Após recurso do MP, jovem negro reconhecido irregularmente volta a ser preso

Família busca reversão da condenação para Gabriel Pereira Severiano, 29, participar do parto da filha previsto para agosto

Gabriel Pereira Severiano, 29 anos | Foto: Arquivo pessoal

A família de Gabriel Pereira Severiano, 29 anos, tenta reverter a condenação dele a tempo de o jovem participar do parto da filha Beatriz, previsto para agosto. Pai de outras duas meninas, Maria Sophia, 10, e Anna Victória, 6, Gabriel está preso desde abril. Ele foi condenado em fevereiro deste ano a oito anos de prisão por roubo após recurso do Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) questionar a absolvição em primeira instância. A sentença inicial entendeu que o reconhecimento foi feito irregularmente.

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Gabriel foi condenado por supostamente roubar um ônibus na Estrada do Joá, Rio de Janeiro, em 2021. Abordado em um ponto de ônibus por policiais que faziam rondas após o crime, ele foi reconhecido por uma vítima na porta da delegacia, sem que fossem cumpridos posteriormente os parâmetros do Código de Processo Penal (CPP). 

Em 6 de julho de 2023, a juíza Cristiana de Faria Cordeiro, da 13ª Vara Criminal, absolveu Gabriel. Ele chegou a ficar cinco meses preso preventivamente logo após o assalto. A magistrada destacou que a vítima, e única testemunha ocular, não compareceu em juízo. Quanto ao reconhecimento na delegacia, Cristiana escreveu que ele “desobedeceu aos ditames do artigo 226 do Código de Processo Penal”. 

Ela destacou ainda que as imagens da câmera do ônibus mostraram que o assalto de fato ocorreu conforme o narrado pela testemunha, mas que não é possível dizer se é Gabriel quem aparece ali.

Em novembro do ano passado, o MP-RJ apresentou recurso contra a absolvição. O parecer assinado pelo promotor Luiz Antonio Corrêa Ayres diz que havia, sim, elementos suficientes para condenar Gabriel. O documento corroborou a pretensão condenatória de Gabriel em segunda instância.

De forma unânime, os desembargadores da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro acataram o pedido do MP-RJ. Em seu relatório, a desembargadora Kátia Maria Amaral Jangutta reconheceu que o cumprimento das formalidades previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal “constituem uma garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito pela prática de um crime”.

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Contudo, a magistrada considerou suficiente o reconhecimento feito fora do procedimento para condenar Gabriel. O depoimento dos policiais, que sequer cita quais foram as características descritas a eles, também foi ponto central para a condenação.  

Gabriel foi condenado por roubo com agravante de ter sido em concurso de mais pessoas (o assalto foi feito em dupla) e pelo uso de arma. A pena ficou em oito anos em regime fechado.

A decisão é de 28 de fevereiro deste ano e, em 8 de abril, depois do trânsito em julgado, o mandado de prisão foi expedido. Gabriel foi preso no dia 16 do mesmo mês, quando chegava para trabalhar.

Preso no ponto de ônibus

Daniel Pereira Severiano, 27, irmão de Gabriel, diz que a primeira prisão desestabilizou a família. Passar novamente por isso foi avassalador. “É uma coisa que a gente nem pensava em reviver”, diz. Em 2021, a Ponte contou sobre a prisão do jovem. À época do crime, ele trabalhava com a mãe entregando as quentinhas que ela produzia. 

No dia 10 de julho daquele ano, após trabalhar, foi até a casa de uma namorada na Rocinha, na zona sul do Rio de Janeiro. Quando voltava, parado em um ponto de ônibus, foi abordado por policiais militares e levado até a 11ª Delegacia de Polícia da Rocinha. Lá, foi preso em flagrante por supostamente assaltar um ônibus e roubar itens dos passageiros.

