“Quero voltar logo para jogar futebol”: a saga de uma criança para fazer o aborto no Brasil

    Após uma semana e sob protestos, a menina de 10 anos que foi estuprada pelo tio em São Mateus (ES) conseguiu realizar o procedimento para interrupção da gravidez

    Obra “Procura-se infância” de Hadna Abreu

    Após uma semana de via-sacra, a menina de 10 anos que foi estuprada pelo tio em São Mateus, no Norte do Espírito Santo, pôde, enfim, realizar o abortamento legal. Para acessar esse direito, garantido há 80 anos pelo Código Penal Brasileiro, precisou ser levada para Recife (PE), no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros – CISAM, após o procedimento ter sido negado no Hospital Universitário de Vitória. Durante o abortamento, grupos religiosos fundamentalistas protestaram ao lado de fora contra a garantia do direito. 

    Foi preciso articular uma ação de guerra para que a vítima, acompanhada da sua avó, chegasse com segurança e tranquilidade ao hospital. O itinerário foi mantido em sigilo para salvaguardar o direito da criança, como relata a enfermeira obstetra Paula Viana, coordenadora do grupo Curumim – Gestação e Parto. Durante o percurso, a equipe técnica responsável pelo acompanhamento foi informada da mobilização do grupo fundamentalista que se organizava para constrangê-la. “Tivemos que lançar mão de estratégias bem delicadas, como colocar a avó e a menina no porta-malas do carro que as levou para o hospital, porque fomos informadas pela diretoria do Cisam que existia uma movimentação muito hostil em frente à maternidade. Uma situação constrangedora e humilhante”, revelou Paula, que integrou a equipe junto à uma assistente social do Estado do Espirito Santo. 

    A entrada ocorreu pelo portão dos fundos da maternidade para que logo a menina fosse atendida pela equipe de enfermagem. “A primeira etapa do procedimento ocorreu prontamente. A menina foi muito bem acolhida pela equipe e seguiu para uma área reservada. A avó acompanhou e foi ouvida pela equipe que explicou todos os procedimentos que seriam feitos para a criança. Ela, uma criança negra, calada e com um olhar muito triste, mas com um depoimento muito bonito: ‘eu tô bem, quero voltar logo, porque quero jogar futebol’. O tempo todo ela ficou agarrada a uma girafa de pelúcia e isso comoveu bastante toda a equipe, porque a gente viu o quanto de inocência e sofrimento que aquela criança tinha passado”, relata a coordenadora do Grupo Curumim.  

    Segundo nos contou a entrevistada, todo o procedimento foi acompanhado por gritos constantes de “assassino”, vindos do lado de fora.

    “A equipe, muitas vezes, se entreolhava, a gente via tristeza, mas senti uma equipe muito firme, respeitosa e competente. Essa equipe não pôde continuar dentro do hospital por ameaças. A menina ficou com outra equipe que a acolheu”. 

    O Fórum de Mulheres de Pernambuco estava presente, assim como grupos de estudantes em apoio ao corpo médico. Em um dos vídeos que mostra a tensão entre feministas e fundamentalistas, é possível ouvir uma ativista feminista questionando diante das orações: “vocês estão rezando para uma menina de 10 anos de idade parir?”. Tocador de vídeo00:0001:37

    “Vimos manifestações hostis e violentas, mas também uma pronta-resposta da sociedade contra esses atos. A força do movimento feminista brasileiro, a articulação que foi feita e o comprometimento de muitas autoridades do Espírito Santo, do Ministério Público, do Tribunal de Justiça e da Secretaria de Saúde do estado que apoiaram, trouxeram para si a responsabilidade pela saúde e vida dessa criança”, conta Paula Viana com entusiasmo.

