Vila da Barca sofre o descaso e abandono em meio à pandemia do coronavírus

    Bairro onde fica uma das maiores comunidades de palafitas da América Latina, em Belém (PA), já registrou 68 mortes pela doença

    Na foto está a presidente da Associação dos Moradores da Vila da Barca, Inês Medeiros | Foto: João Paulo Guimarães

    A Vila da Barca é um dos bairros da periferia de Belém está enfrentando um impacto muito forte da disseminação da pandemia do novo coronavírus. É considerada uma das maiores comunidades em palafitas da América Latina. Parte dos moradores não possuem esgotamento sanitário e água encanada. 

    A estudante de radiologia, Elk Emanuelly Pereira dos Santos, de 24 anos, diz que em uma semana perdeu o pai, Carlos Emerson, de 47 anos, e sua avó, Dulce Batista, de 68 anos. “Eles falecerem vítimas da Covid-19”, disse.

    Segundo informações disponibilizadas no site da Prefeitura Municipal de Belém, foram registrados 430 casos de pessoas infectadas pelo coronavírus, com 68 óbitos, apenas no bairro do Telégrafo.  

    Elk diz que o pai era do grupo de risco e portador de um câncer no intestino. Por isso, acredita acredita que, por estar fazendo quimioterapia e radioterapia, em dois hospitais públicos, o deixou mais vulnerável à Covid-19. “Ele apenas saia de casa para fazer o tratamento contra o câncer. A Covid-19 chegou em minha casa de uma forma inexplicável. Foi tudo muito rápido”, disse.

    A estudante conta que a primeira pessoa a sentir os sintomas do novo coronavírus  foi a esposa do seu tio, que mora na casa da avó. Depois, segundo ela, a doença se manifestou em sua mãe. 

    “A gente estava mantendo o distanciamento, estávamos tendo todo o cuidado possível. Eu cheguei a apresentar os sintomas, pois tive a perda de olfato e paladar, e por último foram o meu pai e a minha avó. Contudo, quando eles apresentaram sintomas do coronavírus, foi desesperador”, disse.

    Elk diz que seu pai e a avó adoeceram no mesmo período, entre o final de abril e início de maio. “Minha avó apresentou tosses muito fortes, que causavam dores em todo o corpo. Dois dias depois, meu pai apresentou febre e tosse. Meu pai fez o teste num hospital particular e testou positivo para Covid-19. O médico recomendou que ele voltasse pra casa, por ser paciente de risco”, conta.

     “Minha avó chegou a ser atendida numa unidade de saúde, foi internada numa Unidade de Pronto Atendimento – UPA, já com 53% dos pulmões comprometidos. Ela apresentava um boletim estável, mas teve problemas com a aceitação da azitromicina em seu organismo. Já o meu pai, estava piorando e teve muitas dificuldades na intubação”, relata Elk Santos. 

    Durante o bloqueio total, o lockdown, no período de 7 a 24 de maio,para impedir a disseminação do novo coronavírus em Belém, Cícero da Silva, de 41 anos, que trabalha no setor de almoxarifado de uma empresa privada, sem carteira assinado, não pode fazer o seu trabalho de casa, o chamado “home office”, para ficar em casa. Todos os dias, quando chega em sua residência, ele toma todos os cuidados sanitários recomendados, para evitar que sua família fique exposta a Covid-19: deixa os calçados do lado de fora da sua residência; entra de máscara; vai direto para o banheiro e lava as vestimentas na mesma hora em que acaba de tomar banho.

    Andenilce Souza, tia de Elk, mostra as fotos do irmão e da mãe mortos por Covid-19
    | Foto: João Paulo Guimarães

    A Vila da Barca, que fica no bairro Telégrafo, é dividida em duas áreas: conjuntos, situados em ruas asfaltadas ou de terra batida, e áreas onde existem casas de palafitas, ou seja, na beira do rio.  A presidente da Associação dos Moradores da Vila da Barca, Inês Medeiros, diz que a situação do abastecimento é crítica, pois a tubulação central, que transfere água às casas, está há mais de 30 anos sem manutenção, troca ou reparo.

