A greve daqueles que trabalham com a fome nas costas

    Entregadores por aplicativo decretam paralisação por melhores condições de trabalho e remuneração mais justa

    Tiago Camargo Bonini em manifestação antifascista na av. Paulista em 5 de junho deste ano | Foto: Guimel Salgado

    O ciclista Tiago Camargo Bonini, 28 anos, sabe bem o que é carregar comida nas costas todos os dias com fome. Ele é entregador de produtos alimentícios nas plataformas digitais Rappi, iFood e Uber Eats há um ano. Com carga horária diária de 12 horas, Tiago conta que não se alimenta durante o expediente porque, entre outras coisas, não têm auxílio alimentação mesmo com longa jornada de trabalho. Essa é uma das reivindicações da categoria que deve paralisar as atividades nesta quarta-feira (1/7). A Central Única dos Trabalhadores (CUT) estima que 98% dos entregadores de aplicativos devem parar as entregas em todo país.

    “Não dá para levar marmita porque estraga e também não dá para comprar comida todos os dias na rua. Eu como quando saio de casa e quando chego. O trabalhador precisa estar, no mínimo, bem alimentado para trabalhar”, afirma Bonini.

    A situação vivida por ele está longe de ser exceção. Reconhecidos de longe pelas mochilas térmicas de cores vibrantes, os trabalhadores relatam que não têm direito a horário de almoço, férias remuneradas e seguridade social em caso adoecimento. Para sobreviver e manter o vínculo com as plataformas, eles são obrigados a cumprir longas horas de trabalho e agir de acordo com o que é determinado pelas empresas. 

    Esse modelo de contratação sem vínculo empregatício, direitos trabalhistas, alimentação e plano de saúde é conhecido pelos sociólogos como “uberização” das relações de trabalho. O termo refere-se à forma de organização adotada pela empresa de transportes Uber, que transferiu os riscos e os custos da prestação de serviço aos subordinados. Tudo isso gerenciado por softwares e plataformas que conectam trabalhadores a consumidores. 

    O Sindicato dos Mensageiros Motociclistas, Ciclistas e Mototaxistas Intermunicipal do Estado de São Paulo estima que cerca de 280 mil pessoas estejam trabalhando como entregadores na capital paulista e Grande São Paulo, que representa um aumento de 20% desde o início da pandemia do coronavírus.

    Uma pesquisa recente feita pela Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (Remir Trabalho) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) constatou que mais de 57% dos entregadores afirmaram trabalhar em faixas acima das nove horas diárias. Durante a pandemia, esse índice subiu para 62%. O aumento da jornada indica que essa atividade é principal fonte de renda para a maioria dos prestadores de serviços. O levantamento verificou uma queda na remuneração e uma piora nas condições de trabalho.

    Em meio à crise sanitária, as longas jornadas de trabalho e o aumento dos riscos tiveram repercussão inversa na remuneração. A pesquisa da Unicamp apontou que 68,9% dos entregadores tiveram queda da remuneração durante a pandemia.

    A integrante do movimento “Entregadores Antifascistas”, Eduarda Alberto, de 24 anos, concorda que houve uma redução de renda na pandemia e afirma que a categoria sofre ainda com a inviabilização. “A situação dos trabalhadores piorou. Estão ganhando menos para trabalhar mais. Muitas vezes o pessoal faz o pedido em sua casa não pensa que o entregador está se expondo na rua”, diz a jovem.

    Vigiar e punir 

    Para o pesquisador Rafael Grohmann, doutor em Ciência da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do grupo de pesquisa DigiLabour, o capitalismo de plataforma submete os trabalhadores a uma “caixa-preta” algorítmica, planejada e construída pelas próprias empresas para gerenciar e controlar as atividades dos entregadores. “A plataformização traz de novo a gestão algorítmica, a vigilância extrema dos trabalhadores e a extração de dados dos usuários”, explica Grohmann.

