Medo e dificuldade de denunciar durante isolamento refletem nos dados que mostram redução de casos; “a mulher não percebe a violência”, afirma policial militar
O telefone toca uma, duas, até três vezes ou mais, num único dia. De um lado da linha, os mais diversos motivos: de um grito, ofensa ou ameaça, até um tapa, um soco, um pedido de conselho, de ajuda, ou até mesmo um lugar para ficar.
Do outro lado, uma das coordenadoras da Casa de Referência da Mulher Tina Martins, em Minas Gerais, atende as chamadas de mulheres, que, embora tragam histórias de vida muito particulares, carregam em comum a violência doméstica durante o isolamento social imposto pela pandemia do coronavírus.
As estatísticas apontam uma redução de 18% no número de feminicídios no estado de Minas Gerais de janeiro a abril de 2020, quando 36 mulheres foram assassinadas, na comparação com o mesmo período do ano passado, quando foram registrados 44 casos.
No mês de abril, isoladamente, houve também redução no número de feminicídios, somando os casos consumados e tentados: de 29, em abril de 2019, para 23, em abril deste ano. Em março e abril, quando a quarentena já estava valendo, 19 assassinatos de mulheres aconteceram no estado, número 13,6% menor do que os 22 casos no mesmo período do ano passado, e que se iguala aos dados de 2018.
Além do feminicídio, os casos de violência doméstica também apresentaram redução de 6% no primeiro quadrimestre deste ano, segundo dados da Polícia Civil mineira. Nos meses de março e abril, quando o isolamento social por causa da pandemia já acontecia, foram menos de 23 mil registros, uma diminuição de 13% na comparação com o mesmo período de 2019.
Se quando olhamos os números a notícia parece boa, a percepção de quem trabalha no atendimento de vítimas tem sido outra. “Desde o começo da pandemia, a gente tem recebido muitas ligações, pedidos de aconselhamento jurídico e até abrigamentos”, afirma a estudante de psicologia Núbia Oliveira, uma das coordenadoras da Casa Tina, ao responder que sente um aumento no número de mulheres em busca da casa nesse contexto de quarentena.
Para se ter uma ideia, os dados do Disque-Denúncia, o 180, que, embora não receba apenas ligações de violência contra a mulher, indica já aumento de casos desde o dia 1º de março e aponta uma tendência de crescimento para os meses seguintes. Segundo o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, o estado de Minas registrou, até o dia 3 de junho, 28 denúncias ligadas à violência doméstica.
Há um outro indicador, que não separa a violência contra a mulher de outras violências contra pessoas vulneráveis (idosos, crianças e adolescentes, pessoas com alguma deficiência, etc), mas que consegue dar o tom e evidenciar um aumento de casos durante o isolamento: de 1º de março, quando começa a contabilização dos dados, a 1º de abril, foram registradas 398 ligações para o 180. Até 3 de junho, foram 1.171.
Para a chefe da Divisão Especializada em Atendimento à Mulher ao Idoso e a Pessoa com Deficiência e Vítimas de Intolerância, delegada Isabella Franco de Oliveira, os números da Secretaria de Segurança Pública de Minas Gerais, que apontam redução da violência, podem representar uma possível subnotificação dos casos. “Alguns serviços não têm trabalhado de forma presencial e, às vezes, a mulher pode estar receosa, com medo também de sair e ter uma possível contaminação”, aponta.
Com isso, ao contrário do que mostram as estatísticas, que são baseadas nos registros policiais, ela argumenta que o que pode estar havendo é um aumento dos casos. “Considerando esse período que a gente vem vivendo, de ansiedade, dificuldades até mesmo financeiras, e as mulheres estarem mais em casa com os próprios agressores, esses conflitos podem se intensificar”, avalia. Apesar de a tipificação dos crimes desses dados referentes ao quadrimestre deste ano ainda não ter sido divulgada, a delegada informa que as ocorrências mais frequentes nesse período têm sido as ameaças e as lesões corporais.