    Em nota, a Companhia de Saneamento do Pará (Cosanpa) informou que “está em andamento a obra de substituição de todas as redes de cimento amianto de Belém”. A Companhia informa ainda que Vila da Barca será beneficiada pela obra, que ocorre em mais de 20 bairros da capital substituindo cerca de 150 km da rede de abastecimento de água. Alega também que realizou o cadastro de novos moradores e que fez a atualização dos já existentes no local. “Na área da Vila da Barca serão implantados 395 metros de nova rede. A previsão é que a obra seja totalmente concluída em 2021”, finaliza a comunicação oficial da concessionária pública de água, na capital paraense.

     “Além das moradias em palafitas, quase 60% da comunidade, existem também as que moram em terra firme. São casas de um projeto habitacional que foi entregue apenas um terço pronto”, conta Inês Medeiros. A presidente da associação está realizando um censo na comunidade para atender as necessidades das famílias neste período da pandemia do coronavírus. “Como levar até elas alimentos, itens de higiene pessoal, de limpeza, etc. Nós entrevistamos o morador ou moradora, entendemos o que eles estão necessitando”, diz ela, que está arrecadando cestas básicas e produtos de higiene para doar às famílias da comunidade.

    Após muitas lutas dos moradores da Vila, o Ministério Público Federal (MPF) cobrou a finalização do projeto habitacional na comunidade, já ainda no início da década de 2000, a gestão do governo federal da época, destinou recursos públicos às construções das habitações. Tal projeto deveria ter sido executado pela Prefeitura Municipal de Belém, porém, após a transição de prefeitos, apenas parte dele foi iniciado (em 2006), ainda na gestão anterior. Boa parte das obras – que deveriam dar lugar às novas habitações – estão em processo de deterioração e, atualmente, abrigam pessoas em situação de rua. Até hoje, centenas de famílias aguardam a entrega de moradias dignas para viverem adequadamente. As obras deveriam ter sido totalmente entregues em 2010. Ou seja, há exatamente uma década, diversas famílias aguardam a finalização de um projeto que envolveu desvio de dinheiro público.

    Comunidade da Vila da Barca no bairro Telégrafo, em Belém | Foto cedida por João Paulo Guimarães

    Em matéria publicada no site do MPF, a instituição ressalta que, enquanto as obras não são entregues, “mato e sujeira tomam conta dos prédios inacabados, centenas de moradores vivem de aluguel social, as áreas de palafita foram reocupadas e as unidades que foram entregues já estão deterioradas”.

    O MPF informa ainda que em 2010, ajuizou ação de improbidade administrativa contra o ex-prefeito Duciomar Costa e outros 13 acusados pelo desvio de R$ 31,2 milhões do projeto de reurbanização. Em 2018, a Justiça Federal publicou sentença considerando improcedentes as acusações contra o Duciomar Costa.

    No ano passado (2019), o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União encaminharam ação à Justiça Federal, solicitando que a gestão Municipal de Belém, a Caixa Econômica Federal e a União fossem obrigadas a entregar todas as unidades habitacionais, previstas no projeto Vila da Barca, dentro de dois anos (prazo máximo). Segundo o Ministério Público, nem metade das obras chegaram ser construídas. Ainda de acordo com o Ministério, a Caixa Econômica Federal alega que “das 794 unidades habitacionais previstas para serem entregues, 522 não saíram do papel, apesar de R$ 11,2 milhões em recursos públicos federais já terem sido repassados para o projeto”.

    Inês Medeiros explica que a extensão física da Vila da Barca é grande e apresenta inúmeras problemáticas, como as de muitas outras periferias do Brasil afora. “Não temos a presença do Estado neste momento de pandemia, a não ser a da polícia. No entanto, a presença de instituições voltadas à saúde e assistência social, para atender a comunidade, nós não temos, nem por parte do governo do estado e nem da prefeitura”, desabafa a presidente que reitera que a associação nasceu justamente por conta deste abandono do poder público.  

    Os idosos da Comunidade da Vila da Barca na quarentena, sem sair de casa
    (Foto cedida por João Paulo Guimarães)

    A Associação dos Moradores da Vila da Barca, neste momento de pandemia do coronavírus, busca novas parcerias para atender as principais emergências socioeconômicas da comunidade. Por isso, está em fase de finalização de um processo de cadastramento sobre a situação dos seus moradores. “A gente observa que muitas dessas pessoas trabalhavam de maneira informal. Faziam as suas vendas ou perderam os seus empregos. É um momento muito crítico. A comunidade está sentindo. Precisamos de ajuda e, neste momento, o que podemos fazer, é dar esse apoio mais assistencialista. Ainda não é o ideal, porém, é o que estamos conseguindo fazer, sobretudo, em prol das famílias em situação de vulnerabilidade social mais críticas”, conta Inês.

