A fé tem cor? Templo religioso resiste a racismo após sofrer ameaças

    Família de pai de Santo e filhos de Santo da casa Ile asè osalá, em São Carlos (SP), receberam carta contendo discurso de ódio. Casos de intolerância contra religiões de matriz africana são recorrentes no Brasil

    Um dia após a data em que se celebra a Consciência Negra no Brasil – 20 de novembro -, o Babalorixá (a pessoa responsável pelos cultos no candomblé e na umbanda) Júnior foi surpreendido por uma carta deixada na casa Ile asè osalá, em São Carlos, interior de São Paulo. De teor racista, o texto ameaçava a família do pai de Santo e os filhos de Santo da casa.

    Segundo Júnior, o local já havia sido alvo de ofensas, mas jamais nesse patamar de ódio. “Já sofremos alguns tipos de ameaças, já lançaram alguns objetos para dentro do axé, já passaram na frente ofendendo e falando palavras bem pesadas”, conta à Ponte Jornalismo.

    A carta, que foi escrita à mão e não tem assinatura, diz que as pessoas que frequentam o local vão começar a morrer, uma por uma, e que elas são “vermes que contaminam a humanidade”. Os negros são alvo dos trechos mais duros do texto, que contém declarações como: “nunca deveriam ter deixado de ser escravos” e “não são gente”. Segundo a Yalorixá Luciana, mãe de Santo da casa, no dia em que a carta foi encontrada cinco pessoas estavam na Ile asè osalá. Mas em dia de atendimento, o local é frequentado por cerca de 45 pessoas.

    O pai e mãe de Santo dizem que não sabem quem pode ter cometido tais crimes e aguardam a investigação da polícia. “Por isso o medo e a insegurança. Nós não sabemos com quem estamos lidando”, preocupa-se Júnior. As vítimas fizeram um Boletim de Ocorrência no 2º DP, em São Carlos. Foram registrados no documento os crimes de racismo, intolerância e ameaça. De acordo com a advogada Tamires Gomes Sampaio, o autor pode responder por crimes de injúria e ameaça, previstos nos artigos 140 e 147 do Código Penal. “Caso alguém desapareça ou sofra algum acidente que estiver sido citado na carta, a pessoa também responderia por esse crime”, explica.

    A advogada diz que caso seja um grupo de pessoas, todas responderão como uma organização criminosa “caso seja identificado que esse grupo esteja junto com a intenção de causar algum dano ao terreiro ou àqueles que lá frequentam. Em 2013, foi promulgada uma lei que disserta sobre as organizações criminosas e apresenta uma série de especificidades para o processo de julgamento”.

    O músico, fotógrafo e militante da causa racial Casimiro Paschoal “Lumbandanga” da Silva diz à Ponte que o episódio de intolerância religiosa e racial é “fruto da história da escravidão e também da ausência de representantes da comunidade negra em ambientes estratégicos”. Ele explica que por causa da exploração forçada da mão de obra africana durante o processo de colonização do Brasil o negro foi colocado em uma posição de inferioridade em relação aos brancos.

    A primeira estratégia utilizada para acabar com a autoestima do povo negro foi distanciá-lo de sua herança africana. Assim, o negro precisou construir suas estratégias de resistência a toda essa violência, com sua dança, costumes e religiosidade, diz Lumbandanga. “A única forma de resistir foi buscar os nossos deuses que se manifestavam na água, no vento, no Sol. A única forma através da qual resistimos principalmente após a escravidão.”

    Segundo ele, São Carlos foi uma das últimas cidades a abolir a escravidão, fator que reflete no modo como seus habitantes agem até hoje. Ele afirma que na cidade existem centros de resistência desde a década de 1970 pautando a luta racial. “Mesmo assim ainda não conseguimos eleger um vereador negro. Não temos um discurso de um representante negro que paute a ideia do que é ser negro. Passam desapercebidos os problemas que passamos no dia a dia”, lamenta.

    Lumbandanga diz que, com a resistência do povo negro, o Estado brasileiro começa a criar teorias de inferioridade e a ver a religiosidade africana como um “folclore”, posicionando-a como “periférica, à margem da sociedade”. “Não é estranho perceber esse tipo de manifestação porque existe a tentativa de subjugar, inferiorizando tudo o que está relacionado à cultura africana. [A religião] é um espaço de colocarmos nossas angústias, nossos desejos.”

    Intolerância

    Casos de intolerância religiosa não são raros no Brasil. O candomblé e a umbanda são os principais alvos dos intolerantes. Em 2015, uma menina de 11 anos foi apedrejada na cabeça no Rio de Janeiro. Ela voltava para casa com um grupo de pessoas vestidas de branco quando dois homens começaram a pronunciar insultos e jogaram uma pedra em direção às pessoas, atingindo-a.

    Em novembro deste ano, um grupo de estudantes de uma escola particular de Belém, no Pará, foi impedido pela diretora da instituição de apresentar um trabalho sobre a entidade Pombagira que, de acordo com o Candomblé, é a mensageira entre o mundo dos orixás e a terra. Em vídeo publicado na internet, a mulher diz que “não é obrigada a entender outras religiões”.

    Para a advogada Tamires Gomes Sampaio, as religiões de matriz africana sofrem ameaças porque “o racismo em nosso país é estrutural e se reproduz em todas as nossas relações sociais”. “Inclusive na forma como lidamos com a religião. Não é à toa que essas religiões e suas práticas foram historicamente criminalizadas no Brasil. Hoje em dia, com relatos de chefes de tráfico expulsando terreiros das favelas, com casos de terreiros sendo atacados, mães e pais de Santo assassinados, filhos e filhas de Santo perseguidos, a gente percebe que essa onda conservadora se reflete em grande violência contra a religião de matriz africana e seus adeptos, e isso é um problema social e estrutural”.

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