Artigo | A genial literatura de mentira de Rubem Fonseca

    Ele enganou a todos nós para criar o grande escritor que merecidamente se tornou

    Ilustração Junião / Ponte Jornalismo

    “Ia lhe recomendar, garoto, que saísse da polícia porque era inteligente demais para estar aqui. Seu lugar não é aqui. Mas não porque pensa diferente. Porque é subversivo. E um pobre ser subversivo é perigoso. Se a polícia não perceber isso logo, ambos terão problemas.” (O Velho R.F. aconselhando o investigador Vital, no livro Ponto Quarenta)

    Tinha me esquecido de Rubem Fonseca. Se a notícia de sua morte não surgisse nestes tempos de tragédias coletivas provocadas pela peste, meu lamento talvez não merecesse mais do que um despretensioso comentário com amigos de trago. A solidão do isolamento, no entanto, intensificou a perda do escritor e me fez reconhecer que para ele escrevi um livro.

    Quando ainda era um moleque de dez anos no interior, encontrei na estante da única biblioteca das cidade um livro cujo título era, ao mesmo tempo, belo e indecifrável: “Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos”. Escondi a obra entre as pernas e a levei embora, com a expectativa de que entenderia aquilo. Nela encontrei um homem que vivia de escrever; pessoas estranhas pagavam para o protagonista viajar o mundo e criar histórias, ao mesmo tempo em que mulheres lindas se jogavam aos seus pés e satisfaziam seus desejos mais mundanos. Anos depois me vi devolvendo o livro ao mesmo lugar, sentindo-me culpado não pelo crime cometido, mas por não ter compreendido qualquer coerência entre o título e o enredo. Naquele momento, hoje reconheço, eu fui condenado a ser um escritor.

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    Comentei com professores sobre minha frustração e só então conheci Rubem Fonseca: “este não é seu melhor livro” – me disseram. “Comece pelos contos”. Em tempos sem internet em que o conhecimento era uma mercadoria cara, rara e destinada a poucos, descobrir que ele tinha sido policial chamou minha atenção. “É por isso que ele escreve tão bem”. De acordo com eles, Fonseca teria conhecido a vida como nenhum outro escritor, e a descrevia como verdadeiramente é. Sem dúvidas, seus contos eram precisos, ou seja, necessários para a língua portuguesa e certeiros como o disparo de um sniper. Mas nada, absolutamente nada ali me fazia acreditar na tal descrição da vida como queriam me convencer, exatamente como ela é. O fracasso, evidentemente, era meu.

    Descobri, depois, que Rubem Fonseca teria sido o equivalente a um escrivão de polícia, em um cargo burocrático da corporação carioca, uma espécie de “relações públicas”. Embora não tivesse contato com a investigação, isso o alçou a uma carreira pública de sucesso. Com a ajuda dos amigos influentes da cúpula da polícia, conseguiu uma bolsa para se aperfeiçoar nos EUA. Quando voltou, passou a trabalhar na empresa pública de energia elétrica fluminense Light, na mesma função. Anos depois, ferrenho apoiador da ditadura militar, foi nomeado diretor do IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), o órgão que sistematizou as bases ideológicas do golpe de 1964. Tudo isso sem concurso público.

    Depois, por circunstâncias da minha existência que não caberiam nesse texto, eu também me tornei policial, e isso só me afastou ainda mais da obra de Rubem Fonseca. Não encontrei na instituição nenhum traço do que ele escrevia, nem nas pessoas que a compunham.

    Não me era plausível ver advogados investigando crimes com a grandiosidade de um herói de jornada clássica, delegados incorruptíveis lutando contra o sistema ao ponto de sacrificarem suas próprias vidas, ou investigadores como coadjuvantes bufões de uma polícia cuja atividade fim é justamente investigar… havia algo de inverossímil na celebrada obra de Rubem Fonseca que eu não me atreveria a enfrentar. Constrangido, eu me perguntava onde estavam aqueles personagens.

    Enquanto ao meu redor os amigos policiais compunham a faixa social mais pobre do Brasil, cometendo pequenos crimes moralmente aceitáveis para não morrerem de fome e trabalhando arduamente para perpetuarem determinados grupos políticos no poder em troca de favores, o universo narrativo de Rubem Fonseca insistia em colocar figuras clássicas da classe-média tupiniquim (profissionais liberais e talentosos jovens sonhadores motivados pela herança do avô) como o imperativo imprescindível da investigação, fazendo de uma burguesia ilustrada um arremedo de policiais idealizados.

    Para elaborar minha decepção, passei a recolher os casos que investigava no trabalho na forma de crônicas despretensiosas publicadas em um  blog. Em pouco tempo, elas se tornaram um livro chamado Ponto Quarenta, hoje publicado pela Editora Veneta. Vital, o protagonista investigador que alinha os relatos, é um homem pobre no lugar errado fazendo coisas erradas.

    A primeira metade da noveleta são contos aparentemente desconexos, descrições frugais de violência cotidiana sem ambição de se tornar um todo. Até que certa madrugada, no encerrar de um plantão monótono, Vital é obrigado a receber na delegacia um Velho bem vestido e com sotaque carioca, que em determinado momento se identifica apenas como R.F., cuja fala abriu esse texto.

    Superadas primeiras linhas descritivas de praxe, inesperadamente surge um diálogo nonsense no qual o Velho R.F. passa a defender o legado de Rubem Fonseca com a hostilidade típica das histórias do escritor. O policial, surpreso, vê naquela caquética figura a própria imagem da decadência: entre dentes amarelos e gengivas doentes, percebe nele  cheiro de álcool e bosta. Quanto mais Vital o provoca desmerecendo a obra de Rubem Fonseca, mais o Velho R.F. se enfurece, divertindo e assustando o investigador. É a batalha de professor triste, mas respeitado pela academia, e um aluno presunçoso. A partir de então, Ponto Quarenta toma outro rumo, alterando o narrador para encerrar a rocambolesca trama.

    Rubem Fonseca enganou a todos nós para criar o grande escritor que merecidamente se tornou. Sua misteriosa passagem pela polícia como escrivão o ajudou a construir a imagem de uma pessoa irresignada com o politicamente correto; ao mesmo tempo, o silêncio público a que se submeteu com tanto empenho durante a vida conseguiu esconder o cânone do conservadorismo brasileiro mais opressor, machista e perpetuador de mazelas sociais, e um homem que soube aproveitar das benesses dedicadas a quem protege os corruptos certos, os generosos. Hoje percebo que o incômodo que suas obras me provocam não está relacionado com o fantasioso sistema de investigação criminal que ele criou, mas sim com os crimes que ele genialmente esconde sob a pretensão de literatura. Por isso eu o respeito. Foi um subversivo que, em determinado momento da vida, fingiu ser um honorável maçom em respeito à grandiosidade de sua obra, e assim permitir se tornar o grande nome da literatura brasileira depois de Machado de Assis.

    A identidade R. F. dada ao Velho do livro Ponto Quarenta poderia ser, obviamente, Rubem Fonseca. Mas sua morte me fez entender que também poderia ser Roger Franchini.

    Roger Franchini foi investigador de polícia em São Paulo, autor dos livros “Ponto Quarenta – a Polícia de São Paulo para Leigos” (Editora Veneta), “Toupeira – A História do Assalto ao Banco Central”, “Richthofen – o Assassinato dos pais de Suzane”, “Amor Esquartejado” e “Matar Alguém”, estes últimos lançados pela Editora Planeta do Brasil.

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