Os dois jovens negros foram acusados de dois roubos na zona oeste da cidade de SP, mas uma das vítimas não os reconheceu e outra reconheceu apenas “as roupas”. Mesmo assim, juiz e promotora acharam prisão correta
“Infelizmente é o nosso trabalho ter que provar a nossa inocência”, desabafou o músico Ayo Shani, 32 anos, que desde a madrugada do último domingo (3/1) tenta conseguir a liberdade do professor de música e produtor musical João Igo Santos Silva, 37 anos, seu irmão, e do vizinho Felipe Patricio Lino Ferreira, 20 anos, que é lutador de MMA.
Igo e Felipe foram presos às 22h do último sábado (2/1), acusados de dois roubos, realizados uma hora antes, na rua Paes Leme, em Pinheiros, na zona oeste da cidade. As duas vítimas, porém, não os reconheceram os amigos, moradores do Campo Limpo, na zona sul da cidade, como os autores do crime.
Igo e Felipe contaram no 89º DP (Jardim Taboão) que estavam no Largo da Batata e comeram um yakissoba. De lá, segundo a advogada Irene Guimarães, uma das responsáveis pela defesa dos vizinhos, caminharam até o Terminal Pinheiros, passando pelas ruas Butantã, Amaro Cavalheiro e pegando o final da rua Paes Leme, para descer para o terminal. No terminal, eles sacaram 20 reais, perderam o ônibus, esperaram o próximo e foram para casa.
Leia também: Por que tantos negros são alvo de prisão injusta com base em reconhecimentos
Segundo a versão descrita no boletim de ocorrências, assinado pelo delegado Rafael Moreira Cantoni, dois homens roubaram uma mulher e um homem na rua Paes Leme, por volta das 21h, levando bolsa, celular, relógio e outros pertences das vítimas. Uma das vítimas encontrou um motorista por aplicativo e pediu ajuda, descreveu como seriam os homens que a roubaram e, segundo afirmou o motorista na delegacia, seguiram os dois suspeitos até o terminal. No reconhecimento, somente o motorista afirmou que os dois suspeitos eram Igo e Felipe.
A vitima masculina diz não reconhecer nenhum dos dois como os roubadores, enquanto a mulher diz que apenas reconheceu “sem sombra de dúvidas” as roupas que estariam usando. Além disso, o procedimento de reconhecimento foi feito com Igo e Felipe sozinhos, diferente do que recomenda o artigo 226 do Código de Processo Penal, que diz que “a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la”.
Irene e Ayo refizeram o caminho feito por Igo e Felipe atrás de imagens do circuito de segurança que pudessem corroborar para a versão dada por eles na delegacia. Conseguiram obter imagens de três estabelecimentos.
O terceiro é o mais importante: as imagens do “QUÈBEC – Bar e Restaurante”, localizado na esquina da rua Paes Leme com a rua Eugênio de Medeiros mostram que, por volta das 21h20, Igo e Felipe passam por lá, sem nenhum pertence roubado. Nas imagens é possível ver os dois caminhando na rua Paes Leme em direção ao terminal.
O motorista ligou, então, para a Polícia Militar, que informou aos policiais militares Valeska de Almeida Scaranello, 32 anos, e Wander Luiz Riehl, 46 anos, ambos da 1ª Companhia do 23º Batalhão da capital, sobre o ocorrido.
Os PMs foram informados que os suspeitos pegaram um ônibus da linha 809P-10, que saia do Terminal Pinheiros com destino até o Terminal Campo Limpo. Por volta das 22h, na avenida Francisco Morato, altura do número 3900, já na Vila Sônia, os PMs interceptaram o ônibus e prenderam Igo e Felipe pelos dois roubos.
Irene Guimarães, advogada de Igo e Felipe, garante que os amigos não são os autores do crime. “Eles não realizaram o roubo, sequer estavam no horário do roubo nessa altura da rua, estavam perto do Largo da Batata. Nas imagens, vemos eles andando, tranquilamente, sem nada na mão”.
“Inclusive, nas imagens, não vemos nenhum carro seguindo eles. A testemunha, o motorista do Uber, disse que seguiu eles no trajeto, e em nenhum dos vídeos aparece um carro acompanhando eles”, completa.
Leia também: Reconhecidos pela foto do RG, jovens negros são absolvidos após reportagem da Ponte
Ayo Shani, irmão de Igo, conta que a família ficou sabendo da prisão, realizada às 22h do sábado, somente às 5h do domingo. “E com frieza. A gente não entendeu nada, porque o Igo estava contente, alegre, cheio de planos, não fazia sentido ele cometer esse ato. Aí chegamos na DP e vimos que tava tudo mal explicado”.
A aposentada Maria Celeste dos Santos, 66 anos, mãe de Igo, conta que está abalada com a prisão do filho. “Eu fiquei sem raciocinar. Eu até pensei que a ligação era sobre o nosso cachorro, que estava internado. Estou em choque até agora”.