    A ativista pondera, no entanto, que a saga pela garantia do direito ainda não acabou. “Sabemos como vai ser difícil a volta dela para a sua casa. E esperamos que o Estado proteja a família e essa menina como elas merecem”. Tocador de vídeo00:0002:03

    No entendimento do ginecologista e obstetra Cristião Fernando Rosas, da Rede Médica pelo Direito de Decidir – Global Doctors For Choice/Brasil, a ofensiva contrária à garantia do direito demonstra a intolerância de um grupo minoritário que quer impor a sua crença à totalidade da população. “São pessoas que não conseguem se solidarizar minimamente com o sofrimento de uma criança de 10 anos, grávida de um estupro. Eu os respeito na legitimidade da sua fé dentro da sua residência ou templo, mas impor a sua vontade, ainda mais com difamação, dizendo que a equipe médica é assassina, quando na verdade está realizando um procedimento para tentar salvar a vida dessa criança, é de uma torpeza, de uma desqualificação tão grande. A sociedade vai conseguir ver a radicalidade absurda dessas pessoas e felizmente temos uma Constituição democrática que garante Estado laico”, analisa o ginecologista. 

    Para o médico, a sucessão de equívocos poderia ter sido evitada há uma semana, quando a menina e a avó chegaram ao primeiro hospital. “O mais complicado foi a equipe de saúde ter recusado o procedimento já no início. Sair de um hospital universitário, de uma federal, para ser transferida num voo de dois mil quilômetros, com conexão para ter acesso ao seu direito legal, uma menina de 10 anos estuprada cronicamente há quatro anos, grávida por estupro de vulnerável, e ainda com todas as questões que a gestação nessa idade trazem… é uma tragédia”.

    Já, como analisa a antropóloga Debora Diniz da Anis – Instituto de Bioética, essa via sacra é a prova do que acontece quando o aborto é criminalizado no país. “O aborto se torna uma questão de um pânico moral, tema de fanatismo contra vítimas tão inocentes, indefesas. É de uma perversidade tão grande que uma situação de violência sexual contra uma menina de dez anos passa a ser objeto de tamanha controvérsia, tamanha perseguição e fanatismo com ampliação de camadas de sofrimento e maus tratos à saúde dela. É a prova do que faz a criminalização de uma necessidade de saúde”. 

    No Brasil, a interrupção da gestação é permitida por lei e deve ser realizada em hospitais públicos em três situações: gravidez decorrente de estupro, risco de morte anencefalia fetal. A gravidez até os 14 anos, entendida legalmente como resultante de estupro, não é uma exceção neste país, tampouco a sua manutenção. Somente em 2018, última atualização do DataSUS, 21.172 bebês nasceram de crianças de 10 a 14 anos. De 1994 a 2018, foram 655.836 nascidos vivos, uma média mais de 26 mil nascimentos por ano. Ou seja, mais de 600 mil crianças foram vitimizadas triplamente: estupradas, elas não acessaram o direito ao aborto legal e, possivelmente, vivenciaram a maternidade de forma compulsória. 

    Sucessão de violações

    Os primeiros passos da via sacra começaram no sábado, quando a menina foi levada pela avó ao Hospital Estadual Roberto Silvares, em São Mateus, a 215 quilômetros de Vitória, e lá descobriu-se a gravidez produto da violação. Depois, ela seguiu para a delegacia de polícia e foi encaminhada a um abrigo para aguardar a decisão da Justiça que saiu na última sexta-feira (14). No dia seguinte à decisão, a criança chegou a ser internada no Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes – HUCAM, mas mesmo com decisão favorável da Justiça a equipe médica do Programa de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual (Pavivi) se recusou a realizar a interrupção. Segundo informaram em nota, “a idade gestacional não está amparada pela legislação vigente” que permite o aborto no país”.  A menina estava com 22 semanas e quatro dias de gestação. 

