Lucas foi visitar o primo na delegacia. E acabou condenado por roubo

    Ainda adolescente, foi reconhecido por vítimas e condenado por um roubo a moto que o primo teria cometido; após 3 anos, foi mandado para Fundação Casa

    Lucas Henrique no estúdio, onde investia na carreira com o nome DJ Lucas do JG (Jardim Guarujá) e, depois, DJ Lucas Mitos | Foto: Arquivo pessoal

    O aspirante a DJ Lucas Henrique Araújos dos Santos, 19 anos, passou o Natal e Ano Novo longe da família. O plano era estar junto do pai, Genival Farias dos Santos, e da mãe, Márcia Farias dos Santos, no Jardim Guarujá, zona sul da cidade de São Paulo. Um mandado de prisão mudou tudo no dia 19 de dezembro do ano passado, data em que ele foi levado para a Fundação Casa de Osasco I, na Grande São Paulo, onde permanece até hoje.

    O crime, que ele garante não ter cometido, tem como base um reconhecimento feito de forma irregular três anos antes. Lucas foi envolvido em um roubo que o primo dele teria cometido. Gabriel William dos Santos, 17 anos, foi apreendido acusado de roubar um veículo Fiat Fiorino e uma motocicleta, e levado ao 47º DP. Ele chegou a confessar a participação nos crimes. Preocupado, Lucas foi até a delegacia para saber o que havia acontecido ao primo e, desde então, sua vida nunca mais foi a mesma.

    Como tudo começou

    Em 20 de janeiro 2016, Lucas foi até o DP com sua tia para ter informações do primo e, quando chegou ao local, chamou a atenção das vítimas do roubo da Honda 110. Um homem e uma mulher estavam na delegacia para reconhecer Gabriel, mas, na verdade, se depararam com Lucas e o apontaram como suspeito. Ele seria o garupa da moto que os abordou com uma arma, enquanto Gabriel foi apontado como quem pilotava.

    “O Gabriel perguntou na delegacia: ‘o que o Lucas está fazendo aqui? Ele não tem nada a ver, o B.O. é meu. Ele não fez nada’. Disse para as vítimas no dia”, relembra Genival, pai de Lucas e tio de Gabriel, filho de uma de suas irmãs. De nada adiantou. A palavra das vítimas bastou para torná-lo suspeito.

    Não há detalhes informados pelas vítimas sobre as características físicas dos suspeitos, como altura, cor, fisionomia, de acordo com os autos, onde há a indicação do reconhecimento: “Pela testemunha foi dito que reconhecia Lucas Henrique Araújos dos Santos como autor da prática de roubo”. Para a Justiça, foi considerado apenas a palavra das vítimas e a confirmação dos policiais militares que apreenderam Gabriel.

    Genival (à esq.) e Lucas em uma festa no bairro onde moram na zona sul de São Paulo | Foto: Arquivo pessoal

    Dois dias após a ida do jovem à delegacia para saber sobre o primo, o promotor de justiça Oswaldo Barberis Júnior solicitou medida socioeducativa para os dois primos. Ainda que Lucas se declarasse inocente e Gabriel tivesse confessado o crime e isentado o primo, nada mudou para a acusação. Lucas seria apreendido quase quatro anos depois, no último dia 19 de dezembro.

    A primeira condenação

    A defesa do adolescente sustentou que não havia outras provas além da palavra das vítimas e a versão dos PMs. Na sustentação de defesa, a advogada Carla Patrícia de Oliveira declarou ao juiz que, caso Lucas fosse mesmo culpado, jamais iria até a delegacia. “Seria até ingenuidade demais da parte dele achar que indo até a delegacia nada aconteceria”, prosseguiu, como consta dos autos do processo. Não adiantou.

