Auxiliar administrativo negro saiu para comprar cigarro e foi preso por roubo

    Ailton Vieira da Silva e um amigo estavam longe do local do crime e PM não encontrou nada que os incriminasse; “escolhidos por estarem em moto e terem passagem”, diz advogado

    Ailton está preso desde 26 de maio e a família afirma que ele é inocente | Foto: reprodução/Facebook

    Já passavam das 23h de uma segunda-feira, dia 25 de maio, quando dois amigos de Ailton Vieira da Silva, 23 anos, morador do Parque Santo Antônio, periferia da zona sul de São Paulo, passaram para vê-lo em sua casa. Apesar da pandemia do coronavírus, a vida não parou, a quarentena, para muitos, é luxo e Ailton tem tido que trabalhar. Cansado, ele já estava dormindo, mas levantou.

    Tomou uma cerveja com os dois amigos e ficou conversando. Depois de um tempo, já era madrugada do dia 26, ele foi comprar cigarro com um dos amigos. Acabou preso, sem provas, por um crime que a família afirma que ele não cometeu.

    Antes mesmo de chegar no local para comprar o cigarro, Ailton e Conrad da Silva Cordeiro, 28 anos, foram abordados pela Polícia Militar e presos em flagrante, na rua João Valera Gomes, Jardim Imbé. A alegação da PM é que eles eram suspeitos de um assalto que aconteceu na rua Frei Pedro Crisologo, no bairro Pirajussara, no Capão Redondo. A rua do roubo fica a 6 km da casa de Ailton e a rua em que ele foi preso fica a 2 km da sua residência.

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    Segundo a versão policial, narrada ao delegado Luciano Samara Tuma Giaretta pelos PMs Claudio Pereira de Aguiar Filho e Marcelo Giovanni Damião do Amaral, no 47º DP (Capão Redondo), eles foram informados pelo COPOM (Centro de Operações da Polícia Militar do Estado de São Paulo) de um roubo na rua Frei Pedro Crisologo.

    O roubo foi praticado, segundo a versão das testemunhas no boletim de ocorrência, por cinco pessoas que estavam em três motocicletas. De acordo com as vítimas, um motorista de aplicativo e a passageira, ambas brancas, foram roubados um celular, uma carteira e a quantia de R$ 120. O celular roubado estaria sendo rastreado. Os PMs então foram para a rua João Valério Gomes. As vítimas afirmam que Ailton agrediu a passageira após ela informar que não tinha celular.

    No local, os PMs encontraram duas motos, ambas na contramão. Decidiram abordar as duas motos, mas uma teria fugido do local. “Após breve acompanhamento” os PMs abordaram a moto Honda Titan vermelha, de placa DYZ2535, em que Ailton e o amigo estavam. Não há descrição na ocorrência das demais motos envolvidas no crime, nem a descrição dos outros suspeitos envolvidos.

    No registro da ocorrência, hão há detalhes de como o reconhecimento na delegacia foi realizado, mas o delegado Giaretta afirma que as vítimas reconheceram Ailton e o amigo como os assaltantes e disseram que, apesar de estarem de capacete, “o porte físico dos dois é inconfundível”.

    Além da compleição física, reconheceram Ailton pela “jaqueta clara”, com “100% de certeza”, sem citar a cor ou mais detalhes da peça. Segundo as vítimas, o motorista da motocicleta, que seria Conrad, usava uma jaqueta preta. Nenhum item roubado foi encontrado com a dupla. Ambos têm passagem pela polícia: o amigo foi preso por roubo, em 2016, e Ailton por posse de arma, em 2017.

    Em 26 de maio, durante audiência de custódia, o Ministério Público Estadual considerou que a prisão era legal e correta. “Há prova da materialidade delitiva e indícios de autoria, conforme auto de prisão em flagrante”, argumentou o promotor de justiça Fabio Tosta Horner.

    Na mesma data, a juíza Luciana Menezes Scorza converteu a prisão em flagrante em preventiva. No dia 29 de maio, o promotor Orion Pereira da Costa ofereceu denunciou Ailton e seu amigo por roubo mediante violência ou ameaça (artigo 157, inciso 2º) e incluiu como agravante o fato de ambos serem reincidentes (artigo 61). Ambos estão presos no CDP (Centro de Detenção Provisória) Chácara Belém I.

    “O sistema de justiça criminal, muitas vezes, acaba ratificando a conduta de maus policiais, porque, essas duas pessoas provavelmente foram escolhidas porque estavam em uma moto e já tinham passagem pela polícia”, aponta o advogado criminalista André Lozano Andrade, coordenador-adjunto do laboratório de ciências criminais do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) e mestre em Direito Penal pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica).

    “A única prova para embasar esse processo é muito frágil, que é o reconhecimento das vítimas. Eles confirmam que estavam de capacete, mas que daria para reconhecer por conta da compleição física dos dois motoqueiros”, argumenta Lozano.

    “Isso é absurdo. A não ser que eles fossem muito diferentes da população em geral, ou fossem muito mais altos ou muito mais baixos, ou tivessem algum tipo de deficiência. Não seria possível confirmar serem eles ou não, uma vez que o capacete impede essa identificação”, continua o especialista.

