Os brasileiros Rael e Emicida gravaram o álbum “Língua Franca” com portugueses Valete e Capicua. Juntos, os quatro querem levar o rap rimado em português para todos os lugares onde a nossa língua é falada
Em apenas dez dias de intenso trabalho em Portugal, quatro artistas do rap rimado em português gravaram todo o álbum “Língua Franca”. Os brasileiros Emicida e Rael juntaram forças e talento com os rappers portugueses Valete e Capicua para criar uma conexão lusofônica inédita, marcada por um frescor juvenil e revolucionário.
O álbum contém uma ácida crítica social e política. A instabilidade política no Brasil e a onda conservadora que se expande pelo mundo são abordados pelo quarteto. “A nossa jovem democracia é muito desrespeitada no Brasil”, diz Emicida.
O resultado é um disco com a pluralidade e a diversidade do idioma português, que é falado oficialmente em três continentes e por povos muito diferentes.
“Foi uma espécie de crossfit de rap. Em dez dias, uma música por dia, gravamos as dez faixas. Foi intenso e muito produtivo. O projeto é ambicioso também neste sentido porque é a união do trabalho de quatro artistas que querem expandir a sua música para outros lugares onde se fala português”, segue Emicida.
O rapper paulistano disse à Ponte Jornalismo que o projeto foi uma oportunidade para mergulhar em uma nova cultura. “É como aprender um novo idioma. É uma ponte para novas conexões e a chance de imergir em um mundo desconhecido. Acredito que experiências assim te fazem um ser humano muito melhor”, afirma Emicida, que define o encontro com os rappers portugueses como a essência da língua portuguesa 2.0.
“É a linguagem do século 21”.
O contato do Emicida com a música da portuguesa Capicua, a única mulher do quarteto, veio pela indicação do irmão Fióti, também músico e que lançou no ano passado o álbum “Gente Bonita”.
“O Fióti já vinha pesquisando a música moderna portuguesa e me mostrou o som dela. A Capicua tem uma visão de mundo muito semelhante da nossa. Fiquei fã dela e já nos apresentamos juntos. O Rael é um parceiro meu de muito tempo e eu também gosto bastante do Valete, que é um rapper muito conhecido e respeitado”, diz.
Caldeirão do rap
Com o time formado, o passo seguinte foi preparar o repertório dentro do caldeirão multicultural e amplo do rap. “Na minha música e na do Rael sempre vão ter muitos elementos brasileiros. É a nossa raiz. Mas também tem rap em tudo que fazemos. O rap tem ‘greencard’ [“entrada livre”] em todos os ritmos, a característica principal dele é essa, se misturar com os ritmos locais e assimilar essas particularidades. Eu vejo isso claramente. O rap já tá no samba, na moda de viola, no sertanejo, na congada, em tudo. Só não tem o nome, mas a intenção está lá”, diz o brasileiro.
Como músico, Emicida considera importante abrir novas possibilidades para que o rap faça mais conexões. “Não podemos deixar que o Brasil se isole culturalmente, que vire os Estados Unidos do Sul. Tem que misturar mais e diversificar mais. Esse é o verdadeiro intercâmbio. Conseguimos isso com esse projeto em parceria com os artistas portugueses”, conta.
Para Emicida, um dos pontos fortes do projeto é a linguagem jovem e contemporânea. “A juventude tem a energia e disposição necessária para mudar o mundo, mas precisa se impor e ser respeitada. Precisa ser ouvida”, diz.
Em relação ao Brasil, o rapper analisa que a democracia é “uma jovem” muito desrespeitada. “Eu vejo conquistas sociais importantes sendo esfareladas. É deprimente. Eu nunca poderia imaginar que, aos 31 anos de idade, estaria brigando por Diretas Já. O jovem é o último grupo de resistência. São eles a energia da mudança”, afirma.
O texto de apresentação do álbum foi escrito por Caetano Veloso. “Os quatro falam a mesma língua. A língua franca do rap. E a língua franca da lusofonia. O simples fato de tê-los aqui reunidos é já, a meus olhos mulatos do recôncavo baiano, acontecimento de grande monta”, escreveu Caetano.
Capicua
A rapper Capicua, 35 anos, nasceu na cidade do Porto e, aos 14 anos, começou a fazer grafites e ter contato com a cultura Hip Hop. “Foi também quando comecei a escrever as minhas primeiras músicas de rap falando sobre reflexões pessoais, feminismo e política”, diz.
Artista consciente das questões políticas de Portugal, ela sempre foi uma voz ativa contra o conservadorismo, sem perder nada em lirismo ou abrir mão de temas românticos. “Acompanhei os anos de crise de Portugal, tive amigos que sofreram com as dificuldades da imigração. São coisas presentes na minha música”, diz.
Capicua aborda muito o feminismo em suas composições. “Na Europa, ainda é preciso fazer uma desconstrução do estigma de que o feminismo é o oposto do machismo. Não é. O feminismo é a luta por igualdade, por um mundo melhor para todos e contra o feminicídio [assassinato de mulheres]. Em Portugal, por exemplo, foi apenas em 2014 que o debate sobre o feminismo ficou mais frequente, graças ao posicionamento de artistas midiáticas como Beyoncé“, diz.
A rapper não tem medo de colocar o dedo na ferida. “Todos os meses morrem milhares de mulheres na Europa. Em Portugal, as mulheres são maioria nas faculdades, mas ganham muito menos que os homens e são minoria nos postos de trabalho de chefia. Há um abismo grande aí. Temos que falar mais sobre o feminismo no mundo todo”, afirma.
A política também está no radar da rapper portuguesa. “No meu país, o governo atual é de esquerda e as pessoas estão felizes. No entanto, existe uma onda conservadora na Europa que nos preocupa. Nenhum país é uma ilha, livre de sofrer influências externas. Já tem vários países que foram para a direita, seguindo a tendência dos Estados Unidos com [o presidente Donald] Trump, e que estão cortando conquistas sociais. Se isso continuar, a Europa pode virar um condomínio privado sem espaço para a solidariedade”, opina.
Do “Língua Franca”, Capicua elege como faixa preferida a canção “(A)tensão!”, que resume o mundo atual, diz ela. “Os problemas no Brasil e na Europa são parecidos. A pauta é a mesma. Estamos convivendo com falsas democracias e conservadorismo”.