O poder da rima

     Amanda Massuela, Bianca Castanho e Edoardo Ghirotto,

    A vida nas periferias vem melhorando da porta para dentro das casas. Mas os problemas sociais denunciados pelo rap ainda perseguem a população brasileira

     

    Este projeto, que a Ponte publica em uma série de semanal de 4 capítulos, foi desenvolvido como trabalho de conclusão de curso de jornalismo de Amanda Massuela, Bianca Castanho e Edoardo Ghirotto, da Faculdade Cásper Líbero.

    Foi batizado de Muita Treta Pra Vinicius de Moraes em alusão a uma famosa rima de Mano Brown na música Da Ponte Pra Cá, presente no disco Nada Como Um Dia Após o Outro Dia, lançado em 2002 pelo grupo Racionais MC’s.

    O objetivo é mostrar que o rap além de música e poesia tem um poder de transformação social poderosíssimo.

    Leia o 1o. capítulo:

    Matemática na Prática

    “Periferias, vielas, cortiços. Você deve estar pensando o que você tem a ver com isso”. A indagação de Edi Rock na música Negro Drama, do Racionais MC’s, elucida um dos principais desafios do rap brasileiro desde o seu surgimento: denunciar a desigualdade social como causadora dos problemas estruturais que afligem o país. Sabotage, um ícone quase incontestável dentro do movimento hip hop nacional, eternizou em suas letras o compromisso de dar voz aos excluídos e criticar as práticas que ajudam a ampliar a distância entre pobres e ricos, como o racismo, a criminalização das drogas e os abusos policiais. A fim de amenizar essas diferenças, o Brasil presenciou a aprovação de políticas públicas de redistribuição de renda após a estabilização da economia no governo Fernando Henrique Cardoso e a ascensão do Partido dos Trabalhadores ao poder, com os dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva e a gestão de Dilma Rousseff. Mas, numa sociedade classista, em que 124 pessoas detêm 12,5% das riquezas nacionais, segundo a revista Forbes, é inegável que exista um longo caminho a ser percorrido.

    O principal programa voltado para eliminar a pobreza no país é o Bolsa Família. A iniciativa do governo federal garante o depósito mensal de uma quantia variada de dinheiro nas contas de pessoas que vivem em condições de extrema pobreza – cuja renda mensal é de até 77 reais por mês –, ou pobreza, com renda entre 77 reais e 154 reais mensais. Em abril de 2014, o Bolsa Família ajudou mais de 14 milhões de famílias, o equivalente a cerca de 50 milhões de pessoas. Mas onde entra o rap nessa história? O presidente da ONG Nação Hip Hop, Beto Teoria, explica. “Não dá para as pessoas acharem que o discurso do rap de agora vai ser o mesmo discurso do rap da década de 1990. São realidades diferentes. O Capão Redondo e o Jardim Ângela não são mais o Capão Redondo e o Jardim Ângela da década de 1990.”

    Com incentivos públicos e o desenvolvimento econômico do país, o Brasil viveu nos últimos anos um fenômeno batizado de “ascensão da classe C”. Segundo o Instituto Data Popular, as aproximadamente 104 milhões de pessoas que sustentam a pirâmide social brasileira conquistaram expansão de crédito e poder de consumo inéditos até então. “Transferimos a base da pirâmide para o centro. É uma cobra que engoliu um boi, esse é o Brasil de hoje. A maioria das pessoas tem condições melhores que há dez anos. A vida na periferia melhorou da porta para dentro de casa”, destaca o escritor Toni C. As transformações econômicas foram tamanhas que os órgãos oficiais de estatística do governo passaram a classificar essas pessoas como uma “nova classe média”. “A favela está consumindo muito. Nas periferias você encontra carros que nunca achou possível ver na nossa época. Você tem uma televisão de plasma que parece cinema e consegue comprar coisas que antes não podia”, reconhece King Nino Bron, um dos precursores do movimento hip hop no Brasil.

    Mas, para alguns autores, essa denominação não seria adequada para descrever a atual situação do país. “A existência de empregos de dois salários mínimos moveu a base da pirâmide social, mas não suficientemente para avançar nessa ideia de medianização da sociedade”, afirma o economista Marcio Pochmann. De acordo com índices do Banco Mundial, o governo brasileiro erra ao classificar como “classe média” pessoas que não possuem acesso a bons sistemas de educação, saúde e saneamento básico, por exemplo. “Apesar das transformações, ainda há muito a ser feito. A mentalidade dos jovens [que cantam rap] não mudou tanto, os temas ainda são os mesmos. Se você conhece e vive a periferia e o rap, sabe que nada mudou tanto assim”, opina Criolo.

