Artigo | A ação desastrosa da PM na chacina de Paraisópolis

    Colocar a culpa nas nove vítimas é um desrespeito e uma falta de humanidade sem tamanho; a polícia precisa assumir a responsabilidade pelos seus erros

    Na madrugada do dia 1º de dezembro de 2019 o Brasil foi sacudido com a notícia de que 9 jovens teriam morrido pisoteados a partir de uma ação truculenta da Polícia Militar em Paraisópolis, favela da zona sul de São Paulo. As vítimas foram identificadas como Marcos Paulo Oliveira dos Santos, 16 anos, Denys Henrique Quirino da Silva, 16, Dennys Guilherme dos Santos França, 16, Gustavo Cruz Xavier, 14, Gabriel Rogério de Moraes, 20, Mateus dos Santos Costa, 23, Bruno Gabriel dos Santos, 22, Eduardo Silva, 21, e Luara Victoria de Oliveira, 18. 

    O que se sabe, com certeza, é que nenhum deles havia entrado em confronto com a polícia no momento de sua morte e somente frequentavam o famoso baile da DZ7, uma das poucas atividades ofertadas para a juventude local. Inúmeros vídeos de claros abusos de autoridade e tortura praticados por policiais fardados, aparentemente no próprio dia dos homicídios, foram postados nas redes sociais. Os materiais mostram jovens sendo espancados sem esboçar qualquer tipo de reação, encurralados em becos, recebendo tiros, que não se sabe se são de armas menos letais ou de armas letais, e a utilização de bombas de efeito moral e gás. Não há registros de vídeos com agressões contra policiais, não há relato de policiais feridos, nem de presos com drogas ou armas.

    As versões são divergentes de como a ação policial foi iniciada, mas os relatos dos moradores de Paraisópolis são, de longe, os mais verossímeis. Tudo indica que a PM de São Paulo, deliberadamente, se dirigiu até o local para encerrar o baile funk que estava irregular, segundo normas da Prefeitura de São Paulo. Importante frisar que foram normas defendidas e adotadas pelo então prefeito João Doria, agora governador e chefe das polícias daquele estado.

    Uma disputa de narrativas passou a ser travada nas redes sociais e meios de comunicação. De um lado os defensores da ação truculenta da polícia e do outro lado os críticos da ação das forças de segurança.

    Todo maniqueísmo é perverso e mentiroso. É impensável uma sociedade sem o aparato repressivo do Estado, uma sociedade onde a autotutela seja realizada pelo mais forte. A polícia possui função clara como ultima ratio, a última fronteira contra as forças da criminalidade, que objetiva instaurar a sua lógica perversa e covarde. Dito isso, é urgente que no Brasil as instituições policiais se democratizem, se modernizem e passem a trabalhar em prol de todos os cidadãos deste país, e não somente agindo para defender as classes dominantes e oprimir as classes menos favorecidas, pretos e pobres.

    O argumento central, para legitimar a ação desastrosa da PM, foi de que o local seria um centro de balbúrdia, para utilizar um termo muito em voga. Porém, os dados nos dizem que o bairro de Pinheiros, bairro rico de São Paulo, lidera o ranking de perturbação da tranquilidade, sendo que Paraisópolis ocupa somente a 76ª posição. Não é preciso raciocinar muito para aferir que as ações no primeiro bairro não se assemelham em nada com as abordagens realizadas no segundo bairro.

    Logo, alegar que a ação da polícia visava manter a lei e a ordem naquele ambiente não justifica tamanha brutalidade e, o pior, a morte de 9 jovens inocentes.

    Ainda, seguindo a lógica maniqueísta e populista, se criou o conceito de que se uma ação da polícia é criticada, automaticamente se está defendendo a criminalidade. Para alguns cidadãos conservadores, as 9 mortes são completamente justificadas, pois os jovens estariam no lugar errado e na hora errada. Fazendo uma relação com a tragédia da boate Kiss, que vitimou 242 jovens na cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul, é como se fosse colocada a responsabilidade sobre os ombros das vítimas por estarem em um local que apresentava uma série de irregularidades e fraudes. É um desrespeito e uma falta de humanidade sem tamanho esse tipo de raciocínio.

    Em todo e qualquer lugar do mundo, dito civilizado, que uma ação policial, mesmo que fosse para de fato prender criminosos ou em resposta a injustas agressões, resultasse na morte de quase uma dezena de inocentes, que somente participavam de uma festa, os governantes seriam obrigados a darem respostas enérgicas. No Brasil, dominado pelo fascismo Bolsonarista e pelo populismo penal em que surfam políticos como João Doria e Wilson Witzel, o fato é visto como uma ação enérgica e necessária das forças de segurança que, por acaso, teve como efeito colateral a morte de 9 jovens da periferia.

    Uma polícia que não analisa suas ações, que não pune atos criminosos cometidos no interior das corporações, que não assume sua responsabilidade frente aos abusos cometidos, que age à margem da lei, é uma polícia criminosa, que passa longe do ideal esperado dessas organizações. Isso não faz bem para a sociedade, pois esta fica sujeita a todo tipo de arbitrariedades, abusos e corrupção, assim como não faz bem para os próprios trabalhadores da segurança pública, que são forçados a se adaptarem a um sistema imoral e humilhante.

    Realizando um paralelo das ações da polícia no Brasil e nos Estados Unidos da América, invariavelmente utilizado como exemplo de uma polícia que é respeitada e temida, a morte do jovem negro Stephon Clark, 22 anos, morto em março de 2018 na Califórnia, desencadeou uma onda de protestos naquele país que duraram dias, levando milhares de pessoas para as ruas para denunciar o racismo institucional. Já no Brasil, qualquer análise crítica ou que busque uma melhora nas ações da polícia é automaticamente taxada de apologia ao crime, sem qualquer tipo de critério racional para tais afirmações.

    Que as mortes desse trágico incidente, causado pela PM de São Paulo, não caia no esquecimento e que exista punição para os seus responsáveis e apuração real das causas das mortes. Que este caso sirva como reflexão e como paradigma das ações da polícia, que devem ser pautadas pela legalidade, uso progressivo da força e utilização das técnicas adequadas, não um show de atrocidades, torturas e abuso de autoridade como visto no caso de Paraisópolis.

    Leonel Radde é policial civil da Polícia Civil do Rio Grande do Sul e membro do Movimento Nacional dos Policiais Antifascismo

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