A PM matou Henrique e disse que havia furtado um banco. Mas ele estava a 279 km dali na hora do crime

    Henrique Martinez foi morto em 2017 no sítio da família, em Bofete, onde morava e criava peixes; a investigação, arquivada pela Justiça em agosto do ano passado, foi reaberta

    Henrique Martinez em seu quarto com o cachorro dele, Toby | Foto: arquivo pessoal

    O piscicultor Henrique Martinez vivia em uma casinha na região do Vale Verde, zona rural de Bofete, cidade com pouco menos de 12 mil habitantes no interior de São Paulo, a 279 quilômetros de sua cidade natal, Santos, na Baixada Santista.

    Aos 38 anos, Henrique refazia a sua vida desde 2008 após mais de dez anos lutando contra o vício em drogas. No início da madrugada do dia 20 de junho de 2017, a Polícia Militar colocou fim a essa jornada: Henrique foi morto a tiros na porta de casa. Na casa dos vizinhos, a vinheta da Tela Quente, da TV Globo, anunciava o final do filme daquela segunda-feira, A Espiã que sabia de menos, uma comédia sobre farsas, mentiras e disfarces.

    Tanques de peixes que Henrique criava na propriedade onde vivia em Bofete | Foto: arquivo pessoal

    A versão da PM segue um script bastante conhecido em situações como essa: a de que a vítima teria resistido e disparado contra os policiais, que, sem alternativa, atiraram. Pelos