Em entrevista, Raquel Rolnik sugere que o Estado deve disponibilizar imediatamente espaços em imóveis vazios e subutilizados para abrigar a população de rua
“Direito à moradia não é ter quatro paredes e um teto em cima da cabeça”, é uma frase que a arquiteta urbanista Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), costuma martelar há anos.
Em tempos de pandemia, contudo, fica mais fácil entender porque Raquel afirma que uma moradia digna é a base para a garantia de outros direitos básicos, inclusive à saúde. Hoje, pessoas que vivem nas ruas, nas periferias ou nas favelas estão muito mais desprotegidas contra a doença e também contra os seus efeitos econômicos. “Quanto menos condições as pessoas tiverem de fazer as medidas de prevenção, mais elas serão atingidas pela pandemia”, explica.
A urbanista, que já foi secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades e relatora especial para o Direito à Moradia Adequada do Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas), sugere, entre outras medidas, a disponibilização de espaços em imóveis vazios e subutilizados para a população de rua, a suspensão temporária de aluguéis e remoções e o oferecimento de uma renda básica para os mais pobres. Todas urgentes, segundo ela. “Evitar a convulsão social está nas nossas mãos”, avisa.
Ponte – Como a senhora vê as possíveis consequências sociais da pandemia de coronavírus no Brasil?
Raquel Rolnik – É preciso entender que os impactos não são uniformes e homogêneos para todos e as condições com que as pessoas têm de lidar com a pandemia também não. Com isso, qualquer estratégia de combate à pandemia, tanto do ponto de vista preventivo quanto do ponto de vista do atendimento de quem está com suspeita de ter pegado o vírus, precisa ser completamente diferenciada. Infelizmente até o momento vimos poucas medidas de isolamento no Brasil que consideram esses pontos. As orientações são genéricas para todos e não levam em consideração as diferenças entre os vários grupos sociais de poder lidar com isso.
Ponte – Como a senhora analisa a questão da moradia dentro de um cenário tão heterogêneo?
Raquel – A questão da moradia é absolutamente central. O direito à moradia adequada já é um direito para todos, inclusive do ponto de vista do marco internacional dos direitos humanos. Direito à moradia não é ter quatro paredes e um teto em cima da cabeça. A definição de moradia é a moradia como um portal, um lugar, um território a partir do qual é possível acessar o direito a educação, o direito ao meio ambiente adequado, meios adequados para a sobrevivência e para o desenvolvimento humano. Então, é importante entender que para além de manter a pessoa protegida do frio, da chuva e tudo o mais que pensamos quando falamos de moradia, há elementos que levam em consideração a localização e a possibilidade de o indivíduo ter acesso aos recursos que a cidade disponibiliza, inclusive de prevenção e tratamento de saúde. Em uma pandemia como essa fica evidente o que podemos considerar como moradia adequada ou não. Como isolar uma pessoa que mora na rua ou quando a família inteira mora em um cômodo? São situações que precisam ser olhadas e se pensar em estratégias para elas. Segundo os dados do Sistema Nacional de Informações de Saneamento, o Snis, 35 milhões de pessoas no Brasil não têm acesso a água encanada. E a gente sabe como encontrar essas pessoas. As companhias de água, como a Sabesp [ Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo], sabe onde tem e onde não tem água. Então o município pode obrigar a companhia, seja ela pública ou privada, a olhar isso e disponibilizar água encanada, através de torneiras, onde não existe. Disponibilizar água e sabão.
Ponte– Quais grupos devem ser os mais afetados?
Raquel – Quanto menos condições as pessoas tiverem de fazer as medidas de prevenção, mais elas serão atingidas pela pandemia. Por isso é absolutamente necessário identificar os locais mais vulneráveis e estabelecer uma estratégia de prevenção. Estamos falando de vulnerabilidade de moradia e também vulnerabilidade econômica. Como isolar uma pessoa que vive com a família inteira dentro de um cômodo? É uma série de condições que têm que ser minimamente pensadas para ela. Isolamento social, para a maior parte da população, significa não ter como sobreviver. Sobretudo o setor de serviço informal, que é o que dá renda para uma parte importante da população. A partir do momento em que esses serviços são suspensos em função do isolamento, essas pessoas não têm renda.
