Artigo | Da janela da periferia de SP, vivo uma angústia, mas mantenho a esperança: ‘vai passar’

    É fácil dizer “fique em casa” quando se mora em um apartamento ou mansão de luxo, mas e quem vive em um lugar apertado sem acesso ao básico?

    A divisa de Taboa da Serra com o Campo Limpo é a vista diária de Lucas | Foto: Lucas Gregório

    Nestes últimos tempos, a rede de proteção da janela do meu quarto obteve dois propósitos: não permitir que eu caia do 18º andar de um prédio de 24 andares e lembrar da cadeia voluntária em que me encontro, afinal, procuro respeitar o isolamento imposto há mais de dois meses por causa do coronavírus.

    Ao olhar pela janela, avisto a imensidão de casas e prédios da divisão do Campo Limpo com Taboão da Serra, extremo sul da cidade de São Paulo, e me assusto em perceber em alguns momentos do dia o silêncio dessa região populosa que vivo.

    O condomínio, minha residência desde muito novo, composto por cinco grande torres, povoado por mais de mil famílias e com poucos espaços de lazer, mas com tamanho de sobra, se torna o único lugar onde as pessoas podem sair de seus apartamentos para pegar um pouco do sol e se exercitar um pouco. Sempre de máscara, claro. Meu quarto, agora, não é só dormitório, se tornou academia, lanchonete, faculdade, ponto de encontro e cinema.

    Ando pelos outros cômodos da casa como se fossem o mundo e tenho a vantagem de andar pelo condomínio como se fosse o universo. Durante o isolamento social, tenho aprendido muito sobre a sociedade, mesmo passando a maioria do dia confinado. Morar em um condomínio é um exercício muito prático e didático sobre como é estar em uma comunidade.

    Bem antes de ser decretada a quarenta, alguns vizinhos já tomavam precauções, outros começavam a se prevenir e ainda havia aqueles que não se preocupavam com nada. Uma semana antes de o isolamento ser decretado, os carros entravam e saíam da portaria constantemente, os porteiros não descansavam de tanto trabalho e o fluxo de pessoas era intenso. Agora, passando da 10ª semana de quarentena, muita coisa mudou.

    No começo, as áreas públicas do condomínio ficaram vazias. O playground e a quadra foram fechados, a quantidade de carros no estacionamento durante o dia era surreal, ninguém ousava pegar o elevador e aqueles que o faziam era por extrema necessidade. Um silêncio se abateu sobre o condomínio de cinco torres com mais de três mil moradores. A síndica tomou as devidas atitudes de conscientização e orientação para a prevenção da doença. Se todos respeitassem, ficaríamos bem.

    Entretanto, com mais de 15 dias de quarentena, as pessoas ficaram impacientes. As garagens tinham menos carros, o fluxo de pessoas estava se levantando novamente, a quadra e o playground continuavam fechados, mas as crianças e adolescentes achavam outros espaços para se divertir e conversar. As orientações já não eram mais tão respeitadas assim.

    Sei que isso não aconteceu somente no condomínio onde moro, mas em todo o país, e isso, claro, inclui o estado de SP onde vivo. Quando o governador João Doria decretou o distanciamento social, as pessoas ficaram desesperadas. Brigas em supermercados, discussões políticas na internet, questionamentos acerca da eficiência da quarentena, foram e são, infelizmente, cenários comuns. No começo, ninguém na rua. Agora, todos querem voltar.

    Estou desempregado desde antes do coronavírus chegar ao Brasil, entretanto, como moro com meus pais, não estava em uma situação alarmante. Com a chegada da pandemia, a renda caiu um pouco, mas conseguimos nos virar, gastando com aquilo que realmente é necessidade e economizando ao máximo.

    Meu pai é motorista de aplicativo e tem estado na rua desde o começo da quarentena. Como autônomo, não pode parar de trabalhar e precisa lidar com o medo de trazer para dentro de casa o vírus. Ele também foi prejudicado por essa crise e hoje só faz viagens para supermercados e pessoas indo ou voltando do trabalho ou hospital. Ele já não anda mais na região central da cidade de São Paulo que antigamente era uma boa forma de lucro. Dirige mais na periferia, pois como ele mesmo disse, a periferia não está parada porque não pode, simplesmente, parar. 

    Leia também: ‘Não desrespeito a quarentena porque quero. É porque o patrão obriga’

    Talvez, algumas pessoas ficariam inconformadas com essa situação, eu não. Claro que há muitas pessoas fora de casa por motivos desnecessários, mas a maioria está para conquistar o pão de cada dia.

    Ao conversar com meu pai, levantamos esse questionamento: como as pessoas da periferia ficarão em casa se suas casas são minúsculas? É fácil dizer “fique em casa” quando se mora em um apartamento ou mansão de luxo, mas e quando se mora em um lugar apertado que não há acesso a saneamento básico, internet e segurança? Ao entrar nas redes sociais, vejo pessoas dizendo que o Governo pede para elas lavarem as mãos, mas não há água para essa ação mínima de higiene pessoal. Não se engane, essas pessoas não estão sem água porque são inadimplentes, mas porque o sistema de saneamento básico é tão precário que permite a falta de um dos elementos mais importantes para a existência humana.

    Não sou contrário à quarentena, sou totalmente a favor. Mas critico a postura dos governos que exigem da sua população o isolamento social e não dá condições necessárias a ela para isso.