Nesse contexto da pandemia, a delegada Isabella de Oliveira afirma que a divisão que atua, situada na capital, permanece funcionando 24 horas por dia. “Os casos mais delicados, mais sérios são atendidos de forma imediata e, quando há possibilidade de evitar aglomeração de pessoas dentro da delegacia, é feito um agendamento e um policial faz contato por telefone ou Whatsapp com a vítima e faz uma solicitação de medida protetiva”, explica.
A medida protetiva é requerida pela vítima e depende de aprovação de um juiz. Desde 2018, o descumprimento de medida protetiva virou crime com pena de prisão de três meses a dois anos.
“Se a decisão é de afastamento do lar e o agressor descumpre, vai até a casa, chega perto, se aproxima, ele pode ser preso em flagrante pelo descumprimento de medida e vai responder pelo crime”, esclarece.
Ela também aponta como alternativas de denúncias o Disque-Denúncia (180) e o aplicativo MG Mulher, lançado em março deste ano pelo governo do estado, para que as vítimas possam denunciar os casos. Na plataforma, há endereços de unidades de apoio, delegacias, vídeos explicativos e a possibilidade de criar uma rede colaborativa.
“Nessa rede colaborativa, ela cadastra pessoas, vizinhos, amigos e familiares, e, numa situação de emergência, ela pode gerar um alerta para essa rede. Esse alerta é uma mensagem SMS com pedido de ajuda e georrefenciamento de onde ela está. As pessoas que receberem essa mensagem podem auxiliar, inclusive acionando a Polícia Militar, caso essa mulher não consiga”, detalha Isabella.
(Re)Existência
Além dos canais oficiais de apoio e atendimento à mulher vítima de violência, coletivos e organizações ativistas têm se empenhado para combater essa situação, piorada no contexto de pandemia em que mulheres que, muitas vezes, são obrigadas a suportar uma situação de violência por estarem debaixo do mesmo teto do agressor. Casas de abrigamento têm sido uma importante alternativa para essas vítimas.
A Casa de Referência da Mulher Tina Martins funciona há quatro anos e é gerenciada por membros do Movimento de Mulheres Olga Benário. O espaço surgiu após o movimento ocupar o prédio da antiga Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais, na rua Guaicurus, em 8 de março de 2016, durante atos do Dia Internacional da Mulher.
Na época, a lei do feminicídio — 13.104, de 9 de março, que tornou mais grave e aumentou a pena para o homicídio praticado contra uma mulher no contexto de violência doméstica ou por “menosprezo ou discriminação à condição de mulher” — , completava um ano. “Nós vimos um número crescente de casos de violência contra a mulher e muita deficiência de atuação do Estado com relação a políticas públicas. Em Belo Horizonte, tem apenas uma casa-abrigo”, explica Núbia Oliveira, uma das coordenadoras e que atua há 3 anos no projeto.
A ocupação no local durou quase três meses e houve um acordo com o governo do estado para que o espaço migrasse para outro imóvel, onde atualmente a casa funciona, na rua Paraíba, que foi cedido pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais. De acordo com a coordenadora, além do número baixo de espaços especializados para abrigar essas vítimas em situação de risco, “há uma série de burocracias, como limitação de idade dos filhos dependentes a serem levados, a falta de comunicação, necessidade de fazer exames de corpo de delito e outros constrangimentos”.
Os atendimentos costumavam ser realizados presencialmente na casa localizada no centro de Belo Horizonte, mas com a pandemia do novo coronavírus, a equipe formada por voluntárias precisou se adaptar e ampliar os canais de prestação de serviço. “A gente chegou à conclusão de que muitos serviços estavam fechando as portas para os casos de violência contra a mulher, ou limitando muito atendimento, então optamos por continuar com a casa aberta”, explica.
No estado, há cinco casas-abrigo, segundo o Mapa da Violência de Gênero, da Gênero e Número, feito com levantamento de 2019. Dados de 2018 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostravam que, naquele ano, não havia nenhuma casa-abrigo no estado de Minas Gerais. De acordo com o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), essas casas costumam comportar de cinco a dez mulheres por um período de até 90 dias, que podem ser prorrogáveis.
