Assassinato de professor por PMs revolta os Tembé-Tenetehara

    Isac Tembé, de 24 anos, foi morto na sexta-feira (12/2) na Terra Indígena Alto Rio Guamá, no nordeste do Pará. Associação indígena diz que PMs atuam como milícia para fazendeiros da região

    Isac Tembé, de 24 anos, recebeu um tiro à queima-roupa em ação de policiais militares dentro da Terra Indigena Alto Rio Guamá | Foto: Reprodução / Amazônia Real

    Policiais militares atuando como milícia privada para fazendeiros que invadem terras indígenas. A grave denúncia foi feita publicamente pela  Associação Indígena Tembé das Aldeias Tawari e Zawaruhu dois dias depois que o jovem Isac Tembé, de 24 anos, recebeu um tiro fatal da PM, na noite do último dia 12. A súbita retirada do corpo de Isac, a falta de perícia na cena do crime e a forma como se deu a entrada dele no hospital, fatos confirmados pela Secretaria de Segurança Pública (Segup) do Pará, revoltam o povo Tembé-Tenetehara, que vive na TI Alto Rio Guamá, localizada no nordeste do Pará.

    “Perguntamos: por que esses agentes da segurança pública servem de milícia privada para fazendeiros que invadem terra indígenas?”, questionam os indígenas em nota emitida no domingo.

    Por telefone, em voz forte e emocionada, a presidente da Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa), Puir Tembé alerta que “nunca houve esse tipo de fato com a polícia dentro do nosso território, que já vive outros conflitos. Está sendo um choque por isso e também porque se trata de um jovem que trabalha conosco pela cultura, pela educação, pelas políticas sociais. Vamos lutar para que não fique impune”.

    O povo Tembé-Tenetehara voltou a questionar o Estado na segunda-feira (15/2): “Isac Tembé caçava dentro da terra indígena e foi executado. Por que a Polícia Militar entrou na Terra Indígena, território federal, para executar nosso jovem?”.

    Isac Tembé, que levou um tiro no peito, vivia na Aldeia Jacaré, era professor de História e deixou a mulher grávida de cinco meses, três filhos adotivos e uma casa em construção. O corpo do guerreiro foi sepultado às 10 horas de domingo (14/2), dentro dos costumes tradicionais dos Tembé. “Permaneceremos em luto e cumprindo com os rituais de passagem”, diz a nova nota.

    Também por meio de nota, a Segup confirmou a morte do indígena durante a operação dos policiais militares. “No local foi encontrado um gado desossado e um revólver calibre 38 ao lado de uma pessoa que havia sido alvejada. A equipe conduziu o homem até uma unidade de saúde, que não resistiu ao ferimento e evoluiu a óbito. Se tratava do indígena Isac Tembé. A Polícia Civil investiga o caso”, descreve a nota.

    De acordo com a secretaria, “os policiais militares foram acionados para averiguar um suposto furto de gado em uma fazenda no município de Capitão Poço, localizado no nordeste do Estado, na noite desta sexta-feira (12/2), em uma área escura e de difícil acesso”. E a nota acrescenta que os policiais, “ao chegar ao local, foram surpreendidos por disparos de arma de fogo, sendo necessário agir em legítima defesa. O grupo fugiu da área”. 

    Procurada pela reportagem da Amazônia Real, a Segup se restringiu a emitir uma nota em que dá conta de que “policiais da Delegacia de Polícia Civil do município de Capitão Poço estiveram no local do fato para preservar a área e coletar vestígios que auxiliarão na investigação”. Acrescentou ainda “que os armamentos envolvidos na ação, dos militares e o encontrado no local, foram apreendidos e encaminhados para perícia. A Delegacia de Crimes Funcionais (Decrif) dará continuidade às diligências. Os policiais militares que participaram do evento já foram ouvidos pela Polícia Civil e Corregedoria da PM instaurou um Inquérito Policial Militar (IPM) para apurar as circunstâncias do fato”.

    Advogado aponta contradição da Segup

    Isac Tembé tinha 24 anos e deixou a esposa grávida e filhos pequenos | Foto: Reprodução/ Amazônia Real

    A Associação Indígena Tembé das Aldeias Tawari e Zawaruhu recebeu, na segunda-feira (15/2), o coordenador geral da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), o advogado Marco Apolo Santana Leão. A entidade representará juridicamente a família de Isac Tembé e o povo Tembé.

