Não há explicações para a presença de Fernando de Paiva Assef, 45 anos, solto na região da Luz, centro de São Paulo; policiais suspeitam de ele ser um informante infiltrado ou usuário
A primeira mensagem pipoca no WhatsApp às 22h40, noite quente de um 3 de setembro na capital paulista – e ia esquentar mais ainda. “As informações que chegaram aí é que o policial estaria amarrado no interior das barracas, agora não podemos precisar o QTH [localização] dessas barracas”, falava assertivamente o charlie [gíria para “policial civil”] na mensagem de áudio, acompanhada de duas frases de texto: “Policial civil sequestrado no meio da Cracolândia” e “Informação chegando que o mesmo está rendido dentro de uma das barracas, aguardando ordens do torre [chefe do PCC, Primeiro Comando da Capital, na região]”.
Logo depois, outro policial civil, ainda calmo, também no áudio: “Esse QRU [ocorrência] pessoal, é desse instante, os tira de lá tão mandando pra nós aqui, positivo? Tá delegado, tá todo mundo aí, tiragem inteira de São Paulo encostando lá na Cracolândia”. Desta vez, três mensagens de texto: “A informação é que trata-se de um policial branco e alto”, dizia a primeira, seguindo por “Que estaria tentando filmar a movimentação” e “Equipes do Denarc [Divisão Estadual e Narcóticos] a QTI [a caminho]”.
A terceira leva chegou com uma foto: um corpo estendido no chão, sem camisa, sangue no rosto, no peito, no asfalto, caixas de feira, um cobertor de feltro, as pernas de dois policiais civis usando calça jeans e observando o suposto colega caído. A nova mensagem vem esbaforida, de um terceiro tira, com sons de sirenes ao fundo: “O indivíduo esfaqueado aí já tá com a segurança feita pelas equipes aí [respira fundo], viaturas do Denarc e do Deic [Departamento Estadual de Investigações Criminais] no QTH aí [na região], quem estiver se deslocando, cautela”.
Então vem uma segunda foto: o mesmo corpo, dessa vez numa imagem mais aberta, sendo observado por um policial parrudo à paisana de cassetete na mão, do outro lado, dois tiras de uniforme tático, metralhadora e máscara para proteger do Covid-19. Na parede ao fundo, uma pichação entrega o território: 1533, o já manjado código do PCC. A mensagem de áudio que acompanha mostra o nível da confusão. “Têm mais de 50 polícia aqui, achamo o cara no meio da Cracolândia”, diz o tira com sotaque moquense acentuado (não-paulistanos lembrariam do Boça). “Dentro da barraca, do jeito que falaram, esfaqueado, morrendo. Não dá pra saber se é polícia, se não é. A informação que veio é que é polícia, então a gente tem que acreditar, né?”.
Mais grave, gritando, um segundo áudio reitera o sentimento de balbúrdia: “Não dá pra saber, fio. O cara tá de cueca esfaqueado no meio da Cracolândia. Não dá pra saber onde o cara trabalha, não tem [carteira] funcional, não tem nada. A informação é que tem um polícia baleado, um polícia esfaqueado, tão matando um polícia, nós achamo um cara esfaqueado no meio da Cracolândia, não dá pra saber de onde o cara é” – em texto, a dúvida se repete: “Vítima encontrada, ferida por arma branca. Sem confirmação de identidade e se é policial ou não. Resgate acionado”.
23h30, a última leva de mensagens: fotos da região da Luz sem nenhum “fluxo”, apenas policiais, uma tatuagem na perna do esfaqueado e uma foto 3×4. “Ô mano, se alguém puder reiterar o resgate aí mano, a gente não sabe se o cara é polícia, não é polícia, mas o cara tá esfaqueado, tá morrendo caralho!”, vem o áudio, seguido por outro explicando que tudo foi controlado: “O pessoal do Garra [Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos] vai socorrer, doutor. Doutor Rafael tá aqui e vai mandar socorrer”.
Um novo dia
Amanhece a sexta-feira, véspera de feriado, e se descobre a identidade do esfaqueado: Fernando de Paiva Assef, 45 anos. Um ex-policial civil, natural de Santos, no litoral paulista e exonerado da corporação em janeiro de 2020. Permaneceu dois anos e oito meses como investigador de terceira classe. Foi exonerado por quebrar regras de conduta e de responsabilidade, conforme explicação da própria Secretaria da Segurança Pública. Certo dia, ele apareceu bêbado na cidade de Rosana, último município no extremo oeste do estado de São Paulo, na confluência dos rios Paranapanema e Paraná. Um processo por improbidade administrativa explica como ele acabou bem quisto na cidade:
“Com menos de 1 (um) mês na cidade, o apelante, visivelmente embriagado, com uma garrafa de whisky Jack Daniels em uma das mãos, ingressou na casa lotérica da cidade e deixou cair ao solo sua arma de fogo. Em razão de se tratar de uma casa lotérica, não sendo o requerido pessoa conhecida da população, o fato causou enorme desespero na cidade, pois todos acharam que se tratava de um assalto. […] O réu, repita-se, visivelmente embriagado, com a garrafa de whisky na mão, foi abordado pela Polícia Militar, que foi acionada em razão do desespero dos cidadãos, e disse que não iria obedecer às ordens dos policiais militares porque ‘não era bandido’ e tinha um tio ‘Desembargador’.[…] O autor [da ação] defende que tais condutas são incompatíveis com a forma de agir de um Funcionário Público, sendo demonstrado que o réu não reúne condições para ocupar o cargo de Policial Civil. Tais eventos causaram comentários por toda a cidade de Rosana, bem como o compartilhamento, em redes sociais, de vídeos e fotos da balbúrdia causada pelo réu”.
