Coletivo Lójúkojú mostra que, em 246 programas, nenhum indígena ou pessoa com deficiência foi convidado como debatedor
O debate sobre diversidade e representatividade nos diversos meios de comunicação tem assumido importância nos últimos tempos e, com o impulsionamento das redes sociais, que têm pautado, muitas vezes, essa questão, tudo se agiganta. Até porque o Twitter funciona como um rastilho de pólvora: você lança uma ideia e ela pode correr muito rápido e explodir. A publicidade já estava atenta até há mais tempo do que o jornalismo nesse quesito.
Os pesquisadores Tainá Medeiros e Douglas da Nóbrega, do Coletivo Lójúkojú, fizeram um levantamento do programa Roda Viva, da TV Cultura, e mostraram que a teoria, o discurso, não se manifesta na prática. A base de análise foram 246 programas, exibidos de 11 de janeiro de 2016 até dia 22 de junho de 2020.
É bem verdade que o programa tem se esforçado, especialmente no último ano, para trazer mais diversidade. Apesar disso, a branquitude ainda impera: mais de 92% de entrevistadores e entrevistados nos últimos 4 anos eram brancos. O machismo também se mostra em números: entre entrevistados, 184 eram homens e 21 mulheres. Dos 185 entrevistadores analisados, 151 eram homens e 34 mulheres.
Em entrevista ao Projeto Solos, a cientista social Tainá Medeiros conta que a “faísca” que deu origem à pesquisa foi a fala do advogado, filósofo e professor Silvio de Almeida, convidado do programa no dia 22 de junho, que criticou o que ele denominou “micareta racial”. “Na ocasião ele falou que não poderíamos aceitar que o interesse fora de época pelas questões raciais, que geralmente fica entre o 13 de maio e o 20 de novembro, produzido pelos protestos da morte de George Floyd, se transformassem em um evento pontual do qual a mídia tira proveito, mas depois descarta. Todas essas pessoas e instituições que se dizem preocupadas devem transformar suas práticas urgentemente para uma mudança radical da nossa realidade”, explicou Tainá.
Para ela, o discurso sobre a diversidade na mídia, publicidade, ambientes corporativos e outros espaços de poder ainda se distancia da prática por ser construído sob bases frágeis e que, muitas vezes, se limita a simplesmente colocar uma pessoa não branca em um espaço que antes era completamente branco.
“Nesse sentido a representatividade só pode efetivamente produzir efeito na reparação das desigualdades quando consegue caminhar no sentido de promover uma representação proporcional da população brasileira nos mais diversos espaços. Eu quero dizer que, por mais importante, simbolicamente, que seja a presença de uma pessoa negra em uma campanha publicitária de produtos para cabelos crespos, por exemplo, esse fato não necessariamente reflete um compromisso da instituição em se reformular internamente para promover o acolhimento, o respeito, a presença e o desenvolvimento às funcionárias(os) negras(os), dando assim a falsa percepção de representatividade”, analisa Tainá.
No período analisado por Tainá e Douglas, nenhum indígena ou pessoa com deficiência foi convidado como debatedor. Apenas um indígena e três pessoas com deficiência estiveram no centro da roda, como entrevistado.
O ponto de virada
Para a imprensa em geral, um ponto de virada recente muito evidente foi o assassinato de George Floyd, um homem negro, por um policial branco, em maio, lá nos Estados Unidos. Na época, duas situações se impuseram no debate público: a de que os negros daqui eram diferentes dos de lá, que não sabiam se revoltar diante da brutalidade policial, o que, em uma rápida pesquisa em veículos segmentados da mídia contra hegemônica, vê-se como argumento falacioso; e a de que, e essa, sim, uma grande verdade, a mídia nunca racializou as informações com as quais trabalha, certificando o mito da democracia racial e, sobretudo, deixando aos negros e negras o lugar de vítima apenas e não o lugar que lhes cabe, que é o de fala.
Jornalistas e emissoras de TV do mundo todo ficaram malucos com a repercussão dos protestos por George Floyd e uma situação emblemática aconteceu na GloboNews, canal de notícias por assinatura do Grupo Globo: um mosaico com meia dúzia de jornalistas incluindo o apresentador eram brancos. Brancos falando da morte de um negro e o racismo gerador dela.
As redes sociais não perdoaram e, no dia seguinte, o quadro foi como que refeito. Dessa vez, apenas profissionais negros. Jornalistas, estudiosos, comentaristas, todos negros, provando que, ao contrário do que alguns discursos racistas fazem crer, não se trata de não haver negros.
Assim foi também no Roda Viva que, como mostrou a pesquisa, historicamente apresentou falha no quesito pluralidade. Embora possa dar sinais de uma mudança, ela ainda é recente. Tudo é escolha.
Nesse sentido, Tainá Medeiros chama a atenção para a perversidade do racismo estrutural, que, segundo ela, torna a representatividade um produto que elevará lucros da empresa, “certamente comandada por pessoas brancas”, do que um compromisso efetivo com a reparação de desigualdades.
“Podemos fazer o mesmo paralelo com a grande mídia e a imprensa, que nos últimos anos têm tentado trazer cada vez mais este debate à tona, mas o faz de forma míope, sem olhar para si e reproduzindo tanto nos seus bastidores e fontes quanto nos rostos que representam esses veículos o mesmo padrão hegemônico de discursos e de perfis cuja fala é validada através de seus canais”, critica.