    Em 24 de outubro, a Justiça de SP o condenou por roubar a motocicleta do casal. Para a juíza Tatyana Teixeira Jorge, da 3º Vara Judicial do Foro de Embu da Artes, a autoria do crime estava amplamente demonstrada no processo, ainda que não existisse outro elemento ligando Lucas ao roubo além da fala das vítimas e o reconhecimento irregular.

    Ela destaca que a prova oral colhida com os donos da Honda 110 foi o bastante para cravar que Lucas era o garupa. Segundo Genival, pai do jovem, Lucas nunca pilotou uma moto e ainda não sabia dirigir carros naquela época.

    Tatyana manifesta apenas uma dúvida sobre o caso: “Apenas a causa de aumento [de pena] por uso da arma de fogo restou duvidosa, eis que, segundo a vítima, depois veio a saber que se tratava de arma de brinquedo”, argumenta, determinando, na época, a internação por prazo indeterminado na Fundação Casa.

    Lucas, no entanto, respondeu ao restante do processo em liberdade, conforme explica seu pai, Genival. “Ele sempre foi um jovem caseiro, nunca deu trabalho. Ia para a escola, igreja”, detalha. Mas o pai determinou que ele não frequentasse mais a escola. “Se tivesse alguma mudança do processo iam buscar ele na escola, preferi tirá-lo”, explica sobre seu temor. A internação poderia ser dos 16 aos 21 anos, prazo limite para medidas-socioeducativas que restringem a liberdade.

    Os passos seguintes dados pelo processo iam de encontro com o medo revelado pelo pai. Novos advogados assumiram a defesa de Lucas depois da primeira decisão e acionaram instâncias superiores. Primeiro, tentaram reverter a condenação no TJ-SP. Sem sucesso.

    Novamente, o MP manteve a versão de que se tratava de dois criminosos. “A materialidade e a autoria do ato infracional está cabalmente demonstrada nos autos”, definiu a promotora de justiça Adriana de Cássia Delbue Silva, em 19 de junho de 2017. O processo se arrastaria por mais tempo no próprio TJ-SP (Tribunal de Justiça de SP). Dez dias depois, a promotora definiu os recursos pedidos pela defesa como “protelatório”, ou seja, ela considerou que seria uma forma de fazer com que o processo demorasse mais tempo e não uma tentativa de corrigir uma injustiça.

    A morte de Gabriel

    Lucas ainda aguardava os recursos e uma decisão sobre o caso, quando o primo Gabriel, então com 19 anos, foi morto em uma suposta perseguição policial, em 26 de maio de 2017, de acordo com Genival. “Depois disso, PMs vieram até minha casa levar uma intimação. Respondi que eles já tinham matado o Gabriel”, conta.

    Segundo o pai, Lucas gosta de se fantasiar de militar ou similares em festas pelo antigo sonho de ser policial, que deu lugar ao desejo de ser DJ | Foto: Arquivo pessoal

    A causa da morte foi justamente um disparo de arma de fogo, conforme atestado de óbito juntado ao processo. O rapaz foi socorrido no Hospital Municipal do Campo Limpo, zona sul da capital paulista, e não resistiu. Daí por diante, Lucas passou a ser o único a responder pelo crime.

    Oito meses depois, em 9 de fevereiro de 2018, o Ministério Público de São Paulo manteve o pedido de internação, mas admitiu um “pequeno” erro processual: que o reconhecimento não seguiu os padrões do CPP (Código de Processo Penal). O texto determina que a vítima dê uma descrição física do suspeito que depois é colocado com mais quatro pessoas e apresentado para ser reconhecido. Mesmo reconhecendo que isso não aconteceu com Lucas, o MP não viu problema.

    “Ainda que na delegacia o reconhecimento não tenha observado todas as formalidades previstas no artigo 226 do CPP (Código de Processo Penal), em juízo, na presença dos advogados das partes, as vítimas tornaram a confirmar a participação do adolescente L.H.A.S. no ato infracional, reconhecimento este compatível com demais provas carreadas no processo”, sustentou a promotora Andrea Barreira.