    O economista Marcio Pochmann aponta as razões pelas quais o consumo não deveria ser sinônimo de ascensão social. “Para quem vive na miséria, qualquer moeda salva”, alerta Toni C. “Mas como você vai falar em salvação se a pessoa está passando fome? Essa não é uma transformação qualquer, mas mesmo assim não basta por si só. É preciso amplificá-la e ter consciência de que existe pobreza. Eufemismo não acaba com o problema social. Criar uma palavra nova e bonita não resolve o problema de classe”. Para o escritor, é vital que o dinheiro – que se concentra no topo da pirâmide social – alcance as periferias e também o rap, para que ele seja capaz de ocupar novos espaços. Dessa forma, o gênero pode continuar se desenvolvendo não só como expressão cultural, mas como modelo de negócios gerador de empregos e renda para os jovens das periferias.

    Cidade Mutação

    E o que realmente são as periferias? Para a urbanista Raquel Rolnik, elas ultrapassam os conceitos geográficos baseados na distância entre os loteamentos e as regiões centrais das cidades. “A periferia é marcada muito mais pela precariedade, falta de assistência e recursos do que pela localização”, disse em entrevista à Revista Continuum. Segundo Raquel, a geografia não basta, porque, assim como existem condomínios de luxo em áreas consideradas periféricas – e que não deixam de ser elitizados por isso –, há também periferias em áreas nobres das cidades. O próprio Sabotage vivia na Favela do Canão, cravada no meio do Brooklin, bairro nobre da zona sul de São Paulo.

    Mas a cidade é mutação, como diria o grupo Z’África Brasil, e a construção da Avenida Roberto Marinho na gestão do então prefeito Paulo Maluf varreu a Favela do Canão para fora do mapa, em 1993. Dados da ONG Anistia Internacional revelam que, assim como a família de Sabotage, entre 2009 e 2014, outras 21.229 famílias foram removidas de suas casas nas periferias do estado de São Paulo. Vítimas da especulação imobiliária, que desapropria moradias em favor das grandes construtoras, elas passam a viver nas ruas ou em regiões ainda mais afastadas.

    Em 1964, na Inglaterra, um novo termo surgiu para identificar outro fenômeno social que tem castigado as periferias e os bairros populares ao redor do mundo. Com efeitos tão nocivos quanto aqueles provocados pela especulação imobiliária, a gentrificação – derivada do termo inglês gentrification, cunhado pela socióloga Ruth Glass – é identificada quando a dinâmica de um espaço urbano é alterada de tal forma que os moradores migram voluntariamente para outras regiões da cidade. Com a valorização dos terrenos causada pela construção de novos edifícios, comércios ou condomínios nas quebradas, o custo de vida sobe consideravelmente e provoca a expulsão dos antigos moradores, que deixam de se identificar – cultural e economicamente – com aquele espaço urbano. O fenômeno, antes observado com frequência em bairros pobres de Nova Iorque, como o Harlem, Bronx e Brooklyn, já é uma realidade nas periferias brasileiras. O Morro do Vidigal, no Rio de Janeiro, é um exemplo desta transformação.

    Rincon Sapiência e a gentrificação cultural: Nascido na Cohab I, próximo ao bairro paulistano de Itaquera, o rapper presenciou as transformações que ocorreram no local durante a realização da Copa do Mundo de 2014. Ele chama a atenção para os efeitos negativos que a gentrificação pode exercer sobre os movimentos culturais

    “Um dia sonhei que um campinho da quebrada era uma fábrica da Taurus”, canta o Z’África Brasil em Antigamente Quilombos, Hoje Periferia, de 2002. Produto direto das construções sociais do seu tempo, a cultura não sai ilesa de fenômenos urbanos como a gentrificação. A cultura hip hop, que desde o seu surgimento ocupou espaços públicos e se integrou à cidade, tampouco. “Uma de nossas atrações turísticas mais emblemáticas em Nova Iorque era o ponto de grafite 5 Pointz. Pessoas de todo o mundo iam visitá-lo. Eles demoliram o prédio neste último verão para dar lugar a um condomínio”, conta o educador mexicano Moisés Lopez, membro do Hip Hop Education Center de Nova Iorque. “Eles querem ter poder sobre nós, eles querem nos gentrificar. Você pode tomar conta do nosso espaço, acabar com nossa identidade física, mas você não conseguirá gentrificar a nossa cultura.”