    Hospital Estadual Roberto Arnizaut Silvares, em São Mateus | Foto: Governo do Estado do ES

    Conforme defende Rosangela Talib, coordenadora das Católicas pelo Direito de Decidir, não existe restrição de tempo gestacional quando o que está em questão é a vida da menina. “Um hospital universitário se recusar a fazer o procedimento, eu não sei que tipo de médicos estão formando. É um descaso com a vida das meninas e mulheres. Como se essas vidas não tivessem nenhum valor. Não só a recusa de obedecer a uma ordem judicial, foram contra o Código de Ética profissional. Como se deixa uma menina de 10 anos a própria sorte com uma gravidez de risco? Ainda ter que transportar para outro estado depois de toda violência que sofreu. É o Estado violentando novamente essa menina”, avalia a ativista. 

    “O surpreendente é que ela foi encaminhada para um hospital público de referência e a decisão foi negativa, alegando que estava fora dos protocolos legais, o que na verdade não corresponde ao que diz a Lei, que não estabelece limite para a interrupção da gravidez em nenhuma condição”, afirma o ginecologista e obstetra Cristião Fernando Rosas.

    Segundo explica o médico, a Norma Técnica “Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes” do Ministério da Saúde, editada em 1999 e atualizada em 2012, voltada unicamente à interrupção em caso de estupro, estabeleceu na época como limite para a realização do procedimento a idade gestacional de 22 semanas. Tal demarcação gera polêmicas na observância técnica nos dias atuais, conforme aponta.

    “Apesar de a norma recomendar isso em 2012, não quer dizer que em 2020 a condição e a técnica da medicina tenham que segui-la. A lei não faz esse limite, tanto que ninguém pergunta sobre idade gestacional em caso de anencefalia fetal e risco materno, pois a preocupação é salvar a vida das mulheres. Os hospitais diariamente fazem antecipação terapêutica do parto com 23 semanas. Outra questão é considerar a variabilidade da idade gestacional que pode chegar até 15 dias de erro de cálculo. E da mesma forma, ela entrou no serviço de saúde há uma semana, não tinha sequer 22 semanas. Além disso, essa questão de que ultrapassou a idade gestacional por alguns dias é excesso de rigor”, explica o ginecologista. 

    Além de gravidez resultante de estupro, uma criança também tem direito ao aborto pelo simples fato de ser criança e a condição de gravidez precoce representar um risco à saúde. “Evidentemente há os riscos gestacionais, que é uma das indicações para a interrupção da gravidez de uma menina de 10 anos, vítima de estupro. Há riscos de eclampsia, pré-eclâmpsia e outros. A bacia em termos de formação óssea é imatura para gestação e parto, por isso há mais chances de complicações”, destaca. 

    O médico que atua em rede internacional voltada à garantia dos direitos reprodutivos das mulheres é enfático ao afirmar que a negativa da equipe médica viola direitos fundamentais. “Manter uma criança gestante à sua revelia de um fruto de estupro, não permitir que tenha garantido um direito constitucional, civil, um direito reprodutivo assegurado pelos tratados internacionais, é uma terceira violência. É submetê-la a uma condição de tortura por nove meses. Tortura é crime cruel”.

    A vontade da criança é soberana

    Os riscos à vida da criança embasaram o pedido judicial para a realização do procedimento feito pelo promotor da Vara da Infância e da Juventude, Fagner Cristian Andrade Rodrigues. O promotor também menciona o fato de não haver impedimento legal relacionado à idade gestacional. Ao contrário, argumenta que os riscos do parto são maiores que os do aborto. “[…] segundo a literatura, não é impeditivo para a interrupção da gravidez, exceto se, no caso concreto, constituir risco de vida para a mãe. Entretanto, é de se considerar que se o risco para a vida da mãe é óbice para a interrupção no estado em que se encontra, o que se dirá ao fim de nove meses de gestação? Apesar dos riscos relacionados ao aborto aumentarem com a idade gestacional, o risco de morte entre abortos acima de 21 semanas de gravidez é bastante incomum, ou seja, o aborto, mesmo nas idades gestacionais mais avançadas, é marcadamente mais seguro do que o parto”.