    No mesmo mês, o TJ-SP negou os recursos da defesa e manteve a decisão em primeira instância. Para o desembargador Gastão Toledo de Campos Mello Filho, não restava dúvida de que Lucas era o autor do roubo da moto junto de seu primo Gabriel. Isso independentemente se o artigo do CPP não tivesse sido seguido à risca, o que não provocaria nulidade do processo, segundo ele.

    “Analisadas as provas existentes nos autos, conclui-se estar suficientemente comprovada a materialidade do ato infracional”, garante, antes de dar total credibilidade à versão das vítimas e dos PMs. Ainda destaca que uma delas o reconheceu “poucas horas após os fatos, enquanto as imagens e lembranças se encontravam frescas em sua memória, o que confere mais confiabilidade ao reconhecimento efetuado”.

    Na instância superior

    As derrotas na primeira e segunda instância da Justiça de São Paulo se ampliaram quando a defesa recorreu ao STJ (Superior Tribunal de Justiça), que não concedeu habeas corpus para o adolescente. O ministro Felix Fischer não viu qualquer irregularidade no reconhecimento, na versão das vítimas, apenas no não cumprimento do artigo 122 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), que trata de medidas de internação. Pediu que fosse determinada medida socioeducativa mais branda.

    Posteriormente, em 18 de março de 2019, o presidente do STJ, João Otávio de Noronha, não reconheceu recurso, considerando que o processo seguiu todos os passos legais, discordando da visão de Fischer. Noronha não estranhou o fato de Lucas, três anos após o crime e sem ter recebido qualquer tipo de punição ou restrição, não ter sido reincidente na prática de roubos.

    DJ Lucas Mitos em ação durante festa | Foto: Arquivo pessoal

    “Tentei tudo que fora possível, infelizmente não deu”, lamentou à Ponte o advogado José Raimundo Coelho, 51 anos, que assumiu o caso quando chegou ao STJ. Ao conversar por telefone em suas férias, o advogado precisou saber apenas o nome do adolescente para relembrar do caso, ainda que ocorrera anos atrás. “Houve muitas falhas, não se preocuparam com ele. Tentei modificar”, define.

    “O reconhecimento não só atrapalhou como foi falho. O que aconteceu? ‘Foi ele’ e já era. Não fizeram nem da pessoa que estava presa [Gabriel], nem do colega [que indicara seu endereço]. Podia mostrar quem foi, nem isso fizeram”, explica Coelho, criticando a atuação policial, feita “por cima”. “Não sei se [a vítima foi] induzida pelos policiais… Acredito que tudo influenciou”.

    Para ele, o MP não se importou em averiguar os fatos, ainda que fosse sua função a proteção infantil, segundo o advogado. “Não sei pela posição social, onde mora, mas que foi prejudicado, foi. Pensando nessa condenação, eu diria que foi a posição social, entendeu? Se fosse outra situação, talvez ele tivesse sido absolvido”, avalia José Raimundo Coelho.

    Depois de perder no STJ, não havia outra saída senão o cumprimento da medida socioeducativa, como entendeu o MP. Com a resposta negativa de Noronha ao pedido da defesa de Lucas, a promotora Adriana de Cássia Delbue Silva cobrou da Justiça um mandado de busca e apreensão. No mesmo dia, a juíza Tatyana Teixeira Jorge, de Embu das Artes, reconheceu o fim do processo e expediu o mandado no dia seguinte.

    Tatyana então encaminhou o documento para o 1º DP de Embu das Artes, o que atrasou a prisão em meses – a unidade explicou que o endereço não pertencia à área. Foi quando a juíza acionou o 47º DP (Capão Redondo), extremo sul da cidade de São Paulo, onde Lucas foi reconhecido como suposto autor do roubo da moto Honda 110.