    Ela destaca ainda que muitos moradores não podem fazer o isolamento social, justamente por não terem recursos para garantir a aquisição de alimentos às suas famílias. Afirma que, por meio do levantamento da associação, muitos chefes de famílias ainda não conseguiram acesso ao auxílio emergencial. “A gente percebe que, infelizmente, muitas pessoas precisam sair das suas casas. Elas se arriscam, não por que querem, mas por necessidade. Há pessoas que não possuem o mínimo para ficarem em suas casas”.  

    A Vila da Barca é abriga a Fundação Curro Velho, um espaço cultural criado para reduzir a violência na região. A instituição funciona nas dependências de um prédio histórico, com forte influência neoclássica de meados do século XIX (1861). O lugar foi construído para abrigar o primeiro matadouro de Belém, o Curro Velho. Depois, foi restaurado e adaptado para sediar o núcleo de formação e qualificação em educação e arte. A fundação foi criada em 1991 pelo ex-governador Hélio Gueiros (1925-2011). 

    Atividades no Curro Velho, em 2019 | Foto: Roberta Brandão

    A artista Janiely Silva da Silva, de 19 anos, estudou no Núcleo de Oficinas Curro Velho. Ela é uma das pessoas que teve a família beneficiada pela corrente de solidariedade que foi feita, em prol dos moradores da comunidade. A jovem mora com uma família numerosa e estão seguindo a risca o isolamento social. Apenas saem para realizar atividades essenciais. “Antes da pandemia eu conseguia ajudar bastante a minha família financeiramente, com os meus trabalhos artísticos, mas com a chegada do coronavírus, tudo ficou um caos. Então, já recebemos várias cestas básicas, pois aqui em casa somos oito pessoas”, conta.

    Ela está feliz com a aprovação, no senado, da Lei 1075/2020, conhecida como Aldir Blanc – que pode conceder cerca de 3 bilhões de recursos, voltados para ações que atendam as necessidades da classe artística, que padece com a pandemia do coronavírus. “Para nós, artistas, esse momento está sendo precário, sobretudo para aqueles que não possuem internet. Pois, para ter acesso aos editais, construir e propor projetos ou mesmo realizar lives, é preciso ter essa estrutura mínima. A maioria dos artistas de Belém do Pará está passando por uma situação bem delicada. Nós precisamos de público. Então, estar em casa e não poder trabalhar, é muito difícil”, relata. 

    Além da atuação da associação, existem moradores da própria comunidade que desenvolvem projetos sociais para amenizar a desigualdade social pela qual passam as famílias da Vila da Barca. É o caso do cursinho popular que atende gratuitamente estudantes que residem na comunidade que conta com aulas presenciais e distribuição de material gratuito. Com a pandemia, as aulas precisaram ser suspensas. Todavia, estão sendo feitas aulas virtuais, via aplicativo de mensagens instantâneas (WhatsApp), que é uma maneira mais acessível de chegar até aos estudantes que não possuem um computador com acesso à internet para se prepararem, das suas casas, ao Enem – que apesar da mobilização nacional pedindo pelo seu adiamento, ainda não foi descartado de ser realizado ainda neste ano.

    Vila da Barca enfrenta a falta de saneamento básico e o abandono do poder público
    | Foto: João Paulo Guimarães

    O que diz a Prefeitura de Belém

    Em nota, a Secretaria Municipal de Habitação (Sehab) informa que as obras do projeto Vila da Barca estão em andamento. Ele se divide em três etapas, onde já foram entregues 168 unidades habitacionais da Etapa I,  12 unidades da Etapa II e oito unidades da Etapa III,  restando para serem executadas 78 unidades da Etapa II e 120 da Etapa III, que já possuem empresas contratadas e estão em andamento. Acerca das ações Sobre as medidas de assistência, o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) do Barreiro, que abrange a Vila da Barca, fica disponível para atendimento das  famílias que participam do serviço de convivência realizando os encaminhamentos para os programas sociais.

    Comunidade da Vila da Barca
    | Foto: João Paulo Guimarães

    Como ajudar a comunidade da Vila da Barca

    Entre em contato pelo site (www.viladabarca.org) ou pelo telefone: (91) 98305-7629

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    Reportagem publicada originalmente em Amazônia Real

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