    Lucas Gregório, 19 anos, é cria do Campo Limpo, zona sul de São Paulo | Foto: arquivo pessoal

    Ao dirigir pelas ruas, meu pai também tem observado as filas quilométricas dos bancos, principalmente da Caixa. Na fila, como ele relata, há idosos, crianças, adultos e jovens e, pela quantidade absurda de pessoas, não conseguem nem manter um metro de distância. Alguns podem dizer que isso é desnecessário, pois o auxílio é mediado totalmente pelo aplicativo. No entanto, muitas dessas pessoas não possuem acesso à internet. 

    Outra coisa relatada pelo meu pai é a criminalidade nas ruas. Os números podem até mostrar o contrário, mas meu pai, que trabalha na rua, foi vítima de um assalto em plena manhã próximo à região do Campo Limpo. Só levaram a aliança de casamento. Na mesma semana em que ele foi assaltado, recebemos uma notícia de que um colega desse ramo de trabalho também passou pela mesma situação. Motoristas de aplicativos estão sendo vítimas, mesmo com menor quantidade de pessoas nas ruas.

    Esses criminosos não agem em regiões centrais onde o policiamento é sempre maior, mas nas vielas e esquinas onde a segurança pública sempre falhou. Pessoas têm saído as ruas, se expondo a um vírus, porque não podem, infelizmente, depender do governo que tanto cobra impostos para a suposta melhoria da vida do cidadão.

    Neste ano, sou calouro de Letras da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) da Universidade de São Paulo. É um sonho entrar na universidade pública. Depois de apenas duas semanas de aula, foi obrigatório o isolamento social e todo o sonho construído se desmanchou por dois fatores. O primeiro fator é totalmente pessoal, pois o projeto calouro que havia arquitetado se destruiu involuntariamente.

    O segundo fator foi o desânimo de ver uma das maiores universidades da América Latina agir com tão pouco caso com seus alunos. O reitor da universidade, aderindo ao slogan do governo Bolsonaro “O Brasil não pode parar”, reformulou e afirmou com grande prazer que a “USP não pode parar”. Em certo ponto, ele tem razão. A USP é responsável por pesquisas que em nenhuma situação podem parar por se tratarem de aspectos biológicos e legislativos. Entretanto, as aulas não possuem esses aspectos. Professores que estavam acostumados a darem aulas por mais de dez anos em salas lotadas, agora têm de aprender a qualquer custo a fazer videochamadas e a replanejar todo o semestre com materiais diferentes.

    Os alunos deveriam estar presentes nas aulas de vídeo, não importando se possuíam equipamentos ou tecnologias necessárias para tal atividade. A universidade exige normalidade em uma situação anormal.

    Diante desse cenário, algumas faculdades (como a de Direito e Engenharia) seguiram o curso, auxiliando de alguma forma os estudantes prejudicados. Outras faculdades, como a FFLCH, se opuseram a esse sistema para que houvesse um diálogo e esclarecimento das ações que deviam ser tomadas. Em lutas incansáveis, coletivos estudantis da universidade se uniram para pedir a paralisação do semestre e exigir o auxílio para os estudantes moradores do CRUSP (Condomínio Residencial da USP) que não tinham nem acesso a internet para poder estudar.

    Depois de quase dois meses, a USP providenciou um kit internet para estudantes prejudicados por essa conexão virtual e permitiu que cada faculdade tomasse as próprias medidas e ações para enfrentar esse momento.

    No caso de Letras, havia um desacordo entre os professores, então alguns alunos tinham aulas e outros não. Agora, o semestre foi estendido para repor as aulas que não aconteceram nos meses de março e abril e os professores têm se organizado para a retomada das matérias pensando em maneiras de ajudar os estudantes que ainda passam por dificuldades, porque depois de uma semana da implementação dos kit internet, já houve relatos sobre a má funcionalidade deles.

    Mesmo com todas essas adversidades e cenários totalmente apavorantes para um calouro, morador da periferia, estudante de escola pública, que imaginava a universidade pública como a concretização de um sonho, tenho mantido o estudo das matérias por conta própria.

    Construa a Ponte!

    Confesso que fico feliz com a retomada das aulas, mesmo em módulo EAD, porque mantém minha cabeça ocupada e equilibrada para não só consumir as notícias dessa pandemia. Sou contra a educação a distância em um curso presencial, mas ainda assim me contento em ter de volta, não no mesmo grau, os meus professores e atividades acadêmicas. 

    Olho a janela do meu quarto, analisando a rede de proteção, torcendo para tudo isso acabar logo. O meu desejo é que as pessoas fiquem mais calmas, que o Estado seja mais eficiente em suas ações com a periferia, que a universidade tome ações para o benefício de seus alunos e que o Brasil se una para superarmos esse momento juntos. Enquanto isso, sigo respeitando a quarentena, ficando em casa, saindo apenas de máscara e analisando o passar dos dias sob a ótica de uma pequena janela com tela, na periferia da maior cidade do país, num cotidiano que, embora tenha particularidades, se assemelha ao de muitos brasileiros, com seus medos, angustias e a frase que martela meus dias, mas ao mesmo tempo me ajuda a levantar: “vai passar”.

    Lucas Gregório, 19 anos, participou da turma 2019 das oficinas de Jornalismo e Escrita Criativa da Escola de Notícias, projeto de formação de jovens do Campo Limpo, ministradas pela equipe da Ponte Jornalismo

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