    Os policiais civis fizeram uma operação nomeada “Natal em Foco” para buscar e apreender o adolescente, já com 19 anos, para cumprir medida socioeducativa. Lucas aguardou dias na carceragem da delegacia até a Justiça encontrar uma unidade da Fundação Casa com vaga: Osasco I. Lá ele segue há 19 dias e sem previsão de saída.

    Falhas do caso

    Para a advogada criminalista e mestra em política criminal e racismo estrutural Tamires Gomes, há elementos na defesa que mostram incoerência no processo: o depoimento da vítima ser a única prova, o processo legal de reconhecimento não ter sido feito na delegacia e a questão da liberdade há três anos.

    “Existe um processo de nulidade na acusação e que deveria ter sido reconhecido nos outros tribunais superiores, TJ ou STJ, e não foi”, pontua, antes de questionar a internação, feita após o cumprimento do mandado de prisão em 19 de dezembro. Segundo a especialista, a medida serve para avaliar o adolescente e saber se ele tem ou não condições de estar fora da Fundação Casa.

    Genival, que tem uma webrádio no Jardim Guarujá, acompanha o filho em outro trabalho como DJ | Foto: Arquivo pessoal

    “Só que nesse caso ele está há três anos trabalhando, estudando, indo para a igreja, no convívio com a família e você tirar esse adolescente desse espaço e colocá-lo na Fundação Casa é um processo de retirada”, sustenta. “É o Estado dizendo que, por ser jovem, por ser pobre, por ser negro, não interessa se você está há três anos nesses espaços, a ressocialização é, na realidade, uma farsa desse processo de justiça criminal”.

    Em recente debate promovido pela Ponte sobre prisões sem provas, a advogada Priscila Pâmela Santos, integrante da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) São Paulo e do IDDD (Instituto de Defesa pelo Direito de Defesa), definiu o reconhecimento como uma prova “não segura”.

    “Nossa memória não é máquina fotográfica. Como se tivéssemos uma espécie de HD, misturamos a vida com pessoas que vimos, filmes… E é complexo reconhecimento a partir dessa memória, que não tem registro preciso, talvez possa levar a condenação de alguém. No EUA, mais de 40% das condenações se baseiam na fala da vítima”, argumentou, à época.

    A situação piora quando se trata de pessoas de cores diferentes, como no caso de Lucas, um jovem negro identificado por duas vítimas brancas. “Estudo demonstra que pessoas de cores diferentes tem muita dificuldade de apontar detalhes na outra. Não conseguimos reconhecer no outro a diferença. Tem o recorte feito por distinção de identidade e, para além, o momento, a carga emocional pesada não gera um reconhecimento seguro”, explicou.

    ‘Depoimento é a prova mais fraca’

    Irapuã Santana, professor de direito processual e ex-assessor do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Luiz Fux, analisou o processo de Lucas a pedido da Ponte. Segundo sua análise, os elementos probatórios são “fracos” para a condenação. “Irregularidade [no processo] eu não vi, mas é a palavra de três contra a de uma pessoa. Depois teve reconhecimento em juízo também. Depoimento é uma prova legítima, mas é a mais fraca”, diz o criminalista.

    A Ponte questionou a SSP (Secretaria da Segurança Pública) de São Paulo, comandada pelo general João Camilo Pires de Campos neste governo de João Doria (PSDB), sobre o processo de reconhecimento feito pela Polícia Civil na delegacia do Capão Redondo. No entanto, a pasta não respondeu aos questionamentos antes da publicação desta reportagem.

    O mesmo aconteceu com o pedido de explicação feito ao MP-SP quanto às provas que fizeram promotores denunciarem e manterem a acusação sobre Lucas. Já o TJ-SP explicou que o processo corre em segredo de Justiça “e desta maneira não temos detalhes do processo”, conforme nota enviada pela assessoria de imprensa, que detalhou apenas o resumo das decisões desde o reconhecimento até a apreensão de Lucas na Fundação Casa.

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