Dados do Sou da Paz mostram que 70% das vítimas foram mortas em casa; “antes da agressão, vieram ofensas”, diz vítima de violência doméstica
Em 2019, 180 mulheres foram vítimas de feminicídio no estado de São Paulo. Cerca de 70% das vítimas foram assassinadas dentro de casa. É o que aponta o “Sou da Paz Analisa” (veja o documento completo aqui), elaborado pelo Instituto Sou da Paz.
Em 2019, segundo o levantamento, houve um aumento de 30% em relação ao ano anterior, quando o estado registrou 137 feminicídios. Os dados também reforçam que a residência é o principal local onde os crimes de feminicídio acontecem: 125 dos 180 casos ocorreram dentro de casa.
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A base de análise do Instituto Sou da Paz são as estatísticas criminais disponibilizadas pela Secretaria da Segurança Pública e pelas Corregedorias das Polícias Civil e Militar de SP. O documento também revela que em 80% dos casos a vítima conhecia o autor do feminicídio.
A modelo transexual Sâmella Vinter Porchera, 29 anos, é uma sobrevivente da violência doméstica. Ela conheceu o dançarino espanhol Gabriel Abimalec Garcia Mendoza, 27, em agosto do ano passado e não demorou muito para começarem um relacionamento. Antes mesmo de o namoro der certo, os primeiros sinais violentos já apareceram, mas Sâmella decidiu continuar. Gritos e empurrões antecederam as agressões físicas, que aconteceram a primeira vez em dezembro, quando ela quis terminar com Gabriel.
No dia 5 de abril, ela obteve na Justiça paulista uma medida protetiva que obriga seu ex-companheiro a manter ao menos 300 metros de distância dela.
A decisão foi tomada pelo juiz Celso Lourenço Morgado após a mulher registrar ao menos três boletins de ocorrência em um curto período relatando agressões cometidas por Gabriel. O documento não tem prazo de validade.
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A medida protetiva concedida à Sâmella determina que Gabriel fica “proibido de aproximar-se da ofendida, dela devendo manter distância mínima de 300 metros”. Ele também não pode tentar qualquer contato com a vítima, por qualquer meio: redes sociais, telefone, Whatsapp, além de estar proibido de frequentar a residência ou local de trabalho da modelo.
O juiz ainda pontuou que “as medidas protetivas acima devem ser concedidas para evitar-se a ocorrência de novas situações de risco, preservando-se a integridade física e mental da mulher”.
O despacho foi feito depois da elaboração de boletim de ocorrência de ameaça, violência doméstica e injúria elaborado na manhã do dia 4 de abril pela 1ª Delegacia de Defesa da Mulher, localizada no Cambuci, região central da capital paulista.
De acordo com Sâmella, neste dia, Gabriel já não vivia mais na mesma casa que ela, porque a modelo o colocou para fora depois das constantes agressões. No entanto, por volta das 10h, ele passou a enviar diversas mensagens via WhatsApp com cunho transfóbico e ameaças de morte. Foi então que ela decidiu fazer o registro da ocorrência como medida preventiva.
Violência nas palavras
As primeiras agressões começaram quando Sâmella e Gabriel, que viviam juntos na Europa, chegaram no Brasil. Em dezembro de 2019, durante uma estadia na casa dos pais da modelo, em Colatina, no Espírito Santo, Gabriel teria entrado em luta corporal com ela e seu pai, um idoso de 63 anos, após uma discussão sobre o término do relacionamento.
O dançarino pediu desculpas e Sâmella aceitou. Mas, quando chegaram em São Paulo, em janeiro deste ano, as agressões se intensificaram. “Travesti, puta, operado, você não é ninguém, você precisa dar a buceta para ganhar dinheiro. Eu vou te matar, você vai ter que pagar tudo enquanto estiver viva, mas eu vou voltar para te matar”, cita um trecho do B.O..
Ainda, segundo o documento, Gabriel pediu para que a recepcionista do hotel ligasse para o quarto de Sâmella exigindo que ela o fosse receber na entrada do edifício localizado na rua Bela Cintra, região da avenida Paulista.
Na sequência, Sâmella conta que desceu junto com um amigo para encontrar Gabriel. Foi nessa hora que o espanhol, munido de uma faca, tentou matá-la. O B.O. ainda informa que Gabriel foi contido por policiais militares, mas que não foi conduzido para a delegacia.
À Ponte, Sâmella contou estar com medo, já que o ex-companheiro continua enviando mensagens para seu celular, agora pedindo desculpas, mas descumprindo o que determinou a medida protetiva.
A modelo estava em ascensão profissional e chegou a ser capa das revistas Sexy, de janeiro, no Brasil, e Playboy, em março deste ano, em Portugal e no Chile.
“As brigas eram por homofobia e quando eu não dava dinheiro para ele comprar drogas. A sociedade não abre as portas, já denunciei várias vezes, já fui parar no hospital. Os abusos estão cada vez pior. Tenho medo de morrer”, disse, aos prantos.
Parceiro íntimo é autor da maioria dos crimes
Em entrevista à Ponte, Carolina Ricardo, diretora-executiva do Sou da Paz, considera alarmante a informação da pesquisa de que em 80% dos casos a vítima conhecia o autor do feminicídio.
“A gente sabe que a violência contra a mulher, em geral, acontece entre parceiros íntimos, é um companheiro, um namorado, um marido. Então o fato de acontecer dentro de casa é esperado”, aponta.
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Para melhorar a coleta dos dados, conta Carolina, a elaboração completa do boletim de ocorrência, e destaca a necessidade de dados racializados das vítimas e o perfil dos agressores (com idade, profissão e raça). Para ela, além das investigações, ter uma qualidade estatística é um caminho muito importante para criar políticas protetivas.
Um ponto que chama atenção, afirma Carolina, é que somente em 18% dos registros policiais há informações sobre o perfil racial da vítima. Dos 180 casos registrados em 2019, 130 não tinham a informação racial, 34 eram de mulheres brancas e 16 de mulheres negras.
“A gente ainda está em processo de melhoria de registro, de categorização desses crimes. Precisamos entender se as políticas públicas têm um direcionamento para o registro desses crimes, para que a gente consiga acompanhar os dois lados: o fenômeno em si e como ele vem sendo registrado pelas polícias”, explica.