Cortejo desfilou pelas ruas do centro da capital paulista neste 1º de abril, lembrando mortos pelo Estado e fazendo galhofa com Folha de S. Paulo: “a gente vai escrever um editorial para vocês”
Enquanto a polêmica determinação dada pelo presidente Lula (PT) que não se fizesse, no governo federal, nenhum tipo de manifestação ou evento em alusão ao golpe de 1964 que instaurou o ditadura militar que duraria 21 anos no Brasil, outra polêmica mais antiga parece ter ficado de fora do cardápio dos debates nas redes sociais: mas o golpe aconteceu no dia 31 de março de 1964 ou no 1º de abril, Dia da Mentira.
Para o Cordão da Mentira, bloco cívico-carnavalesco fora de época, que sai todo 1º de abril para rememorar um dos períodos mais trevosos da política brasileira, o data oficial do golpe é o Dia da Mentira, informação sempre contestada pelos militares e seus asseclas, ciosos de que sua “revolução” seja tirada de mentira ou palhaçada.
Neste 1º de abril de 2024, uma segunda-feira, não foi diferente. Se reunindo na histórica unidade da Universidade de São Paulo (USP) localizada na rua Maria Antônia, onde ocorreu em 1968 a célebre “Batalha da Maria Antônia” entre estudantes da universidade pública, de esquerda, e alunos da Universidade McKenzie, de direita, o cortejo de 200 participantes seguiu pelas ruas do Centro da capital paulista até o Memorial da Resistência, na região da Santa Ifigênia, com direito à parada estratégica na frente da sede do jornal Folha de S. Paulo.
Com o tema “De golpe em Golpe: tá lá um corpo estendido no chão”, o Cordão da Mentira lembra que a violência de Estado não foi exclusividade da ditadura, e que, quase 40 anos após seu fim oficial, ainda persiste na forma de incursões brutais e fatais da polícia pelas periferias de todo o Brasil. Como resume Dona Zilda, 71, líder das Mães de Osasco e recém ganhadora do Prêmio Marielle de Direitos Humanos: “estava vendo um documentário sobre o período e pensei que a dor de Zuzu Angel, que perdeu um filho [Stuart Angel, preso pela ditadura e desaparecido em 1971] é a mesma dor que a minha. A ditadura não acabou, só os alvos que mudaram”.
A assistente social Mariana Coura, 28 anos, complementa: “Na quebrada a ditadura nunca acabou, ainda se mata jovem preto, pobre e favelado, e a gente está aqui para combater isso”. As falas fazem eco ao discurso de Débora Silva, líder e cofundadora das Mães de Maio, na abertura do desfile: “sem o Cordão da Mentira a gente não sabe o que seria das Mães de Maio. É importante estarmos aqui juntos pra poder dizer que nós temos uma polícia assassina, um governador fascista, miliciano, racista, que escolheu as favelas e periferia da Baixada Santista para fazer a tese eleitoral dele, que não é diferente da ditadura militar – na época tivemos lá o navio [Raul] Soares [nau usada como centro de tortura e prisão pela ditadura, atracado no Porto de Santos]. Estamos dizendo que o passado é bem presente e não vamos permitir que esse fascista continue com essa tese eleitoral em cima de corpos favelados, ele [Tarcísio] é um covarde, junto com esse playboy [Guilherme Derrite] que ele arranjou para ser secretário de Segurança”.
O Cordão da Mentira se equilibra entre o humor e o terror em sua crítica à violência de Estado: jovens vestidas de militares carregando chicotes em meio à performances reproduzindo cadáveres, letras como “que em algazarra os guris assassinados/ possam voltar e cantar os chacinados” em um momento, em outro, galhofa à Folha de S. Paulo: “vamos escrever um editorial para vocês”, gritavam os manifestantes, em referência a episódios como o da “ditabranda”, enquanto a frase “Falha de SP” era projetada na fachada do prédio.
Sem maiores percalços, com baixo efetivo policial – a reportagem contou no máximo quatro viaturas acompanhando o cortejo em certa altura – o Cordão da Mentira de 2024 foi encerrado por volta das 21h45 em frente ao Memorial da Resistência, com um recado bem claro (inclusive ao presidente) projetado em suas paredes: “sem memória não há democracia”.