Segundo relatório da Pastoral Carcerária, Estado instrumentalizou a crise sanitária para exterminar a população encarcerada; São Paulo lidera lista de casos
Aumentou o número de denúncias de tortura em presídios brasileiros durante a pandemia da Covid-19, informa um relatório divulgado nesta sexta-feira (22) pela Pastoral Carcerária (entidade da Igreja Católica de evangelização e defesa dos direitos humanos dos detentos).
O estudo aborda 90 denúncias de tortura e violações de direitos em unidades prisionais de todo o país, recebidas entre 15 de março e 31 de outubro de 2020. Em 2019, no mesmo período, foram 53 casos. Ou seja, um aumento de 70%.
Além disso, quantidade de denúncias analisadas no relatório não reflete a quantidade de pessoas torturadas, explica o advogado da Pastoral Carcerária, Lucas Gonçalves. “As informações geralmente chegam apontando as unidades prisionais onde as violências estão ocorrendo”.
Segundo Lucas, isso dificulta quantificar o número real de pessoas torturadas. “Por exemplo, se uma denúncia fala da ocorrência de tortura em um presídio no interior do Mato Groso que tem 1.200 presos não conseguimos dimensionar quantos e quais são as vítimas reais.”
O que o levantamento faz é jogar luz sobre esses relatos de denúncias para que órgãos de justiça apurem e investiguem. “Dados como esses podem ser usados para cobrar Poder Judiciário, Ministério Público, Defensorias Públicas”, observa Gonçalves.
Novo rosto da tortura
No meio de uma grave crise sanitária a proteção deveria ser redobrada, mas nos presídios brasileiros a lógica adotada foi a inversa. A restrição de saídas e de atividades externas estão entre os principais motivos para o aumento do número de casos de tortura de presos. Cerca de 67 dos 90 casos (74,44%) analisados pela pastoral foram de violação ao direito à saúde nos presídios.
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Mas o documento mostra ainda que as causas vão para além da crise sanitária. “A política negacionista destes últimos anos e a necropolítica atual, com sua desconstrução, destruição de todo e qualquer direito, constituem e concretizam o novo rosto da tortura”, analisa o padre Gianfranco Graziola em texto que abre o relatório “A Pandemia da Tortura no Cárcere.”
Para o advogado Lucas Gonçalves, é possível até fazer uma relação dialética entre a pandemia e o atual cenário político. “O estado instrumentalizou um vírus pandêmico para exterminar a população que está presa”. Ele ressalta que é preciso responsabilizar o governo federal, mas também estaduais e municipais.
São Paulo lidera tortura em prisões
O relatório traz ainda informações sobre a distribuição regional de tortura em presídios. O estado de São Paulo lidera a lista com 18 casos, seguido por Minas Gerais com 12 e Goiás, 9.
O fato de São Paulo ser o estado com maior número de pessoas presas certamente tem relação com o maior número de denúncias de torturas, mas, segundo Gonçalves, há também razões políticas para isso.
Faz parte da política do estado de São Paulo perpetuar a violência nos presídios, afirma o advogado. Ele cita como exemplo o GIR (Grupo de Intervenção Rápida), responsável pelo que ele chama de “laboratórios de tortura” dentro de presídios.
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“É uma polícia especializada na atuação dentro de unidades prisionais, eles permanecem por meses e até anos, torturando presos e doutrinando agentes penitenciarios a adotarem táticas de tortura”.
Gonçalves reconhece que há polícias similares em outros estados, mas afirma que São Paulo é pioneiro no modelo. “Existe há mais de 15 anos.”
Desmanche de políticas
Um ponto crucial abordado pelo relatório é o desmantelamento de políticas de prevenção e combate à tortura no atual governo Bolsonaro. O Brasil ratificou um tratado internacional em 2007, um protocolo facultativo da convenção da ONU contra a tortura, que institui para o Estado obrigação de criar órgãos de monitoramento e fiscalização das unidades prisionais.
O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, criado por lei federal em 2013, quase foi extinto por um decreto assinado por Bolsonaro seis meses após ele tomar posse, em junho de 2019.
“O que ele fez foi basicamente tirar os recursos para o funcionamento desses órgãos e desmantelar a estrutura e exonerar peritos”, explica a assessora jurídica sênior-representante da Associação para a Prevenção da Tortura no Brasil, Sylvia Dias, que assina um dos artigos do relatório.
Segundo ela, o órgão ainda existe graças uma liminar concedida pela Justiça Federal do Rio de Janeiro, em vigor até sentença final, que suspendeu os efeitos do decreto presidencial.
Para a assessora jurídica, é preocupante que uma das primeiras medidas tomadas pelo do governo federal tenha sido desmantelar um órgão que tem a função de prevenir e combater a tortura. “Ainda mais em um país como nosso, que sofre com presídios em condições degradantes”, avalia Sylvia.
