Afastado da assessoria de imprensa do órgão, Fernando de Oliveira afirma que lista de “assuntos sensíveis” ao presidente começou a ser feita em agosto de 2019
Fernando Cesar Borba de Oliveira, 41 anos, é policial rodoviário federal no Paraná há 7. Trabalhava na área de assessoria de imprensa da PRF. Isso até o dia 25 de maio, quando divulgou informações à imprensa que tratavam de mais acidentes nas rodovias federais com a diminuição do isolamento social.
À Ponte, o policial conta que o afastamento da chefia da PRF-Paraná tem total ligação com a política do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Segundo ele, de Brasília, os superiores passaram a controlar as informações repassadas à sociedade.
“Assuntos sobre os quais o presidente da República havia manifestado uma mera opinião pessoal, feito alguma crítica qualquer ou protocolado um projeto de lei passaram, de uma hora para outra, a serem considerados ‘temas sensíveis”, explica. “Me parece que os princípios constitucionais de transparência e impessoalidade foram ignorados”, critica.
O policial conta que a questão dos radares teve evidente impacto no número de mortes nas rodovias do país. “Entre os anos de 2012 e 2018, as mortes em rodovias federais no país caíram 39%, de 8,6 mil óbitos para 5,2 mil. Foram sete anos de quedas consecutivas. Essa série de reduções das mortes foi interrompida justamente em 2019, ano em que os radares portáteis da PRF ficaram desligados por cerca de quatro meses”, aponta.
Oliveira cita que não encontrou explicações além dessa para justificar a sua saída a não ser uma “censura” derivada das ações de Bolsonaro, como retirar radares das rodovias. “Assim como a PF, na condição de polícia da União, a PRF deve ser tratada como uma instituição de Estado, não de governo”, diz.
Confira a entrevista:
Ponte – Quando você começou a notar um controle maior por parte da direção da PRF em Brasília quanto às informações passadas pelas unidades estaduais?
Fernando Oliveira – O aumento do nível de centralização, a censura de alguns temas e a sonegação de informações tiveram início em agosto de 2019. Na ocasião, um despacho presidencial, sem amparo técnico algum, suspendeu o uso de radares portáteis de controle de velocidade nas rodovias federais de todo o país. A polícia cumpriu imediatamente 100% daquele despacho, que claramente invadia uma competência do Conselho Nacional de Trânsito. Tampouco houve qualquer manifestação sobre a suspensão do uso dos equipamentos por parte do Ministério da Justiça e Segurança Pública, ao qual a PRF está vinculada. O titular da pasta simplesmente se omitiu. Mesmo após a derrubada da ordem presidencial pela Justiça, que ocorreria quatro meses depois, em dezembro, a questão continuou sendo um tabu, um tema proibido. E todo esse cenário segue inalterado até hoje, com uma proibição expressa aos policiais rodoviários federais tanto de tratar do tema em eventuais entrevistas à imprensa, quanto de fornecer informações ou imagens relativas a infrações por excesso de velocidade.
Ponte – Nestes comunicados, o que era posto como indesejável pela direção?
Fernando Oliveira – Assuntos sobre os quais o presidente da República havia manifestado uma mera opinião pessoal, feito alguma crítica qualquer ou protocolado um projeto de lei passaram, de uma hora para outra, a ser considerados “temas sensíveis”. Foi o que aconteceu, em maior ou menor grau, com os radares, com a cadeirinha para crianças e com o exame toxicológico, entre outros assuntos ligados ao trânsito. E a lista de assuntos proibidos aumentava a cada dia.
Ponte – Houve alguma fala direta apontando que um assunto específico era proibido por determinação do presidente?
