Levantamento mostra que cerca de 17 milhões de mulheres foram agredidas com socos, chutes ou tapas nos últimos 12 meses. Queda da renda e desemprego impactam a ocorrência dos casos de violência
Além do medo de contrair o novo coronavírus, Suellen Ribeiro, 36 anos, advogada que vive no Rio de Janeiro, passou o ano de 2020 temendo as agressões físicas e psicológicas cometidas pelo seu ex-namorado. O relacionamento que começou em 2018 acabou apenas este ano após o deferimento das medidas protetivas. A advogada preferiu que o agressor não fosse identificado e seu processo está em segredo de justiça.
A violência doméstica (qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial) começou com pequenos atos que acabavam com a autoestima dela. “Ele falava o tempo todo que eu era suburbana, que meu celular era de pobre, que as minhas roupas eram feias e só ele iria me querer. Acabando com a minha autoestima, causando violência psicológica. Tive medo de me tornar uma pessoa ‘escravizada’ com essa situação em pleno século XXI”.
A advogada que sempre foi independente se viu sofrendo tentativas de ver sua carreira por água abaixo, o que não ocorreu, graças a sua insistência em seguir trabalhando. “Ele queria que eu passasse por dependência financeira, fazendo várias propostas de ajuda e que não foram aceitas. Ele tentou acabar com a minha vida, me difamar, acabar com meu trabalho e dizia que eu não teria mais nenhum homem”.
A história de Suellen se repetiu com outras 17 milhões de mulheres que foram agredidas nos últimos 12 meses, segundo levantamento Visível e Invisível – a Vitimização de mulheres no Brasil, encomendado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública junto ao Instituto Datafolha.
A pesquisa foi divulgada nesta segunda-feira (7/6) e revela ainda que 25% destas mulheres apontam a falta de autonomia financeira como o principal agravante nos casos de violência sofrida e 61,8% viram a renda familiar diminuiu no período. Já 46,7% perderam o emprego.
De acordo com os dados, a violência cresce em casa e diminui no espaço público: 72,8% dos agressores são conhecidos e têm convivência com as vítimas. Os maiores índices de violência continuam atingindo mulheres jovens, entre 16 e 24 anos (35,2%). Mulheres separadas e divorciadas apresentaram níveis mais elevados de vitimização, em 35%, em comparação com as casadas, 16,8%, viúvas, 17,1% e solteiras, 30,7%.
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Como no caso de Suellen, a prevalência dos casos de assédio é muito superior entre as mulheres pretas. Enquanto 52,2% das mulheres pretas relataram alguma ocorrência no último ano, o índice foi de 30% entre mulheres brancas. Os números mostram uma das faces da violência doméstica vivida por Suellen: o racismo. “Ele disse que não gostava de mulheres pretas, que gostava de mim e isso era a pior coisa que tinha acontecido com ele”, conta a advogada.
Além dos xingamentos, as agressões físicas começaram também logo no início do namoro. “Depois ele começou a falar gritando, só falava gritando comigo. Não sabia falar em tom baixo ou sem demonstrar total irritação e perturbação. Um dia, quando ele percebeu que eu tinha uma marca de biquíni no meu corpo e que eu não havia comunicado que fui na praia, ele me agrediu com um tapa na cara”, diz.
Outros motivos pequenos o levaram a agredi-la. “Me bateu quando estávamos conversando e discordei sobre um assunto, quando eu não quis deixar ele ver meu telefone e quando eu não quis fazer sexo com ele, apertando meu pescoço”.
A última agressão foi quando ela tentava sair do carro do ex. “Fiquei presa dentro do carro, ele gritava que eu tinha fãs no Facebook e me questionava aos gritos sobre uma viagem de Arraial do Cabo e dirigia sem respeitar a sinalização, outros carros gritavam ‘seu louco’. Em um determinado momento ficamos com o carro parado e eu tentei ligar para o número 190 e nesse momento ele bateu nos meus braços, puxou meu cabelo, me empurrou e o celular caiu no interior do carro e o atendente do 190 dizia ‘senhora’ até ele finalizar a ligação telefônica.”