O roubo pelo qual Gabriel foi condenado ocorreu em um ônibus da linha 550. O veículo foi abordado perto da Estrada do Joá, na Gávea, por volta das 20h35.

O auto de prisão em flagrante de Gabriel é assinado pela delegada Mônica Silva Areal. No documento, não é dito quantos passageiros estavam no coletivo quando o assalto ocorreu. Apenas uma vítima foi ouvida como testemunha. O motorista do veículo, por exemplo, não foi ouvido. A prisão de Gabriel foi solicitada apenas com esse relato somado ao dos policiais militares que o prenderam, mas que não testemunharam o assalto e teriam o abordado com base em características descritas por transeuntes que sequer foram ouvidos pela delegada.

Testemunhas ausentes

Os policiais militares Alexandre da Silva Santos e Renato de Souza Fernandes, lotados na época no 23 Batalhão da Polícia Militar, contaram versões semelhantes. A dupla contou que foi abordada por uma das vítimas do assalto ao ônibus que informou sobre a situação. Ela teria descrito as características dos suspeitos. Essa pessoa não foi qualificada como testemunha na delegacia.

Os PMs passaram a fazer ronda na região e em um ponto de ônibus da Estrada da Gávea, próximo ao Shopping Fashion Mall, e avistaram Gabriel. Segundo eles, as características batiam com as descritas pelo informante.

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Abordado, Gabriel teria dito que morava no Rio e que estava voltando da casa de uma ficante que morava na Rocinha. Ainda na versão policial, o jovem não sabia informar o endereço da namorada.

Gabriel foi levado à delegacia pelos policiais. Eles informaram que, quando entraram com o jovem na delegacia, uma vítima o apontou como autor do roubo.

O PM Alexandre contou ainda que, na delegacia, um policial civil, que não é identificado pelo nome no boletim de ocorrência, pediu o número da namorada de Gabriel. Ele teria ligado para a jovem que, segundo o PM, disse que não o conhecia.

Reconhecimento irregular 

A única passageira do ônibus ouvida como testemunha contou em depoimento que escondeu o celular embaixo do pé logo que o assalto foi anunciado. Ainda assim, teve o relógio e a carteira levados, segundo ela, por Gabriel.

Depois do assalto, o motorista do ônibus teria parado o veículo na 11ª Delegacia. Lá, ela viu Gabriel e o apontou como um dos assaltantes.

Os itens roubados não estavam com Gabriel, que teve apenas o celular pessoal apreendido. Mesmo assim, a delegada Mônica Silva Areal determinou a prisão em flagrante. 

Não houve menção no registro a um posterior reconhecimento nos moldes do que pede o Código de Processo Penal (CPP). Ao contrário do que foi feito, o CPP, no artigo 226, orienta que a pessoa a ser reconhecida seja colocada com outras que com ela tenham semelhança para que a vítima ou a testemunha façam o reconhecimento. Uma descrição prévia do suspeito também é requerida pelo Código.

A prisão foi tornada preventiva após audiência de custódia. Na decisão, o juiz Pedro Ivo Martins Caruso D’Ipólito escreveu que havia indícios de autoria. 

Denúncia por roubo 

A denúncia por roubo foi apresentada pela promotora Paula da Fonseca Passos Bittencourt, em 29 de julho de 2021, e aceita pelo juiz Tiago Fernandes de Barros, em 10 de agosto daquele ano.

Segundo a denúncia, transeuntes alertaram os policiais sobre o roubo e teriam descrito os suspeitos, “o que permitiu aos agentes da lei identificar o réu e prendê-lo”. Contudo, a promotora não questiona a ausência na menção de mais vítimas ou testemunhas para o caso.

Na primeira vez que foi preso, Gabriel cumpriu a pena no Presídio de Evaristo de Moraes, em São Cristóvão. Em 15 de dezembro de 2021, Gabriel teve a prisão preventiva revogada pela juíza Daniella Alvarez Prado. Naquela data, ocorreria a audiência sobre o caso, mas a testemunha, vítima que estava no ônibus assaltado, não foi localizada. A liberdade do jovem foi requerida pela defesa, já que ele estava há mais de 90 dias preso. 