    Mas poderia uma expressão cultural ser descaracterizada a ponto de seus seguidores e admiradores não mais se reconhecerem nela? Cabe à arte resistir ou ser gentrificada. O rap, nascido nos guetos, no olho do furacão das principais transformações sociais e urbanas dos últimos tempos, está inserido nesses processos que o envolvem, e por isso sente os efeitos de influências externas. Mas, mesmo que a bombeta saia de cena vez ou outra, que a estética bruta seja substituída pela camisa social nas capas de revistas – e que até mesmo o discurso dos próprios rappers se torne mais aberto –, é a essência que deve ser levada em conta.

    Nascido no ‘olho do furacão’ das transformações sociais e urbanas, a cultura hip hop ocupou espaços públicos e se integrou à cidade desde o seu surgimento.

     

    Acervo Nino Brown (4)

    Para Toni C., à parte de qualquer transformação conceitual ou estética, o rap segue como um instrumento de luta. “Se uma roupa mudar toda uma construção, a gente se perde e reproduz o preconceito e o racismo também, porque qual é o espaço que a gente não pode ocupar?”, indaga, referindo-se à capa da revista Rolling Stone de novembro de 2013, em que os integrantes do Racionais MC’s estão vestidos em trajes sociais. A imagem provocou polêmica entre os fãs, que passaram a se perguntar se o grupo ainda representava a periferia. “Tem que ocupar a capa da Rolling Stone, sim. Por que não? Será mesmo que a gente tem que usar terno só no dia do nosso enterro? O Emicida disse, uma vez, que usa terno na capa do disco [O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui] porque é seu trabalho. A gente só usa terno para fazer segurança privada em empresa de bacana?”, provoca o escritor.

    Se o espaço se transforma, a periferia faz da arte seu ponto de resistência. O economista Marcio Pochmann acredita que olhar com mais atenção para as políticas culturais é “absolutamente essencial para construir uma sociedade menos desigual”. “O artista, o cantor, aquele que vive nesse contexto cultural, tem mais sensibilidade que qualquer pesquisador, qualquer estudioso político, de perceber a realidade tal qual ela se manifesta”, diz Pochmann. “Eles têm uma capacidade nesse trabalho criativo de combinar as dificuldades com as possibilidades. Na medida em que essa trajetória ascendente da especulação imobiliária continuar, basta saber qual será o ponto deste segmento [o rap] que permanecerá no local que sofre com o capital imobiliário – e qual acompanhará novas iniciativas que surgirão conforme o deslocamento da população.”

    Fábrica de Rap

    De fato, a cada dificuldade que se impõe, outras tantas possibilidades são descobertas pelo rap. O acesso à tecnologia, a entrada de capital nas periferias e a queda dos modelos convencionais de produção de música, antes dominados pelas grandes gravadoras, desenharam um cenário propício para que o gênero encontrasse novas formas de organização. “O que estamos vivendo hoje é o que o rap americano viveu nos anos 1990, com o surgimento de selos especializados como a Def Jam e a Rock-A-Fella”, diz Slim Rimografia. O rapper mantém o seu próprio selo, Mokado Records, desde 2003, quando começou a vender CDs de mão em mão – “uma forma de a cultura hip hop fazer as coisas desde sempre”. Mesmo sem saber, Slim testemunhava o que seria o início de uma verdadeira revolução mercadológica protagonizada pelo rap, transformação necessária não apenas para que ele se difundisse com mais força, mas para que fosse capaz de sobreviver na indústria da música. “É muito importante que isso aconteça no Brasil, que apareçam selos e empresas que conheçam e entendam da música hip hop e que saibam o que ela representa”, acredita.

    Mirando o exemplo estadunidense, os rappers brasileiros começam a pensar o gênero também como modelo de negócio. Ao mesmo tempo em que capitalizam não só com a venda de discos, mas de roupas, acessórios e tudo o que se relacione ao universo hip hop, eles também se estabilizam enquanto empresa. Montam suas próprias produtoras e selos, responsáveis por negociar shows, organizar agendas e construir uma infraestrutura relativamente recente na história do rap brasileiro. “Hoje em dia, a maioria dos parceiros que eu conheço, tanto da nova geração quanto da velha, têm o próprio estúdio, muitos têm a sua linha de boné e de roupas, de tênis, seu CNPJ e a sua empresa”, conta Tio Fresh, membro do grupo SP Funk. “Esse paralelo é importante: você ter a música como mensagem, como algo que vem do seu coração, mas ter também o entretenimento. O 50 Cent tem uma marca de isotônico. Por que não ter?”, questiona. A explosão do consumo entre a classe C não se restringiu apenas a televisões ou geladeiras. Na música Só Isso (2009), Emicida canta: “Pensei que ia morrer de fome, comprei uma MPC”, referindo-se ao aparelho usado para produzir beats.