A delegada Isabella de Oliveira pondera que as “burocracias” citadas por Núbia acabam fazendo com que as mulheres escolham outro caminho, como ir para casa de parentes, quando é possível, e enfatiza que a ida à casa-abrigo deve ser “a última opção”.
“Não são todas as mulheres que têm interesse em ir para as casas-abrigo porque tem algumas regras que a mulher tem que aderir para entrar, como, por exemplo, outras pessoas não podem saber o local, ela não pode atender telefone, não pode receber visita”, afirma a delegada. Segundo ela, até o momento, não houve problemas com número de vagas e todas as solicitações têm sido autorizadas.
A coordenadora da Casa Tina afirma que não é de praxe o movimento divulgar o número de abrigadas na casa por questões de segurança, mas declarou que o espaço tem quatro quartos coletivos para comportar as vítimas. O atendimento é sistematizado em quatro eixos, que não precisam ser seguidos em sequência e que depende de cada demanda: o acolhimento, a formação política, o abrigamento e a emancipação.
“O primeiro passo é o acolhimento, que é uma conversa para entender qual a situação, qual o tipo de violência que a mulher está sofrendo e como a gente consegue caminhar junto com ela, o que ela deseja, dentro do espaço que a gente oferece, com os nossos contatos com a rede de enfrentamento”, explica. Nessa fase, é prestado atendimento psicológico.
A formação política é contemplada com palestras, atividades, rodas de conversa sobre feminismo, como reconhecer a violência de gênero; o abrigamento envolve a permanência dessa mulher na casa; a emancipação envolve o direcionamento para políticas públicas que a mulher pode ter acesso, além de auxílio jurídico.
No caso dos abrigamentos, ela explica que é feito um acompanhamento individualizado e que o tempo médio que as mulheres costumam permanecer no local é três meses. “A gente acompanha se a mulher conseguiu arrumar um emprego, se sentir mais estável psicologicamente. Aos poucos ela vai conseguindo algum tipo de autonomia”, aponta.
De acordo com Núbia, a maioria das mulheres que foram abrigadas pela casa fez algum tipo de denúncia formalizada contra seus agressores. As mulheres que chegam ao espaço vão desde as que estão com uma solicitação de medida protetiva àquelas que aparecem espontaneamente no local porque tiveram conhecimento da atuação da casa. “A gente faz atividades para conscientizar as mulheres, esclarecer sobre canais de denúncia e políticas que elas têm direito”, pontua.
Silenciamento pelo patriarcado e pela falta de acesso
A maior parte dos casos de violência doméstica e feminicídios registrados neste ano foram na capital mineira e em cidades da região metropolitana. Para a delegada Isabella Franco de Oliveira, uma das possibilidades é, novamente, a subnotificação, tendo em vista que nos 853 municípios há um total de 73 DEAMs (Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher).
“As DEAMs estão em cidades de maior porte, que têm uma maior população e uma rede de serviços mais estruturada. Quando a gente pensa numa cidade menor, não tem uma unidade especializada, não tem serviço especializado de atendimento à mulher. E não é só delegacia, é centro de apoio, Nudems (Núcleo de Defesa da Mulher), os órgãos específicos no interior não chegam”, lamenta.
A 450 km da capital mineira, no município de Teófilo Otoni, a cabo Juliana Lemes da Cruz explica que a situação de pandemia agravou um cenário já existente de falta de acesso à políticas públicas. “O acesso às instituições já era difícil, então agora se uma mulher quiser fazer uma denúncia no final de semana, não vai ter como, porque não existe uma delegacia especializada 24h, só funciona de segunda a sexta-feira, das 8h às 18h”, exemplifica, considerando que a maioria dos casos de violência doméstica acontecem fora do horário comercial e aos finais de semana.
“Se a mulher estiver passando por uma situação de violência e precisar fugir, ela vai ter que ir para uma casa de parente, porque não existe uma casa de acolhimento”, prossegue a PM.
