Pessoas de visões políticas diferentes conviviam bem dentro das igrejas até 2018, quando a direita bolsonarista chegou aos púlpitos, provocando divisões e perseguições
Sendo evangélico e progressista, não poderia discordar mais da presunção de que há uma “crentefobia” injusta e imotivada por parte dos setores progressistas da sociedade . Nesse assunto em específico eu estou em posição privilegiada pra falar, por já lidar com o tema em minha vida cotidiana há bastante tempo, por escrever sobre o assunto e por falar do tema em vídeos e podcasts ao menos desde 2015, e também pela rede de amigos evangélicos que criei em mais de 20 anos frequentando quatro congregações diferentes.
Em primeiro lugar: a retórica da “crentefobia” só reverbera o discurso comum no meio neopentecostal para justificar isolamento em relação à sociedade. Quem usa muito esse termo (alternando com Cristofobia) é o Pastor Marco Feliciano, e reverberar essa retórica é legitimar o discurso dele, do Pastor Silas Malafaia e de outros líderes ligados à bancada evangélica. É ter a visão do projeto de poder evangélico que tenta tomar os três poderes da República, ancorado em instituições fortes e lideranças carismáticas que tem grande poder de persuasão sobre os membros de suas igrejas.
Outra coisa: quem alimenta o sentimento sectário dentro das igrejas, via de regra, não é a esquerda, por um motivo que todos nós percebemos desde 2018 ao menos: a esquerda é minoria nas comunidades. A esquerda não está no púlpito da maioria das igrejas e nem deve estar. Afinal, o púlpito sempre foi visto como um lugar onde Deus fala, e não como um local de manifestação política. Até algum tempo atrás, pessoas de direita e de esquerda coexistiam dentro da igreja mesmo discordando, justamente por não manifestarem esse pensamento político dentro dos espaços sagrados da igreja. Claro que tivemos algumas manifestações e posicionamentos nas eleições anteriores, especialmente na de 2010 e na de 2014, com algum viés conservador, mas esse sempre foi um assunto absolutamente secundário nas comunidades.
Quem mudou isso foi a direita bolsonarista.
Em 2018, eu vi diversos casos de igrejas que se posicionaram em púlpito pela primeira vez. Todas elas, sem exceção, pró Bolsonaro. E isso traz um problema. O púlpito é sagrado pra maioria das igrejas evangélicas. O que sai de lá é “Deus falando”. Isso provocou perseguição. Muitos amigos meus, irmãos de caminhada, vieram desabafar comigo porque estavam sofrendo perseguições em suas igrejas no contexto eleitoral. Porque o pastor mandou apoiar o Bolsonaro e o irmão em questão não queria, daí o irmão estava em rebeldia, em desobediência, tinha que se arrepender de seus pecados. Isso é verdade especialmente em igrejas centralizadas na figura do pastor, sem um conselho de líderes atuante ou uma assembleia de membros. Nessas igrejas, o pastor é a autoridade espiritual suprema, “o anjo da igreja”, e sua palavra geralmente é incontestável.
A lógica da coexistência foi substituída por uma lógica de imposição. Quem estava contra o Bolsonaro ou se afastava da igreja ou ficava quieto para não ser perseguido. Pessoas que estavam passando por esse tipo de situação chegaram a montar grupos pra compartilhar experiências de perseguição dentro das comunidades e para criar uma estrutura mínima de apoio mútuo que ajudasse a manter a fé nessa situação adversa.
Com todo esse passivo recente, é preciso ressaltar: não é a esquerda que precisa fazer uma autocrítica. A crítica que eu tenho à esquerda é a de ter tentado instrumentalizar os evangélicos em certo momento. Os grupos mais conservadores se sentiram traídos a partir de 2010, quando as pautas identitárias apareceram mais no programa do partido, desagradando grupos ligados a movimentos religiosos. Até então, o evangélico convivia tranquilamente em um governo progressista, defendendo pautas conservadoras no plano moral. Nesse plano, a maioria dos evangélicos defende, sim, pautas que trazem conflito com programas mais progressistas, como a proibição do aborto, por exemplo, que esteve no cerne da campanha antipetista de 2010, quando o caminho para a revisão das posturas se fechou na maioria das igrejas evangélicas, onde, ressalte-se, conservadorismo e aversão às mudanças são valores interpretados como ortodoxia, como fidelidade à imutabilidade das escrituras sagradas.