Ponte – O que deveria ser feito, de imediato, para aliviar os impactos nas favelas e periferias?
Raquel – As organizações sociais da Espanha estabeleceram o que a sociedade civil está chamando de choque social, que consiste em disponibilizar espaços em imóveis vazios e subutilizados. Precisamos fazer isso aqui imediatamente. Se não fizemos no nível federal ou estadual, tem que ser no municipal. A disponibilização desses espaços para alojamento provisório pode ser feita com a convocação do governo, mas também com a sociedade civil disponibilizando esses locais. Aqui no Brasil há uma campanha para aumentar os locais disponíveis para isolar idosos, que devido às condições de moradia não conseguem fazer o isolamento. Isso precisa ser mapeado e a partir daí, quartos, lugares serem disponibilizados. O mesmo vale para a população em situação de rua, com a disponibilização de locais para que eles possam se isolar. Precisamos fazer isso imediatamente, se não fizermos no nível federal, precisamos fazer no nível municipal e estadual. Outro exemplo que pode ser seguido é a suspensão emergencial do pagamento de aluguel, suspensão dos despejos e remoções nesse período, para que as pessoas não sejam desalojadas justamente quando precisam ficar em casa. Várias organizações aqui em São Paulo trabalharam com uma carta dirigida a representantes estaduais e municipais de São Paulo, solicitando a suspensão imediata dos despejos e remoções. É necessário que seja uma política de Estado. É uma medida de moradia central que já está sendo adotada em várias cidades do mundo. É importante também uma política que suspenda qualquer tipo de demissão e disponibilize uma renda básica para que as pessoas continuem sobrevivendo nesse contexto. O presidente da África do Sul já estabeleceu uma bolsa de renda para as pessoas que ganhem menos que determinado valor. O presidente Trump propôs uma renda, um depósito de 2 mil dólares de uma vez por pessoa. Fora isso, o confinamento tem exacerbado a violência doméstica. As medidas de prevenção à violência doméstica são muito importantes, assim como no campo da saúde, tanto física quanto mental.
Ponte – Em sua opinião, quais medidas podem ser tomadas para garantir a proteção e isolamento social da população que vive em situação de rua?
Raquel – Uma medida essencial é o estabelecimento de banheiros e torneiras. Se pensarmos onde as pessoas podem fazer suas necessidades e se higienizar, fica evidente que já é uma medida necessária em um contexto normal, do dia a dia. Isso é muito mais importante nesse momento, permitindo, inclusive, condições melhores para as pessoas se manterem. Além disso, é preciso pensar nos abrigos, que sempre foram muito criticados quando se trata de política de moradia, pois a população sem teto não precisa de um lugar para dormir, mas de moradia definitiva. Nesse contexto de pandemia é mais importante ainda que se ofereça moradia adequada, condições isolamento, que tenha água, sabão, álcool e minimamente a condição de alimento. A segurança alimentar é muito importante para que os corpos possam desenvolver a doença de forma branda. A doença vai matar quem tiver mais fraco e quem não comer vai ficar mais fraco.
Ponte – Que efeito essa pandemia pode ter nas cidades brasileiras? Há risco de convulsão social?
Raquel – Vai depender muito da forma como as cidades se organizarem para enfrentar essa pandemia. Eu tenho observado duas reações diferentes. Uma reação é a solidariedade das pessoas, que têm feito campanhas para compras coletivas e distribuição de alimentos, realizado compras para os idosos, apoio, trabalho, isso é muito importante. Claro que essas medidas que vêm da sociedade podem ter outra dimensão se forem reforçadas por iniciativas do Estado. Isso pode ter uma capacidade muito grande de ir na posição contrária da convulsão social. Se isso não acontecer, o desespero vai tomando conta, a luta feroz contra tudo e contra todos, posições egoístas, como acúmulo de comida… Isso pode acontecer em todos os níveis, na família e no governo. E aí pode culminar na convulsão social. Isso está em nossas mãos.
Ponte – Quais medidas solidárias que não vêm da sociedade civil você poderia citar?
