Sabe-se que a tortura é um tipo de crime privilegiado pela invisibilidade. Não é um tipo de ato praticado em público. Mesmo quando alguém presencia uma cena de tortura, quando o caso envolve agentes públicos, a testemunha vai pensar duas vezes antes de denunciar, com medo de ameaças e represálias. Daí a importância da apuração cuidadosa
Por Gorete Marques[1] e Vivian Calderoni[2], especial para a Ponte
Daniel Eustáquio lutou durante dois anos para provar que quatro policiais militares executaram seu filho e o amigo dele. No dia 28 de janeiro, o Júri condenou os acusados a 24 anos de reclusão pelo crime. Se o pai não tivesse corrido atrás das provas do que aconteceu com seu filho, este seria mais um caso registrado como “resistência seguida de morte”, sustentado apenas pela versão dos policiais envolvidos. A coragem desse pai em reunir as provas que revelassem o que aconteceu impactou significativamente no desfecho do caso.
Mas a condenação de agentes públicos por execução, tortura ou outros tipos de violência é algo difícil de acontecer, como mostra a pesquisa “Julgando a Tortura”, lançada pelas entidades Conectas, IBCCrim, ACAT, NEV-USP e Pastoral Carcerária. Apesar do caso Eustáquio tratar-se de execução e a pesquisa ter analisado os casos de tortura, o paralelo é perfeito.
A pesquisa analisou 455 decisões de segunda instância de todos Tribunais de Justiça do país, do período de 2005 a 2010. Um dos pontos de destaque desse estudo diz respeito à comprovação dos crimes de tortura praticados por agentes públicos. Quem acusa (no caso, a alegada vítima de tortura) precisa demonstrar não só que o crime ocorreu, mas também quem o cometeu. Caso contrário, o juiz deve absolver o acusado.
Em geral, as provas colhidas e produzidas contra agentes públicos são consideradas precárias e, portanto, insuficientes para sustentar uma condenação. Em 38% dos casos dos casos de tortura analisados pela pesquisa, a razão da absolvição dos agentes era justamente a falta de provas. Nos casos envolvendo agentes privados, como pais, mães, padrastos ou madrastas, essa porcentagem foi de 12%.
Para que a violência seja enquadrada como tortura, a lei exige que haja intenso sofrimento físico e mental. Em muito casos pesquisados, a intensidade da violência não foi comprovada: “o sofrimento físico e/ou mental requerido para a configuração do tipo, e alegado pela vítima, não foi corroborado pelas provas técnicas acostadas aos autos” (Acórdão TJDF), e este é um argumento facilmente encontrado em outros acórdãos envolvendo agentes públicos.
Outra dificuldade é a comprovação da autoria. Em alguns casos a prática da violência foi evidenciada em laudos periciais, mas a autoria ficou prejudicada por falta de provas. Podemos citar o que diz o desembargador de um dos acórdãos analisados:
Ponham-se num liquidificador biribá, pitomba, ata, sorva, pupunha, graviola, pitanga, taperebá, ingá e mari-mari e que se ligue o aparelho. Após alguns instantes, pode-se afirmar que todas aquelas frutas estão lá, mas já não se conseguirá identificar uma a uma, separadamente. Foi o que ocorreu na investigação penal e, durante o processo, não se conseguiu provar quem era quem e quem fez o que. Dos indiciados e acusados, três se chamavam Eduardo e sequer se cuidou de providenciar um reconhecimento pessoal.
E, sem prova segura da autoria, não se pode condenar alguém, embora a existência de crimes de tortura em estabelecimento do DEGASE tenha ficado evidenciada. Alguns adolescentes chegaram a ser postos em cela sem iluminação e sem ventilação, onde os pés afundavam em fezes. Havia instrumentos para agressão sem deixar marcas. Eram os denominados “cotonetes de King-Kong”: pedaços de madeira com pano enrolado em uma das extremidades (Acórdão TJRJ).
