém nunca viu uma discussão. Esse foi o único dia que discutimos e aconteceu essa fatalidade. Ele era um pai muito incrível”, completa Suellem.
Ela conta que parecia cena de filme de ação. É assim que a esposa de Jean narra a operação policial que tirou a vida do seu marido. “Era uma policial feminina e um policial que baleou ele. Só o homem atirou, do volante mesmo ele saiu atirando. Chegou atirando sem descer do carro. Foram cinco tiros no peito, meu marido morreu na hora. Na televisão falaram que socorreram ele, não foi. Eu pedi ajuda pros policiais e eles fingiam que não estavam ouvindo. Demorou mais de 40 minutos para chegar ajuda”, lembra.
A jovem conta que ela e o marido já moraram em diversos lugares até conseguirem juntar dinheiro para comprar a casa onde moravam atualmente. “Nós já moramos em Ermelino Matarazzo, na Cachoeirinha, em Pirituba, já moramos na casa da tia dele, na casa da minha mãe e aí foi quando viemos para cá, juntamos dinheiro por muito tempo, compramos a casa e mudamos para aqui. Para mim foi a pior coisa. A ficha ainda não caiu, é no dia a dia que a gente vai vendo que a pessoa não está mais aqui”, desabafa Suellem, que confessou à Ponte que pensa em vender a casa e mudar de bairro.
“É muito difícil mesmo. Ele saiu na segunda para acontecer isso na terça, para mim, ele poderia ter ficado preso porque pelo menos eu ainda ia poder ver ele. O policial que matou meu marido não se arrepende. Ele ficou rindo na delegacia. Além de tirar a vida do meu marido, ainda fica tirando sarro da minha cara”, completa.
O melhor amigo de Jean, que também não quis se identificar, avalia que o amigo sofreu uma grande injustiça e relata como foi na delegacia. “O Jean era um irmão para mim, um cara super gente fina, um moleque alegre. Não fazia mal para ninguém. Ele estava rendido e mesmo assim o PM atirou nele. Ainda ficou rindo na delegacia e falou pros moleques que eles deram sorte porque ele ia matar eles, falou pra mãe de um moleque ‘a senhora deu sorte, ia matar seu filho'”.
Prima do jovem, Aline de Faria, 33 anos, conta que ele era muito amoroso, fazia questão de sempre dizer que amava quem era próximo. “O Jean, desde muito pequeno, era peralta, um menino órfão de pai e mãe, criado pela avó. Ele passou a moras conosco depois dela falecer, fomos criados como irmãos e ele sempre era muito alegre e uma pessoa muito família. Em tudo estávamos juntos e ele sempre era carinhoso, brigava com todos para defender a família”, descreve.
A Ponte conversou com diversas testemunhas que confirmam a versão contada por Suellem, mas elas preferem não se identificar com medo de represálias. A primeira testemunha ouvida pela reportagem afirma que não viu os momentos dos tiros, mas acompanhou a discussão do casal e, assim que ouviu os disparos, voltou e ficou até o fim da ação policial.
“Quando o marido dela tava chegando na favela, depois de uns 15 minutos, a viatura desceu. Ela veio devagar, desceu como se fosse um enquadro de rotina, uma averiguação na favela. Quando o marido dela passou, que me viu, ele me cumprimentou e falei pra ele ser bem-vindo, porque ele tinha acabado de sair da cadeia”, narra a testemunha.
“No ocorrido, o marido dela tava aqui com ela numa discussão e daqui a pouco vieram os tiros. Eu tinha acabado de descer e, quando voltei, ele já estava caído. Na hora não teve como negar: veio do policial. Ele não fez nada, ele não teve uma única reação. Os policiais que vieram aqui na quebrada que deram os acertos”, continua.
A testemunha critica a ação policial e confirma que Jean não efetuou nenhum disparo. “Os PMs sempre rondam por aqui na favela, mas nesse dia parece que foi… sei lá, um azar de Deus. Está todo mundo revoltado porque foi a maior injustiça, mesmo. E mais ainda pelas mentiras que estão rolando. Não teve nada disso, ele estava aqui na porta e ia entrar no carro. Não deram oportunidade, já vieram metendo bala. Eles não atiraram no pé ou na mão, já foram mandando no peito mesmo. Nós queremos que esse policial que fez isso mostre a cara, ele acha que é melhor do que a gente porque tem uma farda ou porque somos da favela? Essa é a nossa revolta”.
A ação aconteceu durante o dia, por volta das 15h, por isso a rua estava cheia: crianças estavam a poucos metros do local onde Jean foi alvejado. O clima é de tensão no local, pois vizinhos temem pela vida de Suellem. Segundo testemunhas, policiais, civis e militares, estão rondando a casa da viúva. Todos que viram a ação policial dizem não esquecer a cena.
As testemunhas destacam que, depois dos disparos, achavam que os tiros haviam pegado na cachorrinha de estimação de Jean e Suellem, pois ela estava coberta de sangue, mas, quando perceberam, era o sangue de Jean que o animal lambeu. “Ela não é quietinha assim não, viu? Mas desde o ocorrido está assim, quieta, sem ação”, relata uma das testemunhas.
A segunda testemunha ouvida pela Ponte afirma ter visto toda a ocorrência. Ela havia saído de casa para comprar cigarro e parou na casa de uma amiga, que mora bem perto de onde Suellem e Jean moravam. Quando passou pela casa, viu o casal do lado de fora. Na sequência avistou a viatura chegando. Bem próxima à casa do casal, a testemunha conta que havia três crianças sentadas, brincando, além das crianças que estavam em outras partes da rua.