Fernando Oliveira – Não tenho evidência concreta acerca dessa possibilidade. Mas o fato é que setores da direção da polícia demonstravam um nível descomunal de preocupação com a possibilidade de algum policial vir a tratar de um tema sensível aos olhos do presidente. Das duas uma: ou por algum tipo de interferência externa mesmo, ou por autocensura, medo de desagradá-lo. A reação desproporcional à reportagem do Bom Dia Brasil, que na verdade não tinha nada de mais, é um exemplo que ilustra um pouco o momento em que vivemos. Além dos radares, a matéria televisiva abordou a relação óbvia entre isolamento social, redução de fluxo de veículos e diminuição de acidentes. Concordo que até faz sentido evitar que um servidor público entre em rota de colisão contra o presidente da República. Mas proibir indefinidamente a abordagem de assuntos centrais para a polícia, por tempo indeterminado, não faz o menor sentido, não é algo razoável.
Ponte – Existia pressão diária quanto ao que era repassado à imprensa?
Fernando Oliveira – Sim. Ao longo dos últimos dias, em razão dessas pressões, houve vários momentos em que houve divergências internas, em especial entre os policiais que atuam no atendimento à imprensa. O atual nível de controle e centralização nessa área é algo inédito, ao menos na história recente da Polícia Rodoviária Federal. Logo após a veiculação daquela reportagem [sobre a relação entre aumento de acidentes e diminuição do isolamento imposto pela pandemia] em rede nacional, no último dia 15 de maio, a direção da PRF proibiu todos os policiais nos estados de pautar a imprensa sem autorização prévia da sede do departamento, em Brasília. Apenas aquelas pautas factuais, relativas a uma apreensão específica ou a um determinado acidente estão liberadas, atualmente. O resto precisa de uma autorização vinda diretamente da capital federal.
Ponte – Quais danos foram causados por esta limitação de informação?
Fernando Oliveira – Inicialmente, demandas da imprensa sobre assuntos considerados “sensíveis” passaram a ser centralizadas em Brasília. Logo notamos que não se tratava apenas de uma centralização, mas de um controle rígido que, na prática, resultava em uma clara sonegação de informações públicas, que deveriam estar disponíveis à sociedade. Trata-se de um caso claro de instrumentalização da assessoria de imprensa de um órgão público, um órgão policial, com objetivos bem diferentes daqueles que deveriam guiar as atividades da instituição. Um exemplo: a polícia deixou de divulgar informações relativas à quantidade de infrações cometidas por excesso de velocidade após os feriados prolongados. Para acessá-las, alguns veículos de comunicação tiveram que recorrer à Lei de Acesso à Informação.
Ponte – Há números que apontem aumento na quantidade de mortes com a retirada dos radares e menor controle nas estradas?
Fernando Oliveira – Entre os anos de 2012 e 2018, as mortes em rodovias federais no país caíram 39%, de 8,6 mil óbitos para 5,2 mil. Foram sete anos de quedas consecutivas. Essa série de reduções das mortes foi interrompida justamente em 2019, ano em que os radares portáteis da PRF ficaram desligados por cerca de quatro meses. No ano passado, mais de 5,3 mil pessoas perderam a vida em rodovias federais brasileiras. É claro que múltiplos fatores incidem sobre esses números, mas a velocidade é sempre uma das questões cruciais nesse debate. Historicamente, velocidade incompatível está entre as cinco causas de acidentes fatais nas BRs (rodovias federais). E o radar tem uma espécie de caráter civilizatório.
Ponte – Incentiva práticas ilegais?
Fernando Oliveira – É nítida a diferença de comportamento médio dos motoristas em uma rodovia equipada com radares fixos ou na qual há uma equipe policial operando radar portátil. Infelizmente, para uma parte dos motoristas, não basta a lei, nem existência de placas de sinalização. Por isso, esse tipo de fiscalização é algo importante, assim como a divulgação dessas ações, através de dados e de imagens com flagrantes de velocidades absurdas, bem superiores aos limites máximos. Sem a publicação dessas imagens e informações sobre o trabalho da polícia com os radares, a percepção geral das pessoas acerca da existência de fiscalização acaba por diminuir. E, com isso, o nível de segurança no trânsito também tende a cair.
Ponte – Como analisa as ações de Bolsonaro para interferir nas polícias, tanto Federal quanto Rodoviária Federal conforme sua denúncia?