    Longe de conhecer a teoria defendida pelo especialista em trabalho digital, um motoboy da empresa Rappi de 39 anos, que prefere não se identificar por medo de retaliações, conta que a categoria tem dificuldade com o mecanismo de seleção e cálculo das corridas. “Nós aceitamos os pedidos obrigatoriamente sem saber para onde vamos. O aplicativo mostra a distância e valor depois que confirmamos a entrega. Se recusamos o chamado, somos bloqueados pela plataforma. Nem todas as rotas são adequadas para os motoqueiros”, aponta o entregador. 

    Leia também: Trabalhadoras informais temem não ter como alimentar os filhos em crise do coronavírus

    Bonini esclarece que as empresas se comportam de formas diferentes em relação a rejeição das chamadas, mas todas as plataformas que ele presta serviço possuem formas de punições aos entregadores. “Eles não enviam uma notificação dizendo que foi bloqueado. Você apenas não recebe. Toma um chá de canseira. O pessoal até comenta: rejeitou o IFood? Pode ir para casa que não tem mais pedido. Algumas empresas bloqueiam [o profissional] até mesmo por excesso de rejeição”, explica o ciclista.

    Motoboys de aplicativos unidos em protesto na av. Paulista no dia 5 de junho | Foto: Guimel Salgado

    Bloqueios e punições acompanham a vida do motoboy Mauro Barba, 46 anos, há mais dois anos. Ele já foi bloqueado da Uber Eats em 2018, do IFood em março de 2019, da Rappi e da Lalamove. Barba afirma que as duas últimas empresas fazem bloqueios temporários sempre que um pedido é cancelado. “Todas bloqueiam usuários e não deixam claro o motivo que levou a tomar tal decisão. A nossa maior dificuldade é a comunicação com os aplicativos. Até hoje não sei os motivos dos bloqueios”, diz Barba.

    Sobram pedidos, mas faltam máscaras e álcool em gel

    Um decreto presidencial de março de 2020 classificou os serviços de entrega como “atividade essencial para fins de enfrentamento da disseminação do vírus”. Apesar de a modalidade de trabalho ter adquirido importância e centralidade desde a expansão da Covid-19, em razão das medidas de isolamento social, os entregadores denunciam a insuficiência de equipamentos de segurança pessoal, como máscaras e álcool em gel. 

    De acordo com os pesquisadores da Remir Trabalho (Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista), 172 entregadores (57,7%) afirmaram não ter recebido nenhum apoio para diminuir os riscos de contaminação existentes durante a realização do seu trabalho. O motoboy Mauro Barba afirma que de todas as empresas que ele presta serviço (Rappi, Click Entregas, Lalamove, Loggi, Log Moto e Immediato) apenas a primeira disponibilizou os itens de segurança. “Foi a única que ofereceu álcool em gel e máscaras, mas não em quantidades suficientes”, aponta. 

    Para o ciclista Tiago Bonini, as empresas começaram a fornecer os equipamentos de Proteção somente após as manifestações realizadas pelo setor em abril. “O pessoal fez uns protestos e um abaixo assinado. Só depois disso que começaram a fornecer. Mesmo assim não são suficientes. Algumas empresas fornecem duas máscaras com duração de duas horas cada e um pote de álcool em gel. Outras só fornecem as máscaras”, esclarece.

    Além dos riscos de contaminação pelo novo coronavírus, os trabalhadores cadastrados em plataformas digitais estão mais vulneráveis aos acidentes de trânsito. De acordo com o Infosiga (Sistema de Informações Gerenciais de Acidentes de Trânsito do Estado de São Paulo), o número de motociclistas mortos na cidade, em março e abril, subiu quase 50% na comparação com o mesmo período do ano. 

    Greve com apoio internacional

    A primeira greve dos motoboys e ciclistas de serviço de delivery tem apoio das redes sociais com a hashtag #BrequeDosApps e contará até mesmo com apoio internacional de trabalhadores da Argentina, Costa Rica, Chile, Equador e México.

