Delegado do caso Miguel já expôs suspeitos negros e indiciou trabalhador em inquérito contestado pela OAB-PE

    Em 2018, delegado Ramon Teixeira expôs homem negro suspeito de cometer assalto após reconhecimento irregular; “se eu não tivesse ido à delegacia, só iria saber da detenção do meu irmão pela TV”, disse familiar

    Delegado Ramon Teixeira | Foto: Reprodução

    E se a criança que caiu do 9 andar das Torres Gêmeas, no Recife, na terça (2), fosse o filho da patroa que estivesse sob os cuidados da empregada? O nome da trabalhadora doméstica seria protegido pela Polícia Civil e a ela seria dada a oportunidade de pagar fiança compatível à sua renda e responder em liberdade?

    Um caso concreto ocorrido em 2018 pode dar a dimensão do tratamento que a mãe do menino Miguel, Mirtes Renata Souza, teria recebido se ela estivesse no lugar da patroa Sarí Gaspar Côrte Real.

    A Marco Zero Conteúdo contou essa história em março, pouco antes do início do isolamento social pela pandemia, quando Wilson Xavier da Silva, 34 anos, deixou a cadeia uma semana antes de completar 1 ano de prisão preventiva por suspeita de participar do assalto à imobiliária Jairo Rocha, em Boa Viagem, em 2018.

    Wilson foi indiciado em inquérito conduzido pelo delegado Ramon Teixeira, agora responsável pelas investigações sobre a morte do menino Miguel Otávio Santana da Silva. Contra Wilson e outro réu, Bruno Nunes de Andrade, preso por 9 meses, só havia os reconhecimentos feitos meses depois do crime por algumas das vítimas, parte destes modificados em Juízo.

    A família de Wilson e os advogados dele e de Bruno acusam os policiais comandados pelo delegado Ramon Teixeira de mentirem para os suspeitos no ato da condução de cada um deles para a delegacia, o primeiro detido em casa e o segundo no trabalho.

    Embora estivessem sendo acusados do assalto, os policiais disseram a Wilson que havia uma denúncia de abusos de idosos e crianças e a Bruno que o caso se relacionava à Lei Maria da Penha, que prevê penas para violência doméstica contra as mulheres.

    Segundo o próprio Wilson, no carro da polícia que o conduziu algemado para a delegacia, ele foi fotografado com um celular por um dos agentes e teve sua imagem disponibilizada em grupos de whatsapp quando sequer recebera a informação correta sobre a acusação que existia contra ele.

    Os irmãos de Wilson contam que antes de falar com a família, que se mobilizou e foi toda para a delegacia, o delegado atendeu primeiro a imprensa para divulgar a prisão de Wilson. “Se eu não estivesse ido à delegacia, só iria saber da detenção do meu irmão pela TV”, critica William.

    A maneira como os policiais chegaram aos nomes de Wilson e Bruno também é questionada pelos familiares e pela defesa dos réus. Segundo o inquérito policial comandado pelo delegado Ramon Teixeira, os nomes dos dois constariam de cadastro da Secretaria de Defesa Social de praticantes de atos ilícitos na região. Acontece que nem Wilson nem Bruno haviam sido detidos ou respondido a qualquer ação na Justiça antes de serem presos pelos policiais da Delegacia de Boa Viagem.

    A questão mais grave do inquérito, segundo a defesa dos réus, é que o assalto foi todo filmado pelo circuito interno de câmeras da imobiliária Jairo Rocha e, apesar das negativas de Wilson e de Bruno sobre a participação no crime, as imagens não foram examinadas e periciadas para comprovar a compatibilidade dos rostos dos assaltantes com os dos acusados.

    “Quando você compara as imagens captadas no assalto com as imagens do rapaz preso você vai ver que não é a mesma pessoa. O formato do rosto é distinto… Trata-se de um erro judicial claro e nós, para chegarmos a essa conclusão, fizemos uma ampla análise da investigação, do processo, inclusive a investigação produzida pela defesa é muito mais consistente do que a conclusão a que chegaram o Judiciário e a polícia”, explicou o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, Cláudio Ferreira, entrevistado pela Marco Zero no final de fevereiro, poucas semanas antes da libertação de Wilson

    O crime teve ampla repercussão na mídia pernambucana por atingir um grupo empresarial importante, dono de uma das principais imobiliárias do Recife. Também trazia outros elementos midiáticos, como o fato de o assalto à mão armada – executado por pelo menos quatro homens – ter acontecido num bairro nobre em plena luz do dia.

    Bruno foi solto nove meses depois de ser encarcerado, quando seu advogado apresentou à Justiça o registro eletrônico comprovando sua entrada e saída do trabalho em 14 de novembro de 2018, data do assalto à Jairo Rocha.

    Wilson ainda ficou mais três meses preso até que o juiz Walmir Ferreira Leite, da 16a Vara Criminal da Capital, atendesse ao pedido da defesa do músico de incluir novos suspeitos no processo. Suspeitos levantados por investigação da própria defesa de Wilson e não do delegado do caso.

    O magistrado determinou ainda que fossem feitas perícias comparativas dos rostos dos novos suspeitos e também (finalmente) de Wilson com as imagens captadas pelas câmeras durante o assalto.

    Racismo

    Na petição final redigida ao juiz, datada de 12 de fevereiro deste ano, o advogado Eloy Moury Fernandes foi direto ao ponto: “Wilson… não merece estar preso em razão de todas as condições técnicas declaradas em nosso ordenamento jurídico, exceto uma não declarada, a de não ser caucasiano em um país racista… Sim, Wilson, entre outros motivos, está preso por ser negro no Brasil”.

