A cruel realidade de “Corpo Delito”

    Filme cearense retrata a vida de Ivan, mais um jovem brasileiro a cumprir pena no sistema penitenciário e reflete sobre as políticas de encarceramento em massa e o racismo no Brasil

     

    Corpo Delito é o tipo de filme que deixa o público com aquela pulga atrás da orelha, tamanha a naturalidade com que tudo acontece na frente das câmeras. É real isso tudo ou é uma ficção? Por quê Ivan cumpre pena? Ele existe?

    Sim, Ivan existe. Existe, resiste e insiste em viver em um país que não o quer vivo. Ele representa o que boa parte dos 727 mil presos brasileiros que vivem sob as rédeas do Estado como aqueles que têm sua liberdade retida.

    Com direção de Pedro Rocha, um cearense com formação em jornalismo e mestre em sociologia, o filme aborda o dia a dia de Ivan, um jovem negro que cumpre a parte final de pena de oito anos em regime condicional, acompanhado 24h por dia por uma tornozeleira eletrônica.

    Na casa dos seus 30 anos, morador da Favela dos Índios, em Fortaleza, no Ceará, ele é perturbado por uma série de dilemas quanto à sua condição. A principal delas gira sobre a ideia de quebrar ou não a “pulseira” que o prende dentro de sua própria rotina. Ele conta que só “aqui na rua, tem dois que tentaram. Um foi preso rapidamente, enquanto o outro segue livre”.

    Sua única permissão para além de sua casa se dá pelo trajeto de ida e volta até o trabalho, onde aperta parafusos numa fábrica. O movimento em repetição de sua atividade diária se alia aos apitos da tornozeleira eletrônica e transmite o tom claustrofóbico da obra.

    O motivo de sua pena não é relatada, o que deixa sempre um clima de expectativa, pois a ideia de tentar entender se Ivan é um mocinho ou vilão parece sempre nos perseguir viciadamente.

    Mas a história de uma pessoa vai muito além dessa dualidade e aos poucos os diálogos fortes com seus amigos e familiares, as tentações do cotidiano e a vontade insaciável de liberdade do protagonista nos coloca bem de frente com esse buraco social gigante que é o sistema prisional e todas as suas falhas.

    Paralelamente às inquietações de Ivan, o documentário retrata a vida de Neto, seu amigo de bairro e de cerca de dez anos a menos de idade.

    A primeira sensação é de que ambos são irmãos, mas logo fica claro que, mais do que isso, os jovens compartilham a dura missão de serem jovens, negros e moradores de periferia em um país desigual e extremamente violento com esses grupos sociais.

    Em um dos momentos mais marcantes do filme, Ivan crava: “Nessa vida, a gente só tem duas opções: cadeia ou cemitério”.

    Debate

    Após a exibição do filme, o diretor Pedro Rocha e os atores da vida real, Ivan e Neto, participaram de um bate-papo junto a Mariana Câmara (ITTC – Instituto Terra, Trabalho e Cidadania), Sheila de Carvalho (IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) e da crítica de cinema Flávia Guerra junto ao público presente.

    Enquanto as pesquisadoras trouxeram dados compatíveis ao tema, reforçando a mensagem presente no filme, Pedro Rocha falou sobre a criação do projeto e das dificuldades de filmar uma história tão complexa como a do protagonista.

    Já Ivan, questionado sobre sua experiência de vida, conta que já viu e viveu de tudo, desde perda de amigos do bairro a decapitações de colegas reclusos. E que, por isso, ele não consegue mais ter medo da morte.

    Não é para menos. Ivan é o retrato fiel do Brasil que ninguém quer ver. E por isso sua história merece ser contada e recontada.

    Serviço:

    O filme continua em exibição no Espaço Itaú de Cinema Augusta, localizado no número 1.475 da Rua Augusta. As sessões rolam todos os dias, às 20h, e os ingressos custam R$ 12 a entrada inteira e R$6 a meia.

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