    Autor da  ordem para interromper a gravidez, Antônio Moreira Fernandes, juiz da Vara da Infância e da Juventude, também considerou que a idade gestacional não interfere no cumprimento da lei. Segundo o juiz, a lei “assegura que até mesmo gestações mais avançadas podem ser interrompidas, do ponto de vista jurídico, aduzindo o texto que é legítimo e legal o aborto acima de 20-22 semanas nos casos de gravidez decorrente de estupro, risco de vida à mulher e anencefalia fetal”.

    Dessa forma, a determinação do magistrado determinou que fosse realizada “a imediata análise médica quanto ao procedimento de melhor viabilidade para a preservação da vida da criança, seja pelo aborto ou interrupção da gestação por meio do parto imediato”.

    Ainda ressaltou que o “desejo da vítima pelo fim de sua gestação advinda de uma situação violenta que jamais pessoa alguma deveria ser submetida e, portanto, necessita de ser respeitada e levada em consideração nesta decisão, mesmo sendo ela incapaz de exercer os atos da vida civil”.  Concluiu que “a vontade da criança é soberana, ainda que se trate de incapaz”.

    “Com estatísticas de abandono, e de abandono mesmo perto, por que então materializar a dor subtraída, uma vez não ser a vontade de quem a gere? O aborto, palavra que corrói o curso do existir. Existir neste contexto dói, e a dor religiosa é um direito de escolha individual, não uma ordem imposta pelo Estado Democrático de Direito”, advertiu o juiz. 

    Para Rosangela Talib, das Católicas pelo Direito de Decidir, o MP e o judiciário reafirmaram que o Estado não poderia se negar a fazer a interrupção dessa gravidez, porque além de envolver uma criança, trata-se de uma situação de risco.

    “Era a única decisão possível e a gente esperava que o Estado respondesse prontamente. A aclamação foi nacional, de todos os lados todo mundo dizendo ‘não é possível que essa gravidez seja mantida’. O apoio que essa menina precisava nesse momento era a interrupção da gravidez, não tinha alternativa. E pelo que se noticiou era o que ela queria: mesmo sendo menor o desejo dela tem que prevalecer”. 

    “Esperamos que o abusador seja punido. Agora, a menina vai precisar de amparo psicológico e médico. Que a sociedade e o Estado se responsabilizem pelo acolhimento dela”, conclui a coordenadora da organização.

    Não há necessidade de autorização judicial

    Acompanhada da avó, a menina buscou o Hospital Estadual Roberto Silvares, em São Mateus, a 220 km de Vitória, com sintomas e lá descobriu a gravidez. Após confirmação da gestação, ela contou que o autor do estupro foi o tio e que os abusos se repetiram por pelo menos por quatro anos. 

    A equipe médica do hospital, porém, não a encaminhou para a realização do abortamento em hospital credenciado, mas sim para o serviço de pré-natal, o que motivou o pedido judicial pelo Ministério Público para salvaguardar o direito da menor. A secretária municipal de Assistência Social, Marialva Broedel, afirmou na ocasião que a possibilidade de ter a gravidez interrompida estava em análise judicial. 

    Um dos profissionais que atendeu a criança relata, na decisão judicial, que “ela apertava contra o peito um urso de pelúcia e só de tocar no assunto da gestação entrava em profundo sofrimento, gritava, chorava e negava a todo instante, apenas reafirmando não querer”.

    “A simples leitura do artigo 128 do código penal permite concluir que nesse caso a criança está amparada pelas duas hipóteses de abortamento legal previstas! Não se trata de caso de interpretação jurídica, mas de simples leitura da letra da lei, a legislação é transparente”, diz trecho da nota “Gravidez infantil forçada é tortura!”, da Frente pela Legalização do Aborto do Espírito Santo (Flaes), assinada por dezenas de organizações brasileiras. 

    Em entrevista ao jornal O Globo, José Carlos Rizk Filho, presidente da OAB-ES, manifestou-se favorável ao aborto, justamente porque o caso atende dois requisitos legais: estupro e risco de morte.