Raquel – Uma medida como a da Aneel [Agência Nacional de Energia Elétrica], que suspende o corte de energia elétrica por 3 meses, em caso de falta de pagamento, é uma medida desse tipo. A medida tomada pela Sabesp de suspender o pagamento de água para aqueles que pagam tarifa social, também é uma medida de solidariedade, uma medida que ressoa com as medidas da sociedade civil. A medida da Sabesp de distribuir caixa d’água em Paraisópolis é uma medida importante também e que vai nessa direção. Precisamos pressionar o governo para esse tipo de medida. É esse tipo de medida que precisa ser tomada.
Ponte – Quais medidas que ainda não foram tomadas e que você acha importante?
Raquel – Nesse momento eu acho que a questão fundamental além da renda básica é a segurança alimentar e a segurança sanitária. Isso pode ser feito também através da mobilização da sociedade civil sob a liderança do governo, de termos pontos de distribuição de comida, distribuição de cesta básica, venda de refeições a preços populares para quem não tem dinheiro para comprar ou fazer. Nessas horas quem tem mais recursos precisa entender que precisa disponibilizar, isso sem isentar o governo e o Estado de fazerem o papel que é deles.
Ponte – É possível que, com a intenção de combater o coronavírus, o Estado adote ações autoritáriass, como se viu na Revolta da Vacina de 1904?
Raquel – Acho que temos várias dimensões. Quando começou a pandemia uma das primeiras ações foi o decreto do Ministério da Justiça, dizendo que era possível o uso da força policial para obrigar as pessoas a se internar e tomar as medidas. É preciso pensar em que direção se trabalha. Se será na direção de fazer campanhas de esclarecimento, mobilizar os recursos públicos e privados para viabilizar as medidas ou se será na direção de reprimir, prender e encarcerar. Há um perigo de se mobilizar medidas autoritárias. Às vezes são necessárias medidas de fiscalização, para saber o porquê de a pessoa não estar tomando as medidas, mas o mais importante dentro disso é entrar em contato com as diferentes condições e poder proporcionar isso, sem impor, pelas vias da violência e da força.
Ponte – Um desastre como esse pode ser usado para expulsas pobres de suas casas e aumentar a concentração de terra e renda, como ocorreu em desastres naturais, a exemplo do Katrina? Pode haver um agravamento na crise de moradia?
Raquel – A situação da pandemia é muito diferente da situação de um desastre natural. Em um tsunami ou em um conflito como a guerra, as pessoas são obrigadas a sair e então o local é incorporado, apropriado por quem tem mais condições econômicas ou política. A epidemia é diferente, porque na verdade a medida é a do isolamento. No entanto, o que pode acontecer é ampliar o estigma de um lugar já estigmatizado, como a Cracolândia. Por ser um lugar que já tem conflitos com policiais, bombas, etc., a pandemia pode ser um pretexto para que aquele local seja eliminado a força sob a alegação de ser foco de contaminação e infecção. Mas isso dentro de um processo que já estava acontecendo antes. O perigo é utilizar a pandemia para legitimar a destruição do lugar e das vidas que estão lá.
Ponte- O coronavirus é uma crise bem específica por não se limitar à saúde, afetando também a economia de países no mundo inteiro. Você acha que é possível os governantes caminharem para uma medida parecida com o Plano Marshall, ocorrido após a 2ª Guerra Mundial?
Raquel – Essa pandemia tem deixado explícito o limite e a perversidade dos credos neoliberais de que o mercado garantirá saúde e comida para todos e que a única missão do estado é garantir o crescimento do mercado. O Plano Marshall está muito conectado com o desenvolvimentismo, a ideia de retomar a produção, retomar consumo… A pandemia do coronavírus está chegando em um momento que temos outras pandemias nos atingindo, como a crise ambiental e os efeitos que ela gera na vida das pessoas. Eu tenho muito cuidado ao falar de Plano Marshall, porque eu tenho saudade de um plano no sentido de mobilizar recursos públicos para apoiar os mais necessitados, mas eu não tenho nenhuma saudade do Plano Marshall como modelo de projeto de desenvolvimento do país. É nesse momento que é preciso pensar sobre qual é o modelo de sociedade. Esse momento de crise é um momento importante para pensar em outros modelos, para praticar outros modelos.