Policiais do Denarc (Divisão Estadual de Narcóticos) da Polícia Civil de São Paulo aparentemente foram os primeiros a saber do crime contra Fernando. Anderson Ferreira da Silva e Marcus Rian da Silva estavam na Penha, bairro na zona leste de São Paulo, quando acionados pelo WhatsApp. Correram para a Luz. Encontraram o ex-investigador atirado no chão, ensanguentado.
Eles pegaram três homens ali, no próprio local. Um tinha sangue em sua camiseta. Ninguém sabia ao certo o que havia acontecido, o motivo da tentativa de homicídio. Até mesmo o delegado Luiz Renato Gardenal Monaco, responsável pelo registro da ocorrência. Ele ouviu os três homens. Um deles tinha um pen drive e um cartão de memória, alvos de perícia na investigação. Sem indício de terem sido os autores dos golpes com faca, os liberou.
Se o delegado de plantão tinha dúvidas do que ocorrera, mais perguntas tinham os investigadores do 2º DP (Bom Retiro), onde se registrou a ocorrência. “Falaram em um possível ganso [civil que atua como informante da polícia]”, explica um policial civil, sob condição de anonimato. “Esses caras que são exonerados costumam fazer papel de informante. Podia ser isso que ele estava fazendo na Cracolândia aquela hora”, continua. A investigação será tocada pelo 77º DP (Santa Cecília), responsável pela área da Cracolândia.
O boletim de ocorrência não dá pistas. Socorrido à Santa Casa de São Paulo, Fernando estava inconsciente. Nenhum policial conseguiu interrogá-lo. Ele passou por cirurgia e seu estado de saúde é um mistério, pois nem a Secretaria Municipal da Saúde, nem a pasta estadual têm responsabilidade sobre informações de enfermos da Santa Casa. O hospital tem uma assessoria de imprensa própria, que não respondeu os questionamentos da Ponte.
Tendas como alvo
As tendas na região geraram mais ocorrências na ensolarada sexta-feira, 4 de setembro. Durante o começo da tarde, o fluxo rolava normalmente em frente à Estação Júlio Prestes da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos. Havia uma renca de policiais e guardas: uma base da PM, uma da Guarda Civil Metropolitana. A guarda ainda tinha mais três viaturas. Até 13h, tudo calmo.
Quando bateu 14h, bombas e correria. Guardas da Inspetoria de Operações Especiais empunhavam armas e escudos na hora da “limpeza” da área. São ações diárias que costumam rolar sem estresse. Não dessa vez. Havia tensão pelo esfaqueamento do ex-policial. Quando a guarda tentou tirar as tendas, veio a treta.
Os GCMs apontaram armas para tirar a lona. A proteção contra sol e chuva era vista pelos agentes como empecilho para a averiguação pelo ar com drones. Diz o inspetor Aguinaldo, chefe da ação nesta tarde, que o equipamento flagra a venda de drogas. Com as lonas, isso fica impossível. “Nós deixamos eles ficar, só pedimos para tirar a lona. Eles se recusaram e agimos”, explicou à Ponte.
Eram 19 guardas contra mil dependentes químicos, segundo Aguinaldo. A Ponte esteve no local anteriormente e estimou cerca de 300 pessoas no fluxo. Vieram bombas, balas de borracha e o revide. Os integrantes do fluxo correram, jogaram pedras, pedaços de pau e o que viam pela frente quando dispersaram. Colocaram fogo em uma carroça. Um guarda foi atingido na bochecha. “Aqui”, diz Aguinado, apontando para pouco abaixo do olho. “Levaram para o hospital, está bem”.
Mais cerca de 41 GCMs se juntaram à ação. A Polícia Militar também ajudou a cercar os usuários. Todos ficaram amontoados no quarteirão da Rua Helvétia entre as alamedas Dino Bueno e a Barão de Piracicaba. Colocaram uma das lonas como proteção das bombas e balas de borracha dos guardas.
Aguinaldo disse saber do esfaqueamento de Fernando. “Ele estava usando [drogas] no fluxo”, conta ter ouvido falar. “Aí descobriram que ele tinha sido policial e deu todo esse rolo”. O comandante mostrou seus subordinados em ação, alguns com calibres 12 de bala de borracha, enquanto o fluxo ocupava seu novo espaço. “As pessoas vão voltando e nós estamos aqui mais para eles não invadirem os prédios”, diz, ao apontar para moradia popular ao lado do fluxo.
A Secretaria da Segurança Pública confirmou a detenção dos três homens encontrados junto de Fernando. “Três homens, suspeitos de envolvimento no crime, foram detidos e liberados após prestarem depoimento”, explica a pasta, que também atestou a exoneração do ex-investigador por “processo administrativo disciplinar (PAD)”. Ele rompeu regras nos “itens 2 e 8 do artigo 7º da LC 1.151/2011”, que tratam de condutas a serem adotadas pelo policial civil nos três primeiros anos de serviço. Fernando não passou no teste.
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