“Como podemos falar sobre africanidade se não sabemos nada sobre a história dos países africanos?”, pergunta jornalista Savana Azolini, que passou 23 dias em Angola
O tráfico de escravos matou mais de cinco milhões de negros africanos durante a travessia do oceano Atlântico. Os que sobreviveram à travessia oceânica enfrentaram no Brasil todas as mazelas da escravidão.
As conexões entre Brasil e África se revelaram para a jornalista Savana Azolini, 28 anos, durante uma viagem de 23 dias por Angola. Lá ela conheceu o cotidiano da família do Silvio, estudante angolano que veio estudar no Brasil e ficou amigo da Savana.
Dos seus 28 anos de idade, Savana viveu 26 anos no Parque Edu Chaves, na periferia da zona Norte de São Paulo, e conheceu de perto a realidade das quebradas da capital e o abismo social instalado há séculos no Brasil. Com pós-graduação em Gestão Cultural e grande experiência em pesquisas sobre o comportamento do consumidor e tendências do mercado, ela tem um olhar sensível e extremamente apurado sobre a realidade africana.
Economia, política, história, religião, cultura e preconceito foram alguns dos temas abordados no bate-papo com a Ponte Jornalismo sobre o encontro de Savana com a ancestralidade.
Ponte – A escolha do seu nome Savana tem alguma relação com a vegetação africana que tem o mesmo nome?
Savana Azolini – Bom, por parte da família do meu pai é de italianos. Do sul da Itália, como gostavam de frisar. É importante esse recorte pois quando se trata dos imigrantes europeus nós sabemos exatamente de qual região viemos. A família da minha mãe é composta por índios e negros e sinceramente não sabemos de onde viemos. Ter a umbanda como religião desde que eu nasci e ser criada com esses preceitos fez com que eu resgatasse todos os dias muito da minha essência. Minha mãe resolveu dar esse nome como forma de resistência, já que ela observou que a vegetação savana é extremamente forte. A natureza é o ponto central da umbanda e ver um baobá de perto também me emocionou. Ter esse nome, além de ser uma honra, me fez me questionar desde sempre de onde eu vim e quem eu sou.
Savana – Quando estava no terceiro semestre da faculdade, tive que trancar o curso durante quase dois anos por falta de grana. Quando voltei na nova sala de aula conheci um aluno, o Silvio, que hoje é mais do que meu melhor amigo e sim meu irmão. Ele é angolano e veio para o Brasil para estudar. Muita coincidência, já que tenho esse nome (risos) e fui logo fazer amizade com uma pessoa de Angola. Depois de se formar em jornalismo e fazer pós-graduação, no ano passado ele voltou para Luanda.
Savana – Fiquei 23 dias em Luanda (capital de Angola). Fiquei hospedada na casa do meu amigo que fica na região central de Cacuaco [município da Província de Luanda em Angola, com cerca de 26 mil habitantes]. A maioria dos passeios eu fiz de carro e por esta razão passei por muitos bairros, mas os lugares mais especiais que conheci foram a Ilha de Luanda, Bengo [província do norte de Angola, com capital na cidade de Caxito] e principalmente a Ilha do Mussulo (costa sul de Luanda).
Você chegou a visitar alguma cidade localizada na savana mesmo? Qual a sua impressão?
Savana – Quando estávamos indo para Bengo meu amigo apontou do carro para a savana. É estranho falar essa palavra em terceira pessoa (risos). Sou eu e ao mesmo tempo ela estava lá. Ver o tamanho da paisagem e como essa vegetação permeou a minha vida por tanto tempo, mesmo sem nunca ter sido apresentada, é emocionante, mas ao mesmo tempo se abre uma realidade do tipo “esqueça tudo o que você achava que conhecia”.
Savana – Foi uma emoção muito grande poder estar na África e definitivamente é um local com uma energia muito forte, principalmente para quem é do candomblé e umbanda como eu sou.
Qual a visão que você teve da divisão social na África? Há muita desigualdade? As pessoas discutem isso?
Savana – Assim como no Brasil a desigualdade social é um dos principais problemas. Eu nasci e fui criada na periferia da zona norte de São Paulo e já vi muita dificuldade. Mas sei dos meus privilégios em morar nesta cidade e o quanto no restante do Brasil a vida é ainda mais dura. Mas, mesmo sabendo disso, percebi que a pobreza na Angola é mais latente e visível, se é possível dizer dessa forma. Os meios de transporte são escassos e o trânsito é uma loucura, mais do que em São Paulo. Existe a dificuldade de se ter água todos os dias e energia elétrica todos os dias, mesmo em locais urbanizados. Ao mesmo tempo, quando passei em Luanda Sul, me senti na Giovanni Gronchi [Morumbi,bairro rico na zona sul da cidade de São Paulo), com shoppings e condomínios de luxo. Há essa discussão entre os angolanos, mas pouco se fala sobre isso nos meios de comunicação, já que os veículos são estatais. Existe apenas um jornal, Jornal de Angola, e canais de TV que são dos filhos do presidente, assim como empresas de telefonia e até a petrolífera Sonangol.
Savana – Quando entrei dentro do avião para ir para Luanda, me deparei com MUITOS brasileiros. Um deles, de Mato Grosso do Sul, puxou assunto comigo e disse que trabalhava na Odebrecht, assim como a maioria dos passageiros. Passeando por Luanda Sul e Talatona, regiões ricas de Luanda, vi muitos prédios tanto da Odebrecht como da Camargo Corrêa. Na minha opinião a independência de Portugal deu lugar a dependência econômica de Angola à exportação de petróleo de diamantes, que continua causando conflitos internos e devastações ambientais.