     “Os médicos acionaram a Justiça e a Justiça tem que dar resposta quando é chamada. Por isso, surgiu essa decisão judicial. Porque o aborto no caso de risco de vida e estupro é decisão da paciente e médico”.

    Advogada Sandra Lia Bazzo Barwinski, coordenadora do Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem Brasil).

    A entrevistada reforça que a interrupção da gravidez é direito da menina, previsto na legislação brasileira e recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), UNICEF outras organizações internacionais, por envolver estupro e situação de risco à vida e saúde da criança. Segundo a entrevistada que acompanhou o caso, a menina estava com diabetes gestacional, o que aumentava os riscos da gravidez. 

    “O caso não precisaria ser levado à Justiça. Trata-se de estupro, estupro de vulnerável, e risco de vida à mulher, que neste caso é uma menina, uma criança. A gente chama de menina porque é do sexo feminino, mas ela é uma criança. Ela tem 10 anos, eu não sei exatamente o tamanho dessa menina, mas suponho que seja pequena, uma criança nesta idade deve pesar em média 30 quilos, ou seja não tem corpo formado, não tem maturidade, os órgãos reprodutivos não estão prontos para gestar. O fato de engravidar não significa que esteja pronta para gestar”, afirma a advogada.

    Nas situações de gravidez de menores de 18 anos, é necessária a autorização do representante legal para a realização da interrupção da gestação, como explica a especialista.

    “No caso, a menina queria interromper e a avó também, então não havia divergência. A necessidade de autorização judicial surge quando há divergência entre a palavra da criança ou adolescente e seu representante legal. Nesse caso não havia, pelo contrário há um consenso na família de que essa gestação tem que ser interrompida porque a criança não tem condições de manter uma gestação nesta idade”.

    Parir ou brincar

    Nos casos em que houver divergência entre a decisão da criança e da/o representante legal, deve ser priorizada a palavra da vítima, por se tratar de escolha existencial, como prevê a normativa internacional. “Não se pode obrigar a ter filho, mas não também não é possível obrigar a não ter. Porque é decisão da pessoa de mais ninguém. Quando se trata de criança a gente chama de autonomia progressiva. Vamos olhar o interesse da criança, a capacidade que ela tem de compreender a situação. Por exemplo, ela quer ser mãe, mas não sabe o horário de tomar banho, ela tem capacidade de decidir isso? Provavelmente, não”.

    O Cladem realizou duas campanhas contra a gravidez infantil, chamadas “Gravidez infantil forçada é tortura” e “Parir ou brincar”, distinguindo a gravidez infantil de gravidez na adolescência e informando sobre os três tipos de violações cometidas contra as crianças nos casos em que levam a gestação até o fim. O estudo “Niñas madres. Embarazo infantil forzado em América Latina y El Caribe”, publicado em 2016 pela organização, esclarece que no momento em que a menina se torna mãe são cometidos três tipos de violação: “o primeiro, impondo um relacionamento sexual indesejável; o segundo, forçando-a a realizar uma gravidez que não procurou; e o terceiro, obrigando-a a ser mãe contra a vontade”.

    Sandra lembra que o Cladem foi a primeira organização a levar um caso de gravidez infantil para a corte da Organização dos Estados Americanos (OEA), envolvendo uma menina de 10 anos que teve o direito ao aborto negado no Paraguai. “Todas as evidências científicas colocam diversos riscos, incluindo de morte. Para além disso, tem um custo econômico e social muito grande porque ela não vai conseguir cuidar dessa criança. Então, são duas crianças precisando ser cuidadas. A criança abandona os estudos porque é estigmatizada por ser mãe e todo o desenvolvimento cultural, intelectual e socioeconômico é afetado. Quando deixa de estudar, tem mais propensão a baixa renda, dificuldades de emprego, isso tem um custo alto para ela”. 