“Os PMs não fizeram a abordagem que tinha que fazer, eles já chegaram atirando, não respeitaram nem as crianças que estavam ali do lado. Do outro lado eu só gritava, pedia para ele não atirar e ele atirou sem dó. Se a Suellem estivesse lá fora tinha tomado tiro também. Achei uma falta de respeito. Estão falando que foi uma briga de casal, em momento nenhum houve uma briga. A imagem não sai da minha cabeça”, narra a testemunha.
A mulher, que pediu para não ser identificada, disse que nunca houve uma situação como essa na Favela da Caixa D’água e descreve a ação da PM como covardia. “O policial saiu de um jeito já atirando, e como veio a população, ele começou a apontar a arma para todos. Ficou falando que, se não afastássemos, ele iria atirar. Eles acham que só por que a gente mora em uma favela somos bicho, mas nós somos seres humanos como todos eles são. Eles destruíram uma família, tiraram uma vida de um pai de família. Consigo nem entender o por que”, critica.
Suellem e as testemunhas afirmam que depois dos disparos, efetuados pelo policial homem, a policial feminina teria recolhido a maior parte dos projéteis da cena do crime, mas deixou para trás uma cápsula, que foi entregue para a dona de casa por uma criança de 10 anos. A viúva também alega que Jean morreu na hora.
Uma terceira testemunha conta que não viu o momento dos disparos, mas que pouco antes estava na casa de Suellem. Assim que chegou em casa, ouviu os barulhos dos tiros e voltou correndo. Quando ela retornou, viu Jean caído no chão e Suellem implorando por ajuda ao lado do corpo do marido.
“A população rapidamente se aproximou e pediu para os policiais socorrem, mas eles não deixavam ninguém chegar perto, parecia que era para ninguém socorrer ele. Quando a ambulância chegou, todo mundo percebeu que ele já tava em óbito. O que deixou todo mundo revoltado é que ele tinha se rendido, todo mundo viu que ele tinha levantado a mão para o alto e a arma estava no chão. Isso foi uma execução, porque não precisava tanta violência. O que a gente mais agradece a Deus é que as filhas deles não estavam em casa. Queremos justiça, queremos que a verdade venha à tona”, relata.
A mesma testemunha afirma que a ambulância demorou cerca de 40 minutos, o que nunca acontece na região, que normalmente é atendida com rapidez. “Eu liguei mais de cinco vezes, outra vizinha ligou mais de dez. Toda vez que a gente ligava eles falavam que já tava a caminho. Quando ligamos para falar que algum idoso está passando mal de pressão alta a ambulância vem rápido”.
Ela relata com detalhes a atitude dos policiais nesse momento. Outros moradores foram ameaçados durante o tempo que Jean ficou jogado no chão aguardando ajuda. “O vizinho da casa da frente começou a gritar, falando que ele estava rendido, e os policiais foram até a casa dele, apontaram uma arma, uma calibre 12, e falaram ‘desce que a gente mete bala em você também’. Nisso todo mundo começou a gritar, para dispersar um pouco os policias para tentarmos fazer algo, mas eles isolaram a área. Eles pularam ali no terraço do vizinho e arrancaram a câmera, porque eles queriam as imagens e os vizinhos não queriam dar. No outro dia a Corregedoria veio e pegou as outras imagens”, aponta.
“Um outro morador gritou para eles socorrem o Jean e o policial gritou de volta falando para ele socorrer. Nisso que ele foi, o PM colocou a arma no peito dele e falou ‘sai daqui’. Eles iam atirar na população. Eles estavam com bala de borracha e spray de pimenta nas mãos. Eles julgam muito quem mora na favela, mas quem mora na favela também trabalha, também estuda, também tem uma vida e uma família. Eles passam aqui olhando dentro das casas. Temos medo, por isso toda hora alguém vem ver a Suellem”, denuncia a testemunha.
A quarta testemunha ouvida pela Ponte conta que a favela ficou fechada até a noite depois da morte de Jean. Essa pessoa foi quem ajudou Suellem a limpar a cachorrinha que estava suja de sangue e separar os documentos necessários para o enterro do rapaz.
“A polícia chegou atirando na porta da casa deles, tanto que tem dois tiros na porta. Foi tudo muito rápido. A arma dele não tinha bala, eu vi, não tinha como ele atirar em ninguém. Ele já saiu daqui morto, não tinha mais o que fazer. Nunca aconteceu isso aqui, aqui já teve tráfico e tudo mais, mas alguém ser morto na porta de casa foi a primeira vez. Tinha crianças na rua na hora. Até agora não deu para entender nada, eu fiquei abalada”, desabafa.
Outro lado
A reportagem entrou em contato com as assessorias da PM, comandada pelo coronel Marcelo Vieira Sales neste governo de João Doria (PSDB), e da SSP (Secretaria de Segurança Pública) de São Paulo, liderada pelo general João Camilo Pires de Campos, questionando o nome dos policiais que participaram da ação que tirou a vida de Jean. Também questionou pasta e corporação sobre a demora no atendimento do jovem e o motivo da retirada de todas as imagens que mostram o momento do suposto tiroteio. A Ponte ainda questionou sobre os relatos de que policiais, civis e militares, estão rondando a casa da família de Jean. A PM enviou a seguinte nota:
“A Polícia Militar informa que, durante o atendimento a uma ocorrência de desinteligência entre um casal na tarde de terça-feira (5/11), um suspeito armado disparou contra uma equipe do 2º BPM/M (Batalhão de Polícia Militar Metropolitano), que realizou a intervenção. O agressor foi ferido, desarmado e socorrido ao PS (Pronto Socorro) Ermelino Matarazzo, onde foi atendido, mas não resistiu aos ferimentos. As armas envolvidas na ocorrência foram encaminhadas para a perícia. A ocorrência foi registrada no 24º DP (Ponte Rasa) e a corporação instaurou um inquérito policial militar para apurar os fatos”, explica a PM.
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