Sabe-se que a tortura é um tipo de crime privilegiado pela invisibilidade. Não é um tipo de ato praticado em público. Mesmo quando alguém presencia uma cena de tortura, quando o caso envolve agentes públicos, a testemunha vai pensar duas vezes antes de denunciar, com medo de ameaças e represálias. Daí a importância da apuração cuidadosa de tais crimes.
A precariedade das provas está relacionada às autoridades responsáveis por sua coleta e produção, seja na fase de inquérito, seja perante a Justiça. O exame de corpo de delito não é feito, ou quando feito é realizado dias após a vítima ter sofrido as agressões, ou é feito de modo a esconder a realidade, isso irá impactar na consideração do caso. A falta de outras provas, como fotografias, reconhecimento dos agressores pela vítima, perícia psicológica, entre outras, prejudicam o julgamento. Esse foi um aspecto ressaltado por um magistrado em um dos documentos analisados na pesquisa:
A absolvição, no presente caso, deve ocorrer, não por ausência de testemunhas presenciais, mas sim, porque, lamentavelmente, tanto a instrução do inquérito, como a instrução judicializada, deixaram muitíssimo a desejar, na medida em que, quem os presidiu, em nenhum momento, cuidou de oportunizar as vítimas, fazerem o reconhecimento pessoal dos seus agressores, quando lhes era perfeitamente possível fazê-lo. (ACÓRDÃO TJMG 37, 2012)
Neste acórdão o desembargador aponta uma série de falhas na condução das instituições de investigação e do próprio judiciário para a colheita e produção de provas do crime. Não por acaso, ocorrências de violências praticadas por agentes policiais ou penitenciários são arquivadas ou acabam, na maioria dos casos, resultando em absolvição.
Quando observamos o total de agentes públicos, 74% deles foram condenados em primeira instância e 22%, absolvidos. Quando observamos o total de agentes privados, 84% deles foram condenados por crime de tortura e 17%, absolvidos.
Com relação às decisões de segunda instância, o quadro é o seguinte: do total de agentes públicos, 53% deles foram condenados em segunda instância e 35% absolvidos. Quando observamos o total de agentes privados, 72% deles foram condenados por crime de tortura e 11%, absolvidos.
Quando relacionamos as conversões das decisões com o perfil dos acusados envolvidos percebemos que há certa variação.
O cruzamento dos fundamentos das decisões de 2º instância com o perfil do acusado leva-nos a perceber que, nos casos envolvendo agentes privados, houve um maior número de casos, 72% do universo dos processos envolvendo esses agentes, cujas provas foram consideradas suficientes pelos julgadores para comprovar a tortura. Essa porcentagem cai para 53% nos casos em que agentes públicos são acusados.
Os dados parecem apontar para uma tendência em se condenar os agentes privados mais do que os agentes públicos a partir do argumento de que estariam presentes no processo as provas de materialidade e autoria. Isso pode revelar que as deficiências com relação à produção de provas e reconhecimento da autoria parecem ser mais frequentes nos casos envolvendo os agentes públicos como autores do crime do que nos casos de agentes privados.
Qual será a razão de tal diferença? Será que a relação de submissão da vítima perante um agente público dificulta a obtenção de prova? Será que diz respeito à invisibilidade da violência praticada por agentes públicos e a falta de testemunhas? Será que há uma certa relativização dos crimes de tortura quando envolvem agentes públicos e as vítimas são supostos criminosos ou pessoas em privação de liberdade? Será a palavra da vítima não é considerada como prova quando ela é suspeita ou está presa?
Os resultados desta pesquisa trazem à tona o que os parentes e vítimas já sabem na prática: a produção de provas contra agentes do Estado tende a ser fraca. É necessário e urgente que essa realidade seja alterada, para não dependermos da atuação heroica de outros como Daniel Eustáquio.
[1] Gorete Marques é socióloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP.
[2] Vivian Calderoni é advogada do programa de Justiça da ONG Conectas Direitos Humanos.
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