Os momentos de desespero começaram a cessar quando ela decidiu abrir a janela do carro e gritar socorro. “Quando eu vi o carro da polícia, abaixei o vidro da janela do carro e gritei : ‘socorro’. O carro da polícia seguiu o carro dele e pediu para o carro dele parar e a policial pediu para eu descer, eu disse : ‘estou presa no carro’. A policial apontou a arma para a cabeça dele e pediu para ele abrir as portas do carro.”
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O acontecimento foi ápice para o fim do relacionamento. “O relacionamento só acabou quando ele respeitou as medidas protetivas como minha decisão de afastamento total sem possibilidade de qualquer tipo de retorno para ciclo de violência que ele chamava de relacionamento. A minha decisão de não querer mais o relacionamento não era o suficiente já que ele estava empenhado em supostamente ‘reconquistar minha confiança'”. Depois do ocorrido ela foi diagnosticada com trauma pós agressão.
Diferentemente do caso de Suellen, a pesquisa aponta que 44,9% das mulheres não fizeram nada em relação à agressão mais grave sofrida. O número é menor do que o último levantamento, que mostrou que 52% das mulheres não fizeram nada. Desse total, 21,6% procuraram ajuda da família, 12,8% pediram ajuda aos amigos, e 8,2% recorreram à igreja.
Somente 11,8% denunciaram as violências em uma delegacia da mulher, 7,5% delas em uma delegacia comum, 7,1% buscaram a Polícia Militar (190) e 2,1% entraram em contato com a Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180). Das mulheres que não procuraram a polícia, 32,8% disseram que resolveram a situação sozinhas, 15% não quiseram envolver a polícia e 16,8% não consideraram importante fazer a denúncia.
Desemprego e pandemia
As medidas de isolamento social, o fechamento de parte da economia e o cenário de desemprego atingiram fortemente as mulheres, conforme o estudo elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Entre as mulheres que afirmaram sofrer algum tipo de violência no período, 46,7% perderam o emprego, contra 29,5% das que não reportaram qualquer tipo de episódio. O estudo que também ressalta a diferença no aumento de consumo de álcool entre os dois grupos, “16,6% por quem sofreu com violência contra 10,4% das que não sofreram com o problema no decorrer dos últimos 12 meses”, afirma.
Os meses de pandemia da Covid-19 tornaram-se mais perigosos para as mulheres dentro de casa. De acordo com o levantamento houve crescimento no número de mulheres que relataram ter sofrido violência dentro de casa, subindo de 42% há dois anos para 48,8% nos últimos 12 meses. 19,9% das violências vivenciadas ocorreram na rua, 9,4% no trabalho e 1,8% no bar/balada.
Na comparação com a pesquisa de 2019, 29,1% das mulheres afirmaram ter sofrido a violência na rua. Internet e trabalho corresponderam a 8,2% e 7,5% do total, respectivamente, seguidos por bar/balada (2,7%) e escola/faculdade (1,4%).
Segundo a diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, um dos dados mais importantes da pesquisa tem a ver com a autonomia financeira destas mulheres. “Na comparação com os homens ou mesmo com as mulheres que não sofreram violência verificamos que elas tiveram maior perda de renda e de emprego. Ou seja, a precariedade das condições materiais e financeiras expôs muito essa mulher à violência”, explica.
Outro ponto relevante, segundo Samira, é que, mais de 70% dos autores das agressões são conhecidos, o que não é novidade. “O que é novo é perceber que, depois dos parceiros íntimos ou ex-parceiros íntimos, temos alta frequência de pais e mães, padrastos e madrastas, filhos e filhas, irmãos e irmãs como autores de violência, ou seja, é uma violência intrafamiliar”.
Os níveis altos de estresse em casa em função da pandemia, também foram analisados pelo estudo: 50,9% das mulheres estão sob alto estresse, em comparação com 37,2% dos homens, “Entre as mulheres vítimas de violência, a taxa foi ainda maior e atingiu 68,2% das entrevistadas. Isso talvez se deva ao fato de elas permaneceram mais tempo em casa, provavelmente por conta dos papéis de gênero tradicionalmente desempenhados, em que cabe ao sexo feminino maiores cuidados com o lar e os filhos”, diz a pesquisa.