A assessora destaca em seu artigo a falta de acesso a informações e entraves de comunicação que os órgãos de controle estão enfrentando na pandemia. Para ela a pandemia não trouxe nenhuma novidade, e sim escancarou como funciona o sistema prisional no país.
“Como falar de distanciamento social, uso de máscaras, limpeza das mãos e medidas de higiene em presídios superlotados?”, questiona a assessora jurídica. Para ela, é impossível falar em garantia de direitos fundamentais ou prevenção do alastramento ou contágio de qualquer infecção no atual padrão das prisões no país.
“A identidade de genero é apagada na prisão”
Presente no lançamento do estudo da Pastoral Carcerária, o advogado da ONG Somos, Caio Cesar Klein, coautor de um artigo do relatório falou sobre o projeto Passagens. A iniciativa percorreu desde 2018 treze instituições carcerárias em todo o país para verificar condições de pessoas LGBTI+ em prisões e elaborar um primeiro mapeamento nacional sobre encarceramento dessa população.
“É uma população que quando adentrava no sistema de justiça ficava completamente invisibilizada em suas demandas particulares”, afirma Klein. A ONG falou com mais de 500 pessoas LGBTs aprisionadas e com trabalhadores do sistema prisional.
Segundo o advogado, o que o levantamento mostrou é que muitas pessoas LGBTI+ são encarceradas em celas destinadas a criminosos sexuais, o que aumenta a vulnerabilidade à violência, especialmente no caso de mulheres trans e travestis.
A identidade de gênero é apagada quando ingressam nas prisões, sublinha Klein. “É comum que tenham seus cabelos cortados, que sejam impedidas de usar o nome com o qual se identificam e de utilizar roupas femininas.”
Outro aspecto que o advogado destacou sobre o encarceramento da população LGBTI+ durante a pandemia, é o aprofundamento do abandono familiar. “Elas vivem essa situação muitas vezes já fora do cárcere, as vezes muito jovens são expulsas de casa.”
Especificidades nas torturas também se aplicam no caso de outras populações mais vulneráveis, como mulheres e indígenas,afirma o advogado da Pastoral Carcerária, Lucas Gonçalves.
“A tortura começa quando ela perde o direito de ter sua família perto dela, que é impedida de ter a visita da filha, gestantes que são obrigadas a dar a luz dentro do sistema prisional”. Segundo ele povos indígenas também são violentados ao não terem respeitados seu direitos culturais.
“O cárcere em sí é uma tortura”
“A tortura está presente no cárcere desde que existe o cárcere”, disse à Ponte a coordenadora da Pastoral Carcerária, irmã Petra Pfaller, que há 25 anos conhece a realidade de presídios brasileiros. “O cárcere em si é uma tortura”.
“Em cada visita encontro a tortura nos rostos de pessoas presas, em homens e mulheres, percebo a perversidade do sistema”. Segundo ela tudo isso piorou com a pandemia. “A tortura aumentou descaradamente”
“Falar de tortura em 2021 é algo de outro mundo”, afirmou o padre Gianfranco Graziola, um dos responsáveis pelo estudo da Pastoral Carcerária, durante lançamento virtual do relatório na tarde desta sexta-feira (22/1).
O advogado Lucas Gonçalvez, responsável pela analise de dados do estudo, e que também participou do evento, comentou que apenas um dos casos denunciados no relatório se tornou um inquérito policial, mas que foi arquivado.
Segundo ele, o cenario retratado mostra uma carnificina produzida pelo estado. “Enquanto estamos aqui conversando, pessoas continuam sendo torturadas.”
Outro lado
A reportagem da Ponte procurou o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), a Secretaria de Administração Penitenciária do estado de São Paulo (SAP-SP), a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais e a Diretoria Geral de Administração Penitenciária de Goiás para comentar os dados do relatório.