“Como uma pessoa pode ser acusada de assalto sem ter nada do que foi roubado? Sem ter arma? A polícia vistoriou o coletivo e as proximidades e não achou nada. Como pode ser um flagrante só pela palavra de uma testemunha que não era a vítima? É inadmissível, não dá para aceitar”, argumenta a matriarca.
Leia também: Juiz Nicolitt: ‘A pele negra é a pele do crime, como diz o Baco Exu do Blues’
Segundo a família, Igo é “esse cara que todo mundo gosta”. “Por isso essa grande mobilização em defesa dele. Ele é um cara carismático, um cara que fortalece, que vai te ajudar independentemente de qualquer coisa. Ele sempre tá de prontidão para ajudar as pessoas. A cada momento que a gente tá aqui é mais um momento que eles estão dentro do sistema carcerário”, conta Shani.
O irmão está falando dos depoimentos enviados por diversos movimentos que Igo faz parte e que se manifestaram contra sua prisão. No pedido de habeas corpus, enviados pelos advogados de defesa, algumas dessas notas foram anexadas: Central Sindical e Popular, Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Federal no Estado de São Paulo, Sindicato dos Petroleiros do Litoral Paulista e Sindicato dos Petroleiros do Estado do Rio de Janeiro.
Os movimentos e entidades se manifestaram a favor de Igo, afirmando que ele é percussionista e arte-educador, ativista da causa indígena e das lutas sociais na periferia por políticas públicas para a população vulnerável e participou de eventos com eles no último ano. No pedido também foram anexados diversos diplomas e certificados de Felipe, além de uma nota do seu grupo de luta, o Aras Fight.
Na delegacia, Igo contou que foi preso em 2010 por roubo, mas saiu em condicional em 2012 e nunca mais se envolveu com crimes. Apesar da negativa do reconhecimento das vítimas e nenhum pertence ter sido encontrado com Igo e Felipe, o delegado encerrou o inquérito policial no dia seguinte.
A promotora Vanessa Therezinha Sousa de Almeida, do Ministério Público de São Paulo, destacou os antecedentes de Igo e Felipe para solicitar a prisão ao Judiciário, que foi acatada pelo juiz Paulo Rogerio Santos Pinheiro, do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Além disso, a promotora disse que “o flagrante se encontra formalmente em ordem”, ignorando que as vítimas dos roubos não conseguiram reconhecer os suspeitos. O juiz Pinheiro, por sua vez, afirmou nos autos que “em juízo de cognição sumária, verifica-se a existência de indícios suficientes de autoria e materialidade delitiva”. Igo e Felipe estão detidos no Centro de Detenção Provisória Belém I, na zona leste da cidade.
No pedido de habeas corpus, que ainda não foi julgado pela Justiça, o advogado Vanderlei Lima Silva, principal responsável pela defesa de Igo e Felipe, afirmou que “os pacientes preenchem todos os requisitos para responder ao processo em liberdade, tendo em vista que ambos possuem ocupação lícita, residência fixa, com laços firmes no distrito da
culpa”.
Leia também: Induzidas pela polícia e aceitas pela justiça, falsas memórias condenam inocentes
A pedido da Ponte, o advogado criminalista Marcelo Feller, que atua desde 2007 na Justiça criminal e pesquisa a forma como os reconhecimentos são conduzidos, analisou o processo de prisão de Igo e Felipe.
Para Feller, a falta de reconhecimento é importante para a defesa, mas o que mais chama a atenção no caso é a falta de presunção de inocência, ou seja, inocente até que se prove o contrário. “É uma prisão antecipada, mais do que criticar os reconhecimentos. Eu não vejo sentido nenhum para manter eles presos, em razão da fragilidade da prova”, aponta.
Para o especialista, é provável que o motorista de aplicativos, que reconheceu os jovens, não tenha errado, mas, que a vítima, sim, ao passar a descrição dos suspeitos. “Se ela não perdeu os rapazes de vista, avisou o motorista que eram eles e o motorista não perdeu eles de vista, eles tinham que estar com os pertences do roubo”.
“A fragilidade do caso e a dinâmica que tudo aconteceu, para mim, está muito nebulosa. Não tem porque deixar esses rapazes presos. Me colocando na posição do juiz, eu ia querer ouvir as testemunhas para saber porque esses rapazes foram apontados, mas eu não manteria preso”, argumenta Feller.
Outro lado
O Tribunal de Justiça de São Paulo informou à Ponte que “não se posiciona sobre processos em andamento”. O Ministério Público disse que “o caso ainda não foi distribuído para o MP”. Em nota a Secretaria de Segurança Pública, por sua vez, afirma que “a Polícia Civil esclarece que a prisão em flagrante foi fundamentada em depoimentos de três testemunhas, duas vítimas e em um auto de reconhecimento pessoal. Os suspeitos foram encaminhados à audiência de custódia, onde a Justiça determinou a prisão preventiva dos dois”.
ATULIZAÇÃO: Esta reportgem foi atualizada às 14h39 do dia 8/1/2021 para incluir posicionamento da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo
[…] Com informações da PonteJornalismo […]