    Por telefone, Marco Apolo conta que há “um clima de revolta por parte dos indígenas e repúdio à alegação da polícia quanto à possível responsabilidade em abate de gado e uso de armas de fogo”. De acordo com o advogado, o uso da espingarda é comum durante as atividades de caça. “Mas é comum caçar assim como pescar, especialmente em situação de penúria, durante a pandemia. É preciso que a polícia esclareça o descompasso entre o horário do baleamento, a retirada da vítima do local do crime, sem perícia, e a entrada no hospital. Por que as armas não foram apreendidas e as pessoas não foram ouvidas?”.

    Marco Apolo acompanha, na aldeia São Pedro, as novas denúncias que os indígenas farão durante a diligência realizada pela Comissão de Direitos Humanos e Defesa do Consumidor da Assembleia Legislativa do Estado do Pará (CDHDC-Alepa). “Há um passivo grande e pouca resposta do Estado. A polícia aborda de forma discriminatória os indígenas que se deslocam da aldeia para a [área urbana da] cidade, entre elas Capitão Poço, Santa Luzia e Garrafão de Norte. Eles querem a presença e o acompanhamento do Ministério Público Federal (MPF)”, antecipa Marco Apolo.

    Na manhã desta terça-feira (16/2), integrantes da Comissão de Direitos Humanos e Defesa do Consumidor da Assembleia Legislativa do Estado do Pará (CDHDC-Alepa) se deslocaram até a aldeia São Pedro, distante cerca de 20 quilômetros do centro de Capitão Poço.

    O presidente da comissão, deputado Carlos Bordalo (PT), pretende se reunir com lideranças indígenas, movimentos sociais e instituições públicas, contando com a presença da Ouvidora do Sistema Estadual de Segurança Pública e Defesa Social (Sieds), a advogada Maria Cristina Fonseca de Carvalho, e assessores da deputada Marinor Brito (PSOL). Em nota, a comissão comunica que o “objetivo da diligência é apurar informações e investigar o caso em torno do assassinato, a fim de resguardar os direitos do povo Tembé, dos familiares de Isac Tembé, assim como devido cumprimento dos preceitos legais da Justiça, no que tange à Constituição brasileira e a legislação indigenista na garantia de direitos dessas populações”.

    Ministério Público é requisitado

    Os Tembé-Tenetehara reivindicam a presença do Ministério Público Federal (MPF) na aldeia e o acompanhamento do caso. O MPF afirma ter enviado ofícios, no dia seguinte ao crime, à Polícia Militar, à Polícia Federal, à Polícia Civil e à Fundação Nacional do Índio (Funai). O órgão requisita informações, no prazo de três dias, sobre as circunstâncias do assassinato de Isac Tembé, o andamento dos procedimentos investigatórios instaurados, se houve a realização de perícia no local em que ocorreu o fato e se foi realizada a oitiva das pessoas presentes no local dos fatos.

    O assassinato de Isac Tembé e as denúncias do povo Tembé-Tenetehara ilustram dramas descritos no relatório “Violência contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2019”, publicado em setembro de 2020, pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Foram registrados 277 casos de violência praticada contra indígenas, mais que o dobro do total registrado em 2018, que foi de 110. São casos de abuso de poder (13); ameaça de morte (33); ameaças várias (34); assassinatos (113); homicídio culposo (20); lesões corporais dolosas (13); racismo e discriminação étnico cultural (16); tentativa de assassinato (25); e violência sexual (10).

    De acordo com o relatório do Cimi, as violências praticadas contra os indígenas e suas comunidades estão associadas à disputa pela terra. Na categoria “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio”, a organização identificou um aumento de casos, saltando de 109 casos registrados em 2018 para 256 casos no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro na Presidência.

    As Terras Indígenas, como a do povo Tembé-Tenetehara, representam o reconhecimento de um direito originário dos indígenas e são as áreas que mais protegem as matas e os seus ecossistemas. A Terra Indígena Alto Rio Guamá foi homologada em 1993 e nela vivem 1.727 indígenas dos povos Awa Guajá, Ka´apor e Tembé.

    Publicado originalmente na Amazônia Real

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