Depois ainda teve Dilma fazendo um governo sem diálogo, a ascensão das pautas conservadoras, a eleição de 2014, os protestos, o impeachment. Tudo contribuiu pra alinhar a maioria absoluta dos líderes evangélicos à direita.
Também é preciso dizer que esse conservadorismo traz conflitos em alguns temas em específico, e nesse caso a intelligentsia acadêmica do país tem, sim, um ranço com evangélicos. Não por sua crença, mas porque uma característica importante desse conservadorismo é a defesa de uma interpretação literal das escrituras. Isso traz problemas em diversos campos do conhecimento. Na biologia, na paleontologia, na geologia e na física, por exemplo, os defensores do criacionismo de Terra Jovem (a teoria que preconiza que a Terra não tem mais de 6 mil anos) realmente incomodam, tentando discutir questões que já estão cientificamente consolidadas. Em temas sensíveis, como em pesquisas sobre aborto, drogas e questões de gênero, esse incômodo tem sido crescente também.
Mas, fora desses assuntos sensíveis, a postura atual da academia em relação aos evangélicos (e a pessoas de qualquer outra religião) se aproxima mais do que a professora da UFPR Karina Kosicki Belotti definiu como Sheilismo: a concepção do divino para as pessoas está individualizada a ponto de cada um construir uma visão de divindade a partir de seus próprios valores. As crenças estão mais individualizadas, e quando você diz ser evangélico o rol de coisas que isso significa é tão grande que pode ser qualquer coisa. E é uma regra de etiqueta não escrita da academia a de que ninguém pode dar palpites sobre a crença individual dos outros se essas crenças não afetarem o andamento das pesquisas científicas realizadas.
Feito esse aparte, é com dizer que, após o impeachment, só faltava um líder pra agregar esses diversos líderes evangélicos alinhados com a direita conservadora. Daí veio o Bolsonaro. Bolsonaro soube surfar como ninguém nesse ambiente conservador, usando passagens bíblicas pra se consolidar.
É azarão? “DEUS NÃO ESCOLHE OS CAPACITADOS”.
É burro? “O TEMOR DO SENHOR É O PRINCÍPIO DA SABEDORIA”.
Só fala merda? “DEUS ESCOLHE AS COISAS LOUCAS DO MUNDO PRA CONFUNDIR AS SÁBIAS”.
Daí veio a facada. E a facada inseriu um componente profético na campanha. Pastores começaram a usar os púlpitos, especialmente no último domingo pré 1° turno, pra lançar um monte de PALAVRAS PROFÉTICAS sobre o Brasil.
“Deus levantou Bolsonaro pra vencer a potestade do PT.”
“Deus me mostra que está libertando o Brasil de uma opressão demoníaca.”
“Ele sangrou por nós.”
“Ele teve seu lado furado como Cristo para nos libertar.”
Essas frases realmente foram faladas em púlpitos, geralmente sob uma música worship de fundo e gritos glorificando a Deus.
O que eu quero dizer é:
A igreja institucional brasileira, com algumas exceções, se alinhou ovinamente ao Bolsonaro. Como ovelhas seguindo um pastor. Isso precisa ser falado porque rompeu inúmeras relações de irmandade dentro das igrejas, provocando divisão interna. Agora, assusta bastante que ninguém esteja pensando nessas pessoas que foram perseguidas dentro da igreja, afastadas de seus amigos, traídas por pessoas em quem confiavam a ponto de falar e de orar por questões sensíveis como uma crise no casamento ou uma doença na família.
E daí, quem é progressista e insiste em buscar comunidades mais inclusivas, ou é perseverante em permanecer frequentando sua comunidade depois de tudo o que aconteceu acaba duplamente atacado: é chamado de “crentefóbico” por analistas políticos e é chamado de esquerdopata por defensores do Bolsonaro.
O problema não é o progressismo. Sempre teve gente religiosa no progressismo brasileiro. O PT não existiria da forma que passou a existir nos anos 80 sem as comunidades eclesiais de base. Evangélicos sempre estiveram em partidos progressistas. Marina Silva, por exemplo, não se converteu ontem. O problema foi a divisão provocada em 2018 nas igrejas, fomentada pelo Bolsonaro e pelos inúmeros pastores e líderes de comunidades que o apoiaram. Daí o diálogo foi fechado, a interlocução simplesmente deixou de acontecer em muitos lugares. A esquerda tem várias culpas. Não essa.
Léo Rossatto é cientista Social, evangélico e um dos membros do @Teolabcast, podcast que fala de fé e religião desde 2017