    A exposição das identidades de Wilson e Bruno à imprensa não são um exceção na Polícia Civil de Pernambuco, nem na atuação do delegado Ramon Teixeira. Em diversos casos comandados pelo policial, os suspeitos tiveram seus nomes divulgados para a mídia.

    Num desses, mais recente, de julho do ano passado, duas mulheres negras foram presas pela equipe do delegado Ramon e acusadas de assalto em outro bairro nobre do Recife, o Poço da Panela, na zona Norte. As duas foram expostas no dia da detenção para a imprensa com banner da Polícia Civil em destaque atrás delas. Suas imagens chegaram a compor as matérias de algumas TVs da cidade.

    A exposição das identidades de Wilson e Bruno à imprensa não são um exceção na Polícia Civil de Pernambuco, nem na atuação do delegado Ramon Teixeira. Em diversos casos comandados pelo policial, os suspeitos tiveram seus nomes divulgados para a mídia.

    Num desses, mais recente, de julho do ano passado, duas mulheres negras foram presas pela equipe do delegado Ramon e acusadas de assalto em outro bairro nobre do Recife, o Poço da Panela, na zona Norte. As duas foram expostas no dia da detenção para a imprensa com banner da Polícia Civil em destaque atrás delas. Suas imagens chegaram a compor as matérias de algumas TVs da cidade.

    Lei de Abuso de Autoridade

    Ao defender a posição de não divulgar o nome da patroa de Mirtes, Sarí Gaspar Corte Real, de família rica e tradicional de Pernambuco, cujo marido Sérgio Hacker é prefeito e aliado político do governador Paulo Câmara (PSB), o delegado Ramon citou a Lei da Abuso de Autoridade (13.869) aprovada no segundo semestre de 2019 – depois da prisão das mulheres no caso do Poço da Panela – e que entrou em vigor em janeiro deste ano.

    De fato, a nova lei, que substitui uma outra de 1965, é mais severa. Ampliou para 45 as condutas que podem vir a ser punidas com até quatro anos de detenção, multa e indenização à pessoa afetada. Prevê, inclusive, em caso de reincidência, que o servidor público pode perder o cargo e ficar inabilitado para retornar ao serviço público por até 5 anos.

    Antes disso, o direito de imagem já era protegido pela Constituição Federal de 1988, como também pelo Código Civil. O que mudou foram as bases definidas para a punição.

    Na petição para a soltura de Bruno Rodrigues de Andrade, no caso do assalto à imobiliária Jairo Rocha, em 2018, o advogado Wilgberto Paim trouxe aos autos do processo um outro caso rumoroso de má investigação realizada pela Delegacia de Boa Viagem sob o comando do delgado Ramon Teixeira.

    Trata-se do pedreiro Daniel Rego da Cunha, detido por um mês e quatro dias em Santarém, no oeste do Pará, em meados de 2019, por suposto envolvimento num assalto que ocorreu no dia 8 de junho de 2018, em Boa Viagem. Detalhe: o pedreiro nunca havia saído do Pará.

    A Justiça o inocentou das acusações apresentadas no inquérito policial.

    O tratamento dado a uma suspeita branca e milionária de família influente é completamente diferente daquele dado a um suspeito preto, de classe operária e de família humilde. Embora os dois casos estivessem com a mesma pessoa, o centro da balança é o mesmo, mas o peso é diferente. No caso do meu irmão, Wilson, a polícia repassou o nome completo e foto para a imprensa e até em grupos de Whatsapp. Teve matéria de imprensa em que nem tomaram cuidado de usar termos como suspeito ou investigado. Usaram o termo assaltante e criminoso. Cabe agora a todos nós unirmos forças para apoiar dona Mirtes porque ela está no mar remando num barquinho cheio de tubarões em volta. É esse o meu sentimento. William Xavier da Silva, irmão de Wilson.

    A Marco Zero Conteúdo contou em reportagem toda a história de Wilson e da luta da sua família de mãe, pai e três irmãos negros, moradores da periferia, para libertá-lo.

    No dia seguinte à sua soltura, nós o entrevistamos em casa. Wilson estava aliviado, mais ainda carregando no corpo a tornozeleira eletrônica como aviso de que a batalha ainda não está vencida. Depois de um ano preso no Complexo Prisional do Curado, antigo Presídio Aníbal Bruno, finalmente está respondendo em liberdade pelo crime do qual é acusado.

    Assim como já havia acontecido em março, a reportagem procurou agora a Assessoria de Comunicação da Polícia Civil para pedir entrevista ou manifestação do delegado ou da instituição sobre os questionamentos feitos ao inquérito do assalto à imobiliária Jairo Rocha. A Assessoria respondeu que “o inquérito policial foi concluído e remetido ao Tribunal de Justiça de Pernambuco. A partir desse momento, mais informações devem ser obtidas por meio do TJPE”.

    Embora a partir de 2019 haja uma criminalização mais rigorosa dessa disposição da imagem de pessoas acusadas, é importante frisar que o que se discute aqui é a dignidade da pessoa humana, o direito à intimidade e da preservação da sua imagem, que são garantias constitucionais bastante anteriores à Lei de Abuso de Autoridade. A lei não criou a dignidade da pessoa humana nem o direito à proteção da sua imagem. Essa imagem que hoje foi preservada em favor da atual acusada em tempo algum foi respeitada em favor dos pretos, dos menos favorecidos, especialmente economicamente. Não se deseja nem a polícia do pobre pro rico, nem a do rico pro pobre. O que desejamos é o tratamento igualitário”. Eloy Moury Fernandes, advogado de Wilson.

    Reportagem originalmente publicada no portal do Marco Zero Conteúdo.

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