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Foi o que ocorreu com Suellen. Segundo ela, no ano passado, o agressor ficou “mais irritado e agressivo com os problemas relacionados ao mercado de trabalho, com assuntos pessoais e financeiros que não estava conseguindo resolver por causa da pandemia”.
Tipos de agressão
Os tipos de agressão sofrida pelas vítimas, nesse momento da Covid-19 foram detalhadas pela pesquisa. Tapas, socos ou chutes fizeram parte da vida cotidiana de 4,3 milhões de mulheres (6,8%), algo como 8 mulheres a cada minuto, segundo o FBSP.
“O tipo de violência mais frequentemente relatado foi a ofensa verbal, como insultos e xingamentos, num total aproximado de 13 milhões de brasileiras (18,6%); 5,9 milhões de mulheres (8,5%) relataram ter sofrido ameaças de violência física como tapas, empurrões ou chutes”, afirma a pesquisa.
Outras 3,7 milhões (5,4%), sofreram ofensas sexuais ou tentativas forçadas de manter relações sexuais e 2,1 milhões (3,1%), foram ameaçadas com faca (arma branca) ou arma de fogo, além de 1,6 milhão de mulheres que foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento, o que corresponde a 2,4%.
Violência contra a mulher nas ruas continua
Segundo o estudo, 37,9% das brasileiras foram vítimas de algum tipo de assédio sexual nos últimos 12 meses, o que equivale a 26,5 milhões de mulheres. Em 2019, foram 37,1%. O assédio mais frequente são as cantadas ou comentários desrespeitosos quando estavam andando na rua, o que atingiu 31,9% das mulheres (22,3 milhões).
Ambiente de trabalho e transporte público são ambientes mais hostis e propícios ao assédio às mulheres do que festas e baladas: 8,9 milhões (12,8%) receberam cantadas ou comentários desrespeitosos no ambiente de trabalho e 5,5 milhões de mulheres (7,9%) foram assediadas em transportes públicos, como ônibus, metrô ou trem. Já 3,7 milhões de mulheres (5,4%) foram agarradas ou beijadas sem consentimento, de acordo com a pesquisa.
A pesquisa quantitativa, com abordagem pessoal em ponto de fluxo, ouviu 2.079 pessoas com 16 anos ou mais, em 130 municípios, entre os dias 10 e 14 de maio de 2021.
Por fim, após conviver três anos com a violência doméstica, Suellen avalia que para sair do ciclo de violência é necessário ter uma rede de apoio, seja de amigos, médicos e familiares. “É difícil sair do ciclo de violência, independente de nível social, cor e raça. A cultura machista, tradicional, conservadora e misógina, por vezes, faz acreditar que a culpa é da mulher ou que ela tenha que seguir padrão de comportamento que vá compactuar com o machismo, misoginia e violência contra mulher.”
Segundo ela, as instituições perpetuam também outras violências contra mulheres. “Eu tive negativa de atendimento médico em hospital público com a justificativa de que eu só poderia ser atendida no dia da agressão, tive que ir para outro município do Rio de Janeiro para a buscar atendimento médico. As mulheres não recebem nenhum tipo de amparo no atendimento em algumas instituições. A violência contra mulher pode ser olhada em alguns casos como um problema pequeno ou que não mereça atenção, mas houve efetividade do poder judiciário em deferir as medidas protetivas”, diz a advogada.
Por outro lado, na avaliação da advogada, o atendimento do CEAM [Centro Especializado de Atendimento à Mulher Chiquinha Gonzaga] merece destaque. “E de quem faz parte da equipe a todos que se dedicam a causa. Em especial agradeço a psicóloga e a assistente social, Valéria e Rose. Destaco também o projeto Violeta que oferece amparo as vítimas de violência contra mulher e a efetividade do poder judiciário do Rio de Janeiro em deferir as medidas protetivas, sem colocar novamente a vítima em pré-julgamentos, discriminação, falta de respeito e submeta-la a outras violências vivenciadas em outras instituições.”
Ainda na visão de Suellen a violência contra mulher deve ser combatida também com educação. “Nas escolas, educação dos agressores já julgados e daqueles que são reincidentes também. Estou cuidando da minha saúde e percebendo que tudo aquilo que deixei de ter merece um olhar do poder público e da população, no sentido de fiscalizar e implementar políticas públicas.”