Sofri racismo no Theatro Municipal e delegacia se recusou a registrar

    Designer de moda negra foi acompanhada por seguranças quando saiu para beber água. Na delegacia de Crimes Raciais, ouviu: “É racismo, mas não posso fazer nada”

    Raquel posa em frente ao Teatro Municipal antes do show do rapper Emicida | Foto: Arquivo pessoal

    A ideia da designer de moda Raquel Rosa, 25 anos, era ocupar o espaço do Theatro Municipal de São Paulo na noite do dia 27 de novembro, data do show do rapper Emicida. Segundo ela, a histórica pequena presença de negros no espaço tornava aquela noite especial. Mas, ao ir beber água, denuncia ter sido vítima de racismo que não foi considerada como tal pela delegacia especializada em crimes raciais da Polícia Civil de São Paulo.

    Quando Raquel saiu da área do show para ir beber água, um homem a abordou. Ela o identificou como sendo segurança. “Ele já tava me seguindo. Quando abri um pouco a porta, ele me parou e perguntou: ‘Você vai para onde? Vai para o banheiro?’, com voz irritada. Aí eu respondi que não, que ia beber água. Nisso ele já gritou para os outros seguranças que estavam lá: ‘ela vai beber água'”, conta a designer.

    Com o alerta, os demais funcionários do local começaram a vigiá-la, segundo a designer. Ela conta que isso aconteceu durante todo o trajeto até voltar para a porta. No mesmo instante que retornou, uma jovem branca fez o mesmo que ela e não foi abordada por nenhum integrante do Theatro, conforme perguntado por Raquel na volta.

    Ao questionar os funcionários, eles explicaram que era o trabalho deles “barrar as pessoas, perguntar para onde elas vão. Todas as pessoas a todo momento”. Foi quando Raquel perguntou o motivo dela ter sido perguntada e a jovem branca, não. “Eles falaram: ‘Ah, é porque ela já deve ter saído outra vez’. Eu retruquei, perguntando se não tem que barrar a todo momento e continuaram falando que isso era normal e deram a entender que era coisa da minha cabeça”, continua.

    Na manhã seguinte, Raquel e seu companheiro, Caê Vasconcelos, repórter da Ponte Jornalismo, decidiram denunciar o caso na Decradi (Delegacia De Crimes Raciais E Delitos De Intolerância). A resposta foi tão ou mais negativa do que no Theatro, conforme relata a jovem. Ela foi orientada a não registrar o B.O. (Boletim de Ocorrência) por poder se prejudicar em vez de denunciar um crime.

    “O policial perguntou o que aconteceu, eu contei toda a história e ele virou para mim, sem ter anotado nada, e falou ‘vou te esclarecer o que vai acontecer. Eu não vou poder abrir o B.O. porque ele não te xingou, ele não te chamou de macaca, então isso não vai ser dado como um crime, ele não saiu da lei'”, explica a designer.

    O argumento utilizado pelo policial é de que a própria vítima poderia se prejudicar caso o documento fosse elaborado. De acordo com o agente, a falta de provas abriria brecha para o Theatro ou o funcionário abrirem processo por falta denúncia de crime. “Inclusive, ele falou que sabe que isso é racismo sim, mas como a lei não bota como racismo ele não pode fazer nada”, sustenta Raquel.

    “Ele [o policial] respondeu que não podia falar que era crime de injúria racial porque o segurança só falou ‘ela está indo beber água’ para os outros seguranças em vez de falar ‘a negra está indo beber água, ou a criola, ou a macaca’, e que não iria abrir o B.O. porque, mesmo se fosse levado a frente, o cara ia ganhar. Porque seria a palavra dele contra a minha”, detalha Raquel.

    O próprio policial teria dito que casos como esse acontecem ao menos três vezes por dia, conforme relato da jovem, mas que não é possível registrar a ocorrência por conta desta alegação de que seria prejudicial para a vítima. “Não é feito nada, eles falam que é isso, que isso acontece, que as pessoas que tem o racismo velado, como o policial me falou, um dia vão cometer um erro e falar alguma coisa e só aí eles podem fazer alguma coisa. Mas, enquanto isso, nada acontece”, critica a designer.

    A advogada Dina Alves, que integra o IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) explica que não é novidade esta atitude por parte da delegacia de Crimes Raciais. Ela explica que o mesmo aconteceu com uma denúncia de racismo e que a indicação, de fato, fazia sentido na proteção da vítima.

    “Do ponto de vista jurídico, de entrar com ação, ela precisaria ter mais provas, testemunhas para levar para a frente. Uma repercussão política é mais importante do que uma ação jurídica, como injúria ou danos morais”, argumenta Dina, que cita um melhor caminho a denúncia ao MP (Ministério Público), que pode abrir investigação sobre a atuação ser seletiva ou não.

    No entendimento da especialista, há um problema quanto a identificação do crime de racismo, para ela nítido no caso de Raquel. “A questão da investigação esbarra nas provas, que esbarra no problema maior, que é o de como conseguimos configurar um ato racista ou injuria. Não é só chamar de macaco. E o racismo mascarado?”, indaga.

    Para Dina, é necessário uma mudança na atuação da delegacia, que é “especializada em investigar crimes raciais e ela própria não consegue enxergar que é racismo”. “As pessoas não acreditam que existe racismo. Precisaria que alguém morresse ou que o outro gritasse “é macaco”. Não é isso, é mais profundo”, aponta.

    Em nota, o Theatro Municipal de São Paulo informou que “repudia e não tolera quaisquer tipos de atitude discriminatória” e dizendo não ter recebido denúncia em seus canais de atendimento ao público. “No dia do show do Emicida tínhamos várias equipes terceirizadas que se juntaram ao time da casa. O acesso ao bebedouro fica numa área reservada restrita apenas aos funcionários da produção. Dessa forma precisamos averiguar de forma mais profunda o que pode ter ocorrido”, diz o Theatro, que aponta ter os “mesmos valores de igualdade e inclusão e qualquer atitude preconceituosa será veementemente rechaçada”.

    Na mesma nota, a Laboratório Fantasma, empresa responsável pela carreira do rapper Emicida, informa que “tomou conhecimento do ocorrido apenas na noite desta sexta-feira, 29 de novembro, e prontamente iniciou uma apuração para saber mais detalhes da denúncia, que vai totalmente contra o propósito daquilo que estava sendo celebrado no palco do Theatro Municipal de São Paulo”.

    A Ponte questionou a SSP (Secretaria da Segurança Pública) de São Paulo sobre o não registro da ocorrência, mas a pasta não se posicionou até a publicação desta reportagem.

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