Machismo estrutural
O Coletivo Lójúkojú, como bem salientou Tainá Medeiros na entrevista, analisou as “maiorias minorizadas”, já que negros e mulheres, numericamente, são maioria. Mas na garantia dos direitos fundamentais, não.
As mulheres, embora tenham tido mais participação, ainda são minoria quando comparadas aos homens: em 246 programas, 21 mulheres foram convidadas como entrevistadas e 34 como entrevistadoras. Ou seja, no período, entre 80% e 90% dos participantes eram homens.
Segundo Tainá, a diferença gritante tem a ver com o “local social atribuído às mulheres pela nossa sociedade”. Ou seja, entre um homem e uma mulher de determinada área de atuação, fatalmente o homem será escolhido, ainda que a mulher seja até mais capacitada naquele determinado tema. “[É difícil para as mulheres] se tornarem referências em um determinado assunto, terem visibilidade e prestígio por seu conhecimento, história, conquistas, carreira profissional”, pontua, sem esquecer, contudo, de trazer outro dado mais gritante: o racismo também nessa análise de gênero. “Foram 55 mulheres contra 335 homens no período delimitado para o levantamento, apenas 7 delas eram negras e não houve sequer a presença de alguma entrevistada/debatedora mulher indígena”.
“Isso reforça novamente a expressão do racismo estrutural, que coloca mulheres não brancas em lugares de maior subalternidade, exclusão, violência”, afirma.
No final das contas, tudo é sobre a manutenção de privilégios. “Grande parte da nossa população não se questiona sobre os motivos da ausência desses grupos nos mais variados espaços, ou até mesmo sendo digna de ser ouvida, pensando no caso específico do perfil majoritário de participantes do programa Roda Viva. Neste ponto chegamos na avaliação de que a manutenção de privilégios, de prestígio, de um discurso hegemônico confortável, e de poder são os grandes fatores dos quais os que por eles são beneficiados, não querem abrir mão”, conclui Tainá.
O que diz a TV Cultura
Em atenção ao pedido da Solos, o jornalista Leão Serva, diretor de jornalismo da emissora, escreveu a seguinte nota: “O Roda Viva acaba de comemorar 34 anos no ar. Nossa gestão teve início em agosto de 2019, por isso, não tenho condições de responder sobre período anterior. A TV Cultura tem meta de mudar essas proporções e tem trabalhado para isso. O levantamento citado pode comprovar como são diferentes os números do período mais recente, quando o Roda Viva recebeu, incluindo entrevistados e entrevistadores: Nei Lopes, Silvio Almeida, Emicida, Fabiana Cozza, Helio de La Peña e Bruna Braga, comediantes; Thiago Amparo, jurista, FGV e colunista da Folha de S.Paulo; os jornalistas Tiago Muniz, Jovem Pan; Janaína Nunes, Record; Matheus Meirelles, CBN; Flávia Lima, da Folha de S.Paulo; Paulo Cruz, Gazeta do Povo; Semayat Oliveira, Nós Mulheres da Periferia; Flávio Costa, do UOL; Vera Rosa, de O Estado de S.Paulo; Renato Dornelles, jornalista; Basília Rodrigues, CBN; Lara Lajes, Agência Sharp; Ricardo Alexino, jornalista; Alê Santos, Ponte Jornalismo; Alberto Pereira Jr. Trance Trends; Yasmin Santos, Piaui; Fábio Cardoso, jornalista; e Adriana Ferreira Silva, Marie Claire; além de Joyce Ribeiro e Adriana Couto, apresentadoras de programas diários da grade jornalística da TV Cultura. Queremos seguir nessa tendência. É importante mencionar que o programa Roda Viva é um entre vários programas da emissora e o conjunto de todos eles expressa a atenção da emissora com a diversidade“.
O Coletivo entrou em contato com a reportagem da Solos e pediu para incluir nota rebatendo o posicionamento da TV Cultura. Segue: “Concordamos que a atual gestão não pode ser responsabilizada por ações anteriores à sua vigência, e por isso a Lójúkojú ressalta que seu intuito com o levantamento é propor um debate sobre o Racismo Estrutural de maneira ampla e propondo que a mídia defina novas metas e indicadores para atingir melhores objetivos. Para qualificar o debate foram solicitados os dados da atual gestão sobre os(as) entrevistados(as) durante o período que vai de 5 de agosto 2019 até 28 de setembro de 2020. Apresentamos abaixo as informações:
Cor/Raça: 89,6% brancos(as), 10,4% negros(as), 0% indígenas e 0% amarelos(as); Gênero: 81,03% homens, 19,97% mulheres; Pessoa com deficiência ou não: 98,3% pessoas sem deficiência 1,7% pessoas com deficiência. Apesar da atual gestão manifestar-se favoravelmente à mudança deste cenário, isoladamente os dados do período mencionado (a partir de agosto de 2019), não fogem à média geral apresentada pela pesquisa”.
Reportagem publicada originalmente no Projeto Solos.
[…] Fonte: Em 4 anos, apenas 8% de pessoas não brancas foram entrevistadas no Roda Viva – Ponte Jornalis… […]