Nas considerações finais, ao recorrer da absolvição, o promotor Marcelo Fabiano Araújo dos Santos pediu a condenação de Gabriel. Para ele, mesmo sem o testemunho em juízo da única pessoa que teria reconhecido Gabriel, sem a localização da arma supostamente usada no crime, sem os itens roubados terem sido encontrados, havia elementos suficientes para a condenação.

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A defesa de Gabriel anexou ao processo imagens da câmera de segurança do ônibus assaltado. As imagens não estão disponíveis de forma online no inquérito, mas ali é dito que os suspeitos não se parecem com o jovem. A juíza Cristiana de Faria Cordeiro absolveu Gabriel. 

A pedido da Ponte, o criminalista Damazio Gomes analisou o processo de Gabriel. Ele diz que é estranho o jovem ter sido reconhecido por apenas uma pessoa em uma situação de assalto a um ônibus com mais passageiros. 

Gomes concorda com a decisão pela absolvição. O criminalista destaca que a vítima que reconheceu Gabriel não foi localizada mesmo após uma série de diligências com esse objetivo. Ao considerar que o procedimento não foi feito corretamente na delegacia, ele poderia ter sido validado em juízo. Sem isso, as provas são frágeis, avalia.

Damazio destaca ainda que é possível falar em racismo neste caso. “Se ele fosse uma pessoa branca, será que seria reconhecido?”

Luta da família

Camila Pereira Rezende, 40, tia de Gabriel, conta que, após a absolvição, ele estava levando uma vida normal. A família não imaginava que houvesse recurso ou qualquer outra medida judicial que revertesse a decisão. 

A tia diz que Gabriel é uma pessoa tranquila. A vida dele se resumia na rotina do trabalho e em estar com as filhas. Uma das filhas morava com ele e a outra passava os fins de semana na companhia do pai. “A mais nova pergunta todo dia por ele”, diz o irmão, Daniel.

Gabriel e as filhas Anna Victória, 5, e Maria Sophia, 10 | Foto: Arquivo pessoal

Gabriel foi preso novamente quando chegava para trabalhar em um pet shop. “Ele está cumprindo essa pena sem ter feito nada”, diz a tia.

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A família está se revezando nas visitas. Daniel diz que o gasto para custear a despesa fica em torno de R$ 300 a R$ 400, valor que causa um impacto negativo nas finanças da família. 

“O Gabriel não é um bandido. É um trabalhador que infelizmente está sendo acusado de uma coisa que ele não cometeu”, afirma o irmão.

O que dizem as autoridades

A Ponte procurou o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MP-RJ), o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), a Polícia Militar e a Polícia Civil do Rio de Janeiro. Foram solicitadas entrevistas com todos os agentes públicos citados na reportagem.

Por meio da assessoria, a PM-RJ reforçou que Gabriel foi reconhecido por uma vítima. “O homem foi preso em flagrante após reconhecimento presencial da vítima, que afirmou “sem sombra de dúvidas” que ele seria o autor do crime. Ele foi encaminhado para audiência de custódia e teve a prisão em flagrante convertida em prisão preventiva. O caso foi enviado à Justiça”, escreveu a nota.

Em nota, o MP-RJ que o depoimento da vítima e dos policiais que o conduziram à Delegacia “já fornecem ao Ministério Público e ao Estado Juiz elementos suficientes para a deflagração da ação penal e recebimento da denúncia”.

As demais não responderam. O espaço segue aberto.

*Matéria atualizada às 19h do dia 12 de julho de 2024 para incluir a nota da PM-RJ. O texto foi novamente atualizado às 10h do dia 15 de julho de 2024 para incluir nota do MP-RJ.

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