    Segundo a advogada, a legislação internacional diz que mesmo até os 18 anos a gravidez não é recomendada por se tratar de um período em que a menina ou adolescente precisa se desenvolver física e mentalmente: ir à escola e brincar. “Por isso, o Cladem traz essa campanha ‘brincar ou parir’, porque não é fase de ser mãe. Quando a gente pega os dados sobre aborto legal e compara com os números de gravidezes de meninas, percebe que o direito não está sendo garantido no país. Essas crianças estão em bairros pobres tendo uma gestação que vai vulnerabilizar a saúde, desenvolvimento socioeconômico, cultural e intelectual”. 

    Exposição do caso e assédio à família

    O caso tomou repercussão nacional e esteve entre os trendings topic do twitter nos últimos dias com a hashtag #abortoaos10mata, mostrando engajamento social pelo direito ao aborto. 

    A ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, se manifestou no Twitter: “Então minha luta é conspiração? Não existe estupro de crianças? Minha equipe já está entrando em contato com as autoridades de São Mateus para ajudar a criança, sua família e para acompanhar o processo criminal até o fim”. 

    No Facebook informou: “A comitiva ficou chocada ao descobrir outras meninas grávidas vítimas de estupro no município. Encontraram grávidas: uma menina de dez anos, duas de treze anos e uma com onze anos de idade que teve bebê há menos de um mês”.

    Informações de fontes do estado dão conta que a comitiva da ministra, integrada por médicos, assediou a família, oferecendo serviços para que ela não abortasse. O promotor e o juiz do caso teriam recusado participar da reunião com esses integrantes do ministério. 

    Promotoria da Infância e Juventude de São Mateus vai investigar um grupo de pessoas que teria ido pelo menos duas vezes à residência dos familiares para pressioná-la a manter a gravidez. Com argumentos religiosos e citando um suposto apoio da ministra, o grupo oferece à família “juízes do bem” e médicos em troca da menina manter a gestação. Segundo a jornalista Fabiana Tostes, a avó chegou a desmaiar e familiares mandaram o grupo embora. Um pré-candidato a vereador, filiado ao PSL, estava entre eles. 

    Como revela a advogada do Cladem, em todos os casos acompanhados pela organização na América Latina e Caribe há essa tentativa de levar o debate para a moral, para discutir o direito no espaço público. “No entanto, as ofertas desses grupos não se mantêm. Nenhum desses grupos cumpriu as promessas iniciais de ajudar as famílias. No caso da menina do Paraguai, apesar da decisão da OEA, ela foi obrigada a manter a gestação, mas está abandonada, ninguém foi atendê-la. Essa história de dizer que vou cuidar, vou providenciar não acontece, nunca aconteceu”.

    Sobre a exposição do caso e as manifestações contrárias, Sandra explica que quando se fala em direitos humanos, ou direitos fundamentais, esses não são de ordem política, pública, mas sim exercidos na individualidade. “Essa é uma decisão existencial que só cabe ao indivíduo. Esses direitos dessa menina não são políticos, públicos, ninguém pode dispor sobre direito fundamental de uma pessoa”. 

    Construa a Ponte

    A surpresa da ministra com o número de meninas triplamente violadas sugere que ela, após quase dois anos de mandato, desconhece a realidade brasileira. Para a antropóloga Debora Diniz, a ação ou omissão da ministra acentuam a gravidade do contexto. “Estamos vendo esse espetáculo de horror no Brasil. Não há como se falar de proteção à infância, adolescência, sem falar de saúde reprodutiva, em direitos sexuais e reprodutivos no país. A agenda da ministra Damares contra meninas e mulheres sobre abstinência sexual na adolescência é a prova da contramão desses dados. 21 mil meninas que têm interrompido um projeto de futuro somente em 2018, isso é assustador”, analisa a antropóloga.

    De acordo com a Polícia Civil do Espírito Santo, o autor do crime de estupro de vulnerável, de 33 anos, que é tio da criança, está foragido. 

    *Edição de Nicole Ballesteros Albornoz. 

    Reportagem publicada originalmente no Portal Catarinas

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