A Secretaria de Administração Penitenciária do estado de São Paulo enviou a seguinte nota:
A Secretaria da Administração Penitenciária manifesta indignação com a divulgação de um relatório em que há mera listagem de denúncias, sem direito a contraditório, ampla defesa e sem apuração final dos casos. A própria Secretaria disponibiliza canais que acolhem e fazem a devida apuração de denúncias, como a Ouvidoria da Pasta e a Corregedoria Administrativa do Sistema Penitenciário. O contato é publico e está publicado em nosso site, que dispõe de formulário e e-mail para recebê-las: http://www.sap.sp.gov.br/form-ouvidoria.html e http://www.sap.sp.gov.br/corregedoria.html
Salientamos ainda que o Grupo de Intervenção Rápida (GIR) somente atua em casos específicos nas unidades prisionais do Estado, sendo eles: revistas gerais que necessitem de apoio ou situação de motim e rebelião. Todos os membros do GIR usam apenas equipamento não-letal durante as operações e para ingressar na equipe passam por treinamento especializado, com técnicas voltadas para o controle do indivíduo preservando a sua integridade física. As denúncias, feitas de forma anônima na maioria dos casos como o próprio relatório aponta, podem dar margem a ação de criminosos que buscam com isso tolher a ação do Grupo, um dos principais instrumentos para manter a segurança e disciplina nos presídios do Estado de São Paulo
A Policia Penal do Estado de Goiás enviou a seguinte nota:
A propósito de informações solicitadas pelo Portal Ponte Jornalismo, a Corregedoria Setorial da Polícia Penal do Estado de Goiás informa o que se segue:
-A instituição aguarda que a Pastoral Carcerária Nacional faça o envio oficial do relatório ao órgão para que seja feita a análise do conteúdo, identificação dos casos relatados no referido documento para a verificação se tratam de ocorrências já em apuração por essa instituição
Goiânia, 22 de janeiro de 2021.
*Polícia Penal do Estado de Goiás*
O Departamento Penitenciário Nacional (Depen) respondeu que “não teve conhecimento sobre o conteúdo do relatório, porque ainda não foi encaminhado pela Pastoral Carcerária”. Entretanto, vale destacar que desde o lançamento do relatório na última sexta-feira (22/1), o documento é público e acessível pelo site da Pastoral Carcerária. Veja a nota na íntegra:
O Departamento Penitenciário Nacional não teve conhecimento sobre o conteúdo do citado relatório, uma vez que ainda não foi encaminhado pela Pastoral Carcerária.
Contudo, desde já informa-se que o Depen está à disposição para, juntamente aos demais órgãos de fiscalização e controle da atividade de custódia no sistema prisional, atuar e tomar as providências cabíveis tão logo as denúncias sejam apresentadas.
Durante o mês de dezembro de 2020, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) entregou o terceiro lote de materiais de proteção individual adquiridos para combate à Covid-19. Foram distribuídos para todo o sistema penitenciário brasileiro mais 10 mil máscaras cirúrgicas descartáveis, mais de 1.2 milhão de gorros descartáveis, 2155 oxímetros. Durante esse período, o Departamento também doou 130.500 testes rápidos para as unidades federativas, além de ter desenvolvido ações conjuntas com outros órgãos como o Ministério da Saúde e instituições como a Fundação Oswaldo Cruz buscando dar apoio ao sistema penitenciário brasileiro no combate à doença.
Com o valor de R$ 49 milhões, o Depen adquiriu também para doação de materiais e insumos mais de 6.7 milhões de máscaras cirúrgicas, mais de 56 mil máscaras N95, 15.378 luvas descartáveis, mais de 786 mil aventais, 264.550 toucas, 77.917 litros de álcool 70%, 7.031 óculos, 2.642 termômetros e quase 31 mil litros de sabonete líquido, além dos testes rápidos de detecção da Covid-19. Todos já foram entregues às unidades federativas.
As medidas adotadas pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, por meio do Departamento, bem como o esforço das Secretarias estaduais de administração penitenciária possibilitam o controle da expansão dos índices dentro do sistema, por isso, o número de casos, comparados com a população geral, são consideravelmente menores. A taxa de letalidade em razão da Covid no sistema prisional é de 0,33%, em relação à população geral que é 2,76%. Tais dados foram obtidos a partir de informações enviadas pelos estados até o dia 27 novembro.
Desde o início da pandemia da Covid-19, o Depen realizou ações conjuntas com instituições e órgãos públicos para produção de cartilhas informativas, compra de equipamentos de proteção individual e realização de reuniões com representantes das unidades federativas responsáveis pela saúde no sistema prisional. Além da distribuição de equipamentos, as atividades permitiram a difusão das orientações sobre os cuidados sanitários desejáveis.
Em agosto, a telemedicina foi iniciada no Sistema Penitenciário Federal, cuja responsabilidade direta é do Depen, os privados de liberdade podem consultar nas especialidades de cardiologia, ortopedia, pneumologia, urologia, dermatologia e psiquiatria, ampliando a cobertura de atendimentos médicos e agregando qualidade, eficiência e agilidade para o melhor tratamento e promoção à saúde no âmbito das penitenciárias federais.
Clique aqui e acesse o painel Medidas de Combate a Covid-19 no sistema penitenciário – https://www.gov.br/depen/pt-br/assuntos/acoes-contra-pandemia/painel-de-monitoramento-dos-sistemas-prisionais
Acesse aqui as demais ações no combate a Covid-19 – https://www.gov.br/depen/pt-br/assuntos/acoes-contra-pandemia
A Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais não respondeu.
ATUALIZAÇÃO: Este texto foi modificado às 14h do dia 26/1/2021 para incluir resposta do Departamento Penitenciário Nacional (Depen)
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