    A lógica de mercado parece, inclusive, predominar entre as principais iniciativas empreendedoras ligadas ao rap. A Laboratório Fantasma, comandada pelos irmãos Evandro Fióti e Emicida desde 2008, foi a primeira empresa de rap a conquistar uma importante fatia do mercado. Ela une desde a produção artesanal de discos, até os processos de distribuição, assessoria de imprensa, agenciamento de outros artistas e venda de camisetas e acessórios.

    LAB FANTASMA – O Empreendedorismo no Rap

    Fundada em 2008 pelos irmãos Emicida e Evandro Fióti, a Laboratório Fantasma se estabeleceu como empresa e tem conquistado um espaço importante no mercado musical brasileiro. A produção de roupas e acessórios trouxe fama à marca e inspirou outros rappers a investirem na venda destes produtos.

    Direta ou indiretamente influenciados pela Laboratório Fantasma, outros rappers passaram a tomar conta dos rumos de suas marcas, compreendendo que, além de música, o rap é um estilo de vida rentável – seja com a venda de produtos personalizados, como faz a Coffeshop ConeCrew, dos cariocas da Cone Crew Diretoria, ou por meio de organizações independentes como a VVAR. Idealizado pelo MC Marechal, o projeto estimula eventos sociais e trabalha com o agenciamento de outros artistas – há planos de se criar até programas de rádio online. “Quem realmente se estruturou está se mantendo, e acho que estamos num momento de estabelecimento”, analisa Kamau, que acredita que, mais que uma tendência, a profissionalização do rap foi uma necessidade. “O Busta Rhymes disse, numa premiação, que o rap é o único meio de atuação que dá emprego para quem não precisa nem gostar dele. Muita gente não vive o que a música diz ou não acredita no artista, mas faz o que tem que ser feito só por dinheiro. O artista é o único 100% focado na caminhada para que o seu sonho vire realidade.”

    A independência sempre foi uma realidade do rap brasileiro, que não precisou de gravadoras ou de grandes aparatos midiáticos para circular nas quebradas e atingir seu público. O próprio Racionais MC’s vendeu mais de um milhão de cópias do álbum Sobrevivendo no Inferno, de 1997, de forma totalmente independente. Mas o segundo passo, fundamental para a popularização do gênero no país – e até fora dele –, foi dado pelos rappers que entraram no jogo mais recentemente. O movimento, agora, é inverso: da mesma forma que os pioneiros influenciaram toda uma geração, a dinâmica mercadológica organizada pela nova safra de rappers provoca transformações na gestão das carreiras dos seus próprios mentores. “Assim como os caras que fazem freestyle depois de mim, do Kamau e do Marechal, eles conseguiram transformar isso numa vertente de mercado maior. A gente aprende com o novo e com o velho”, acredita Max B.O . “Hoje em dia, despertou no Racionais essa coisa de ampliar seu mercado, e em vários MCs e rappers das antigas também. O importante é você estar com a sua antena ligada, captar essas coisas e reconhecer com quem você aprende. Se o Racionais tivesse falado sim para tudo, talvez hoje o rap tivesse um mercado maior, mas não sei se teria a mesma essência”, pondera.

    Em 2009, depois de mais de vinte anos sem uma equipe profissional nos bastidores, o Racionais MC’s colocou a produtora Boogie Naipe, do rapper Mano Brown , à frente da organização dos seus negócios. “Com mais organização você consegue enfrentar os adversários mais fortes. Os resultados são melhores”, disse Brown em entrevista à Revista CULT. Da mesma forma, Dexter deixou de ser um artista agenciado para criar a Oitavo Anjo Produções e tomar as rédeas de sua carreira. “De certa forma, o rap é rentável, as pessoas compram o disco, a camiseta. Você vende o seu produto”, diz. “Além disso, eu estou com quarenta anos e preciso preparar alguma coisa para o meu futuro. Se sou um jogador, entro em campo para jogar. Mas quando eu parar, vou fazer o quê? Senti a necessidade de construir algo que me permitisse continuar trabalhando com a música no futuro”.

    As transformações sociais da última década afetaram todos os âmbitos do rap brasileiro. Se, a partir delas, novas formas de organização são possíveis, o mesmo se reflete na construção das rimas de artistas das novas gerações. Graças às conquistas de seus antecessores, elas experimentam boas doses de liberdade criativa.

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