A policial militar e pesquisadora da Universidade Federal Fluminense coordena há dois anos o premiado projeto Mulher Livre de Violência, que atua na comunidade rural do Cedro, no Vale do Mucuri, cujo princípio é empoderar mulheres por meio da autonomia financeira. “A partir da doação de materiais, tecidos usados no fardamento, as mulheres produzem bolsas, mochilas e bordam mensagens pela técnica arpillera, que foi muito utilizada por mães e mulheres no Chile como resistência à ditadura militar, numa época em que o silêncio era a regra”, explica.
Nos encontros realizados mensalmente, para todas as mulheres que queiram participar, também há rodas de conversa. “Na zona rural, existe muito uma cultura de papéis definidos de homens e mulheres, uma uma influência grande do coronelismo e do patriarcado que faz com as mulheres não enxerguem uma situação de violência ou queiram denunciar”, analisa. “Muitas mulheres, que nunca fizeram um boletim de ocorrência, acabam se percebendo ou reconhecendo uma situação de violência nessa rede de apoio”.
Com o novo coronavírus, os encontros presenciais precisaram ser suspensos e as atividades, interrompidas para a maioria que não tem equipamentos para seguir a produção. “Nós atendemos 45 mulheres, mas como apenas 12 têm máquina de costura em casa, então só uma parte está conseguindo confeccionar máscaras para vender a preço popular”, lamenta.
De acordo com ela, o que tem sido possível fazer nesse período é manter ativa a rede de apoio. “Nós temos um grupo em que algumas mulheres estão e o objetivo é manter contato sempre, se mostrar presente, disponibilizar informação, porque a zona rural não tem a estrutura presente na capital e nas grandes cidades”, critica.
Essa ampliação de atendimentos também é uma reivindicação do Movimento de Mulheres Olga Benário. “A gente vê um avanço, mas gente avalia que ainda existem muitas deficiências, na efetividade dessas políticas porque muitos equipamentos não recebem mulheres com filhos, precisam passar por todo um processo muito burocratizado para conseguir sair dessa situação de violência e as desigualdades aprofundam muito isso: muitas mulheres em situação de rua, de não ter trabalho para emancipação financeira, e os serviços acabam sendo ineficazes”, argumenta Núbia.
Em relação à Casa Tina Martins, a coordenadora aponta que ainda é uma “luta” junto ao poder público. “A gente tem o reconhecimento do município enquanto equipamento, recebe demandas, mas não recebe nenhum tipo de recurso [público] para que a gente consiga desenvolver nosso trabalho, melhore nossa estrutura e nossa equipe”, afirma Núbia. “A gente se mantém de maneira autônoma e voluntária e os recursos que a gente tem são vindos das nossas atividades de autofinanciamento, nossos apoiadores que doam mantimentos, a comunidade que está em torno da casa”.
Outro lado
A reportagem questionou a assessoria de imprensa da Polícia Civil de Minas Gerais sobre a quantidade de delegacias no estado. A pasta informou que “o atendimento às ocorrências dos crimes previstos na Lei Maria da Penha é realizado em todas as delegacias de Polícia Civil, com servidores aptos a prestarem o serviço”.
Nos demais municípios, com exceção da capital que tem atendimento 24h, “as ocorrências, com conduzidos e flagrantes, são recebidas nas unidades de plantão ligadas às delegacias regionais, que também tem funcionamento ininterrupto, todos os dias da semana”. O órgão disse ainda que “os casos de violência doméstica podem ser registrados em qualquer unidade da Polícia Civil ou da Polícia Militar”.
Questionamos o governo do estado de Minas Gerais sobre as casas-abrigo, mas não tivemos resposta.
Análise da dados: Maria Elisa Muntaner
Infografia: Antônio Junião
Amazônia Real, Agência Eco Nordeste, #Colabora, Portal Catarinas e Ponte Jornalismo
Parceria entre cinco mídias independentes monitora os casos de violência doméstica e feminicídio no Brasil durante a pandemia do novo coronavírus