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    A prisão em flagrante, avalia o criminalista, é irregular, já que nenhum objeto roubado foi encontrado com os jovens. “Esse flagrante nunca poderia ter sido decretado. A conduta correta do juiz deveria ter sido relaxar o flagrante, ainda mais levando em conta as provas extremamente frágeis”, aponta Lozano.

    “A denúncia também não poderia ter sido recebida, se a gente fosse respeitar o Código Penal e o Código de Processo Penal, porque não existem elementos firmes que façam presumir serem eles os autores do delito”, conclui o criminalista.

    “No lugar errado e na hora errada”

    Em entrevista à Ponte, a auxiliar de confeitaria Alessandra Vieira da Silva, 31 anos, irmã mais velha de Ailton, afirma que ele é inocente: “Ele estava no lugar errado, na hora errada e foi preso injustamente”.

    “Meu irmão mora com a minha mãe, que sofreu um AVC há 5 anos, não fala, anda com dificuldade. Ele não está trabalhando registrado, então pega o carro e trabalha fazendo pequenos carretos, pegando entulho, porque tem que cuidar da minha mãe. É ele que limpa casa, que faz comida, que leva minha mãe nos hospitais. A minha mãe está sofrendo muito”, conta Alessandra.

    A irmã conta que o irmão estava dormindo no dia do roubo e foi chamado pelos amigos às 23h15, 15 minutos antes do horário do assalto. “Eles ficaram lá bebendo uma cerveja, conversando, até que decidiram ir comprar cigarros. Foram no bairro do Jardim Maracá, de moto, e, no caminho, os policiais fizeram a abordagem, dizendo que eles eram os assaltantes”.

    O advogado Flávio Campos, integrante do Educafro, que atuou no caso de Barbara Querino, absolvida de dois roubos que havia sido condenada sem provas, está atuando na defesa de Ailton. À Ponte, Campos afirmou estar convencido de que o jovem é inocente.

    “É mais um fatídico caso de atividade policial fraudulenta, em que os PMs escolhem uma pessoa para responder à acusação e não permitem a presunção de inocência”, aponta Campos. “Essa presunção de culpa foi empregada pelos policiais, renovadas pelo Ministério Público e pelo Judiciário. Ela consistiu, mais uma vez, em um reconhecimento fraudulento em delegacia, pela sua aparência, pelas suas vestes”, critica.

    O defensor aponta falhas nos depoimentos dados na delegacia. “Por que as vítimas não descreveram cada moto e cada suspeito? Por que só há descrição e identificação em relação à motocicleta em que estavam Ailton e o amigo? Tudo isso dá a entender que foi tendencioso”.

    Campos destaca que os policiais chegaram até Ailton, nas palavras deles, porque estavam rastreando o celular de uma das vítimas. “Só que não foi encontrado com o amigo e nem com o Ailton nenhum celular”, afirma. “Em algum momento os policiais desistiram de seguir o GPS e escolheram focar a investigação nesses rapazes”, detalha.

    O advogado afirma que Ailton foi fotografado pelos policiais que o abordaram e a imagem foi encaminhada, de imediato, para outras pessoas. “É uma maldade muito grande você parar uma pessoa na rua e dizer que ela está envolvida em um assalto por causa da cor da moto e da cor da blusa. Isso é um tremendo desrespeito com a pessoa. Um celular e uma carteira não valem a liberdade de uma pessoa inocente”, finaliza Campos.

    A Ponte procurou familiares do Conrad, que foi preso e denunciado junto com Ailton, e eles disseram que não vão se pronunciar sobre o caso.

    Outro lado

    A reportagem procurou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, por meio da assessoria terceirizada InPress, para questionar o reconhecimento de Ailton e o suposto uso do GPS do celular da vítima pelos PMs, como consta no depoimento dos policiais. A assessoria da Polícia Militar também foi questionada. Solicitamos entrevista com os PMs e delegado citados no texto e não obtivemos retorno até o momento.

    Em nota, a SSP-SP informou que “a polícia rastreou o aparelho, que apontou a rua João Valério Gomes. No local, três suspeitos em duas motos foram localizados e tentaram fugir. Dois deles foram detidos”.

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    “As vítimas compareceram na delegacia e realizaram o reconhecimento pessoal de ambos, inclusive das roupas, que eram as mesmas usadas pelos autores do roubo. Eles foram autuados em flagrante e o caso encaminhado para apreciação do Poder Judiciário e Ministério Público. A Justiça decretou a prisão temporária da dupla”, completou a pasta, em nota.

    O Ministério Público de São Paulo foi questionado sobre a denúncia realizada, mesmo diante das provas frágeis, como apontaram os advogados citados na reportagem. Não obtivemos retorno até o momento de publicação.

    O Tribunal de Justiça de São Paulo foi questionado sobre a decisão do juiz em aceitar a prisão em flagrante, como apontado pelo criminalista especialista que aponta que nenhum item foi encontrado com Ailton e que ele não foi preso no local dos fatos. Por e-mail, o TJ-SP informou que não emite nota sobre questões jurídicas.

    “Os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe à parte a interposição dos recursos previstos na legislação vigente”. 

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