Fernando Oliveira – Felizmente o Ministério Público Federal conseguiu barrar a lamentável intervenção presidencial no caso dos radares. Essa decisão da Justiça foi algo importante, apesar de ter sido tomada com certo atraso. Tratou-se ali de uma interferência política clara, feita à luz do dia, através do Diário Oficial da União. Vale observar que, naquela época, não houve nenhuma reação efetiva por parte do Ministério da Justiça e Segurança Pública. E a ilegalidade era tão evidente que a medida foi derrubada judicialmente, e a Advocacia-Geral da União, embora tenha entrado com recursos, não conseguiu mais reativá-la, felizmente. Assim como a PF, na condição de polícia da União, a PRF deve ser tratada como uma instituição de Estado, não de governo. As ações policiais devem estar alinhadas com a Constituição Federal e com as demais leis, não com os caprichos do chefe do Executivo. Especialmente quando a posição presidencial coloca vidas em risco.
Ponte – Teve outros casos de dispensas além da sua?
Fernando Oliveira – Desconheço.
Ponte – O processo de dispensa seguiu todas as normas legais? Algum outro ator poderia ter interferido, questionando a decisão presidencial?
Fernando Oliveira – Quem está dirigindo a polícia tem o poder discricionário para nomear ou dispensar servidores de qualquer função, isso é óbvio. Mas, no caso, o problema foram as circunstâncias e as motivações duvidosas, pra dizer o mínimo. Além da dispensa, houve até um pedido para que um conjunto de fotografias institucionais de arquivo fosse apagado do nosso banco de imagens em alta resolução, pelo simples fato de mostrar policiais rodoviários federais operando radares. Esse tipo de medida não tem uma motivação justa, não tem fundamento. Todo ato administrativo de um órgão público precisa ser motivado. Neste caso, me parece que os princípios constitucionais de transparência e impessoalidade foram ignorados.
Ponte – Por que tantos policiais se identificam com as pautas levantadas por Bolsonaro?
Fernando Oliveira – Assim como na sociedade, há dentro das polícias pessoas que se identificam com diferentes linhas ideológicas. Parte dos colegas que votou no atual presidente já se decepcionou com ele. Alguns até já se declaram arrependidos, publicamente. Outros, ainda não. É uma questão complexa.
Ponte – Apoiou o presidente na época de campanha? Caso sim, mantém a postura atualmente?
Fernando Oliveira – Jamais apoiaria um candidato com esse perfil. Mas é importante registrar que minha posição política pessoal, em todo esse episódio específico em que involuntariamente acabei envolvido, não tem importância alguma. Quem me conhece sabe que jamais misturei questões profissionais com atividade política. Inclusive colegas que ainda apoiam Bolsonaro também têm a mesma posição crítica que eu tenho em relação aos fatos que estou relatando agora. Reconhecem que houve uma reação desproporcional e que o excesso de centralização das decisões em Brasília é algo que, se for mantido, tende a prejudicar a PRF e, por consequência, o conjunto da sociedade.
Outro lado
A Ponte procurou, por e-mail, a Polícia Rodoviária Federal e questionou sobre o motivo do afastamento de Fernando Oliveira, bem como os apontamentos de um suposto controle de informações.
Em nota, a PRF informou que Oliveira foi dispensado por questão de “realocação de recursos. “Atos administrativos que tratam da gestão de pessoas têm por objetivo melhor alocação de recursos humanos e são de responsabilidade do dirigente da Superintendência no Paraná”, justificou.
“A decisão de exoneração em questão ocorreu no período de gestão do diretor-geral anterior. Informamos ainda que supostos desvios de conduta são objeto de apuração em procedimento disciplinar instaurado na corregedoria do órgão”, diz outro trecho da nota.
Errata: a versão anterior do texto informava que o policial havia sido exonerado. Na verdade, houve o afastamento e não a demissão. O erro foi corrigido às 18h37, de 6 de junho de 2020.
Reportagem atualizada às 12h47 do dia 9/6 para inclusão da nota da PRF
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