    Para Maximiliano Martínez, 49 anos, entregador da Glovo e integrante da Agrupación de Trabajadores de Reparto (ATR), a precarização do trabalho dos entregadores está presente em todos os países e as exigências vão além das pautas econômicas. “Nós estamos pedindo para ser reconhecidos como trabalhadores. Que as empresas parem de deixar essas relações precárias encobertas. Nós temos todas as obrigações e as empresas não assumem nenhuma”, defende o representante da agrupação de entregadores da Argentina.

    Eduarda Alberto, que também é estudante de Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), acredita que foi no cenário de pandemia que a categoria se reconheceu como serviço essencial e que a organização dos entregadores pode conquistar melhorias para a classe trabalhadora. “Acredito que é possível barrar os retrocessos políticos. Não tem conquista de direitos que vem sem luta.”, pontua. 

    Cartaz da convocação do movimento de greve batizando nas redes sociais como #BrequedosApps

    Os trabalhadores reivindicam aumento do valor das corridas e pacotes, aumento do valor mínimo por entrega, fim dos bloqueios e desligamentos indevidos, seguro de roubo, acidente e vida, fim do sistema de pontuação e auxílio pandemia (EPIS e licença). A data da paralisação foi escolhida por meio de grupos de WhatsApp e divulgada massivamente pela página Treta no Trampo. 

    Neste dia, os entregadores esperam também o apoio dos consumidores. Eles sugerem boicote as empresas como IFood, Rappi, Loggi e Uber Eats. Além do “breque dos apps”, Paulo Roberto da Silva Lima, conhecido como Gallo, 31 anos, liderança do movimento de “Entregadores Antifascistas” criou um abaixo-assinado pedindo para que as plataformas distribuam alimentação e álcool em gel para os motoboys. 

    Rafael Grohmann, especialista em trabalho digital, afirma que os entregadores sintetizam o que tem de mais essencial em meio à pandemia. “São os que entregam tudo para aqueles que podem ficar em casa. A luta deles mostra que novas formas de controle do trabalho exigem também novas formas de organização dos trabalhadores”, afirma.

    Outro lado

    As empresas citadas (Rappi, iFood, Lalamove e Uber Eats) foram procuradas pela reportagem da Ponte, mas apenas o iFood e Lalamove responderam. As demais não se posicionaram até a publicação da reportagem. A empresa esclarece que não houve qualquer alteração nos valores das entregas por conta da pandemia e que o valor médio pago por rota é de R$ 8,46. Além disso, informa que todos os entregadores ficam sabendo do valor por rota antes de aceitar ou declinar a entrega ofertada. 

    Quanto à desativação, o iFood esclarece que essa medida é tomada somente quando há um descumprimento dos Termos & Condições para utilização da plataforma e é válida tanto para entregadores, como para consumidores e restaurantes. A empresa afirma também que não adota nenhuma medida que possa prejudicar aqueles que rejeitam pedidos. Ao rejeitar muitos pedidos, o sistema entende que o entregador não está disponível naquele momento e pausa o aplicativo, voltando a enviar pedidos, em média, 15 minutos depois.

    “O iFood está ciente do movimento e apoia a liberdade de expressão em todas as suas formas. Reforça ainda que está aberto ao diálogo e que todos entregadores podem entrar em contato por meio do chat disponível no próprio app iFood para Entregadores e do Portal do Entregador”, diz a nota.

    A plataforma declara que iniciou, em abril, a distribuição de EPIs (álcool em gel e máscaras reutilizáveis) em kits com duração de pelo menos um mês.

    Em nota, a Lalamove afirma que tem um “relacionamento transparente com os motoristas parceiros” e que eles “têm direito de reivindicar o que consideram melhor para a sua categoria”. Além disso, a empresa informa que “não tem ações diferenciadas programadas para o dia 1° de julho”.

    Reportagem atualizada às 12h20 do dia 1/7 para inclusão da nota da Lalamove.

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