Kauan e Lucas ficaram 11 dias detidos em Santo André e foram liberados nesta quarta-feira (15/1): ‘muitos pagam por uma coisa que não fizeram’
Onze dias que pareceram um ano. Era assim que os familiares e amigos de Kauan Oliveira Santos, 18 anos, e Lucas Andrei Nascimento Dias, 20, explicam como foram os dias que os dois jovens ficaram presos após serem acusados de dois roubos em São Bernardo e Santo André, cidades da Grande São Paulo no dia 2 de janeiro. Os dois ganharam liberdade provisória nesta quarta-feira (15/1) graças a decisão da Justiça, mas seguem respondendo judicialmente pelos crimes.
A juíza Teresa Cristina Cabral Santana, da 2ª Vara Criminal de Santo André, entendeu que não havia como justificar as prisões porque os dois foram reconhecidos de maneira informal e nenhum pertence das vítimas havia sido encontrado com eles.
“Viver em um quadrado, vendo o sol nascer quadrado, não ter noção de nada, é bem ruim. Eu não desejo isso para ninguém”, desabafou Kauan, sobre os 11 dias que permaneceu preso. Ele revelou de onde tirou forças para manter a cabeça centrada e não se desesperar. “Os dias foram ruins, a hora não passava lá dentro. Mas eu me apeguei muito a Deus. Eu sabia que isso ia acontecer, que eu ia sair”, explicou.
As vítimas dos dois roubos – a um carro modelo Chevrolet Spin e outro a um homem que andava na rua – reconheceram Kauan por ele usar um bigode fino e uma blusa. O reconhecimento ocorreu logo após a versão de prisão em flagrante contada pelos PMs que os abordaram e apresentaram ao delegado da Polícia Civil Dimitrius Moraes Costa, do 1º DP de Santo André. Uma das vítimas que apontou Lucas como suspeito chegou a dizer que suspeitava dele, mas não tinha certeza que era o outro autor dos crimes.
O reconhecimento feito na delegacia, comandado pelo delegado Dimitrius Moraes Costa, não seguiu o padrão do CPP (Código de Processo Penal), como consta no termo de declaração, pois não colocou pessoas de características físicas próximas para a vítima apontar quem seria o suspeito. O delegado alegou “ausência de pessoas semelhantes” para seguir com o reconhecimento solitário de Kauan e Lucas.
Eles ficaram presos no CDP (Centro de Detenção Provisória) de Santo André, na Grande São Paulo até esta quarta-feira (15/1). O horário previsto para a saída era às 10h, mas só perto das 16h eles deixaram a cadeia. Mais de 60 pessoas aguardavam ansiosas a saída dos jovens embaixo de um sol de aproximadamente 30ºC. Eram amigos e familiares, em grande maioria esperando por Kauan.
Kauan trabalhou três anos como jovem aprendiz no Fórum de São Bernardo e um ano como assistente de advogado no escritório no qual sua tia trabalha. Ele contou à Ponte que agora planeja retomar a faculdade de Direito, trancada por falta de dinheiro para a mensalidade, e lutar contra prisões como a sua. “Quero ser advogado e na área de direitos humanos, porque não é só eu ou o Lucas, muita gente ali dentro está pagando por uma coisa que não fez”, revelou.
Uma grande comemoração aguardava Kauan em casa, poucas ruas abaixo do CDP, no bairro Vila Sacadura Cabral, periferia de Santo André. A família organizou uma festa para o jovem se sentir novamente em casa com foto dele com amigos e parentes coladas na parede.
A mãe de Kauan, a doméstica Luciane Sales de Oliveira, 41 anos, demonstrou alívio ao vê-lo livre. “Sofremos muito nesses 11 dias, ainda mais porque ele não cometeu esse ato, então a indignação é maior. Ele jamais tiraria uma coisa de alguém, pelo contrário, ele tira do corpo para dar para outra pessoa”, garantiu. “Agora ele vai retomar a vida dele, retomar o trabalho e vai voltar para a faculdade. E esquecer esse pesadelo. Foi muito gostoso abraçar ele. Em casa tava faltando algo nesses dias e era ele”, cravou Luciane.
A secretária Maria de Fátima Santos Oliveira, 51 anos, tia de Kauan, também vibrou com a saída do sobrinho. “Ficamos 11 dias no sufoco, tentando provar a inocência dele e hoje temos a liberdade dele. Eles deveriam mostrar as provas, não a gente provar que ele é inocente”, assegurou. “Daqui para frente é tentar a absolvição dele no dia da audiência. Vamos lutar para absolver os dois. Depois o Estado vai ter que reconhecer o erro, tanto com o Kauan quanto com o Lucas. Não tenho nem palavras para explicar o que é ver um inocente sair de dentro da cadeia”, comemorou a tia.
Lucas conversou com a reportagem na saída do presídio. Mais tímido do que Kauan, ele afirmou ter passado por um tempo complicado e reflexivo dentro do CDP de Santo André. “Estou feliz, estava preso por uma coisa que não fiz e agora posso encontrar minha mãe de novo. Desejo esse lugar para ninguém. Foi bem ruim ficar aqui, mas Deus sabe o que faz. Agora é só responder e livrar de vez essa acusação”, disse. Logo em seguida, saiu rumo à sua casa. Passava a sensação de que não queria estar nem um segundo a mais perto da prisão em sua vida, mesmo que do lado de fora.
Antes da partida, a costureira Elisabete do Nascimento Voltarelli, 58 anos, mãe de Lucas, contou que foi uma batalha saber que o filho estava preso por um crime que não havia cometido. “Eu fiquei todos esses dias sem ele, ia trazer o jumbo [como são chamados os itens de higiene e alimentação levados aos presos] pela primeira vez hoje”, comentou, criticando as seguidas decisões que geraram o aprisionamento de seu filho. “Deveria ter muitas provas para prender alguém. Meu filho não vai ser o primeiro e não vai ser o último, mas dá dó. Meu menino é uma pessoa tranquila, tímida. Aqui eles estão levando gente inocente”, afirmou.
Bruna Basílio de Morais Silva, advogada de Kauan, explicou como será o processo daqui para frente, não tendo terminado com a liberdade dos dois. A defensora conta que a audiência, que estava marcada para 20 de fevereiro, foi reagendada para o dia 1 de julho.
“Agora ele vai responder em liberdade. Vamos apresentar a defesa, mas vários elementos de provas já foram anexados aos autos, por isso conseguimos a liberdade provisória. Com isso, conseguiremos comprovar de que ele não estava no local dos fatos, que ele não é culpado, que é inocente. Assim como o Lucas”, detalhou Bruna.
A Ponte questionou a SSP-SP (Secretaria da Segurança Pública de São Paulo), comandada pelo general João Camilo Pires de Campos neste governo de João Doria, sobre os procedimentos adotados desde a abordagem da dupla feita pela PM até o pedido de prisão preventiva solicitado pela Polícia Civil. Em nota enviada no dia 14 de janeiro de 2020, a assessoria de imprensa terceirizada, a InPress, informou que a prisão aconteceu “em flagrante” e que estão presos preventivamente.
A reportagem também entrou em contato com o MP para questionar os elementos que basearam a denúncia feita cinco dias após a prisão de Kauan e Lucas. Em nota enviada às 18h18 do dia 15/1, a assessoria de imprensa do órgão limitou a explicar que a “denúncia foi oferecida com base no inquérito policial e o MP somente se pronuncia nos autos”. O promotor do caso negou pedido de entrevista.