Qual a impressão que você teve das pessoas e das tradições na África? Discutem muita política na África?
Savana – Assim como no caso das discussões sobre desigualdade social, o angolano discute muito sobre política, pelo menos entre as pessoas que tive contato. É um país que se tornou independente em 1975 e que somente em 2002 assinou o tratado de paz, depois de 27 anos de guerra civil. Os portugueses deixaram uma herança muito forte de exploração, o que ocasionou diversos conflitos internos. O debate sobre novos rumos do país e sobre os próprios direitos acontece, mas é bem cerceado nos meios de comunicação.
Savana – Não cheguei a ver nenhum tipo de manifestação de discriminação racial. Conversando com as pessoas de lá soube que existe em algumas situações a discussão do tom de pele, entre negros de tom de pele mais clara e negros de tom de pele mais escura. Ser chamado de mulato é péssimo no Brasil e também em Angola. Comigo houve um certo estranhamento e curiosidade mais pelas minhas tatuagens, que não é algo habitual em Angola, do que no tom mais claro da minha pele.
Você ouviu muita música africana na viagem? Quais os sons que você pode indicar pra gente?
Savana – Fiz questão de conversar com meu amigo sobre música, que é um assunto que me interessa demais, e colocar em canais que tocassem os sucessos. Muitos programas de TV têm apresentações musicais dos artistas que estão bombando. Enquanto estive lá até rolou uma premiação chamada “Top dos mais queridos” que premiam os principais cantores de Angola. Adorei poder conhecer o Kizomba, ritmo que lembra um pouquinho o zouk.
Qual o legado que essa viagem deixou em você? O que você aprendeu visitando a África?
Savana – A primeira coisa que se faz necessário pensar é o erro em achar que África é um grande safári de exotismo. Não é uma grande selva e as pessoas não vivem em tribos folclóricas. Em Luanda, mesmo com o cerceamento da ditadura as pessoas estão produzindo conteúdo, discutem suas relações políticas e sociais e mais do que isso: conhecem MUITO sobre o Brasil. Conhecem nossa história e também quem é a diva pop do momento. Isso me fez questionar o quanto e como se discute sobre África aqui no Brasil na teoria. Mas, na primeira oportunidade, os mesmos que tem o privilégio em poder discutir escolhem a Europa para se divertir e poder bater palmas para a civilização de primeiro mundo. No futuro, também desejo conhecer a Europa, mas com o olhar atento de quem foi colonizado e não como indivíduo que quer fazer parte da cultura europeia e que não questiona que aquela riqueza foi oriunda de exploração. Quero continuar trilhando esse caminho de estudo e autoconhecimento para desmitificar o olhar quase mágico que se tem da África. Entre os meus questionamentos após a viagem, alguns ficaram em evidência: como podemos falar sobre africanidade se não sabemos nada sobre a história dos países africanos e pouco acompanhamos as discussões contemporâneas sobre política, economia e comportamento que rolam por lá? É certo que a falta de conhecimento sobre essa história se dá por conta da falta de investimento do governo em educação e principalmente pelo racismo estrutural que nos tira o direito de não conhecer essa história. Por outro lado, se faz necessário um melhor entendimento de quem tem o privilégio de se conseguir estudar sobre o assunto.
Na semana passada fui em show da banda Álafia, no Sesc Ipiranga, e a música “Mulher da Costa” me bateu muito forte, porque dá essa alfinetada sobre a visão que temos e do que muito se discute do que é África. Será que realmente sabemos o que estamos julgando ser a África? A letra diz assim: “Todo meu papo maçante. Nada que adiante contar (….) E a mulher da costa abriu uma Coca-Cola. Exibiu um sorriso de ironia e disse: Pra fábrica categórica. Folclórica, geométrica. Eurocêntrica e retórica. A África é periférica. A Africa é só teórica. Que pratica a África? A África é só teórica. Onde fica a África?. Pré-Histórica, histérica. Colérica e alegórica. Tétrica, rica e pindérica. A África é fantasmagórica. A Africa é só teórica. Que pratica a África? A África é só teórica. Onde fica a África?”
O senso comum diz que só existe o ritmo Kuduro, mas Luanda é muito mais do que isso. Após períodos de colonização, guerras e extrema exploração, o angolano também tem se descoberto. Nesse paralelo e olhando para o Brasil, percebo que é importante, sim, tombar e afrontar, mas é essencial estudar e se descobrir além das redes sociais. Conversar e entender a importância da história oral, algo tão intrínseco na cultura africana, pode ser o primeiro passo. Se informar sobre as notícias que rolam além dos veículos de comunicação de massa pode ser o próximo exercício. Nem que seja sentar na frente do computador e, antes de escrever aquele textão, separar um tempo para fazer uma pesquisa pesada sobre o assunto. Um livro legal que estou lendo é “Predadores”, do escritor angolano Pepetela, que mostra um panorama super atual de Luanda pós-independência.
Sem demagogia, ser simples e estar disposta a ouvir antes de querer fazer qualquer tipo de análise ou julgamento são os principais aprendizados que levo dessa viagem, além de continuar carregando a energia da minha religião que só se intensificou ainda mais. Criar laços afetivos é uma das coisas mais importantes dessa vida, mesmo que a sua nova família esteja do outro lado do oceano, pois esses laços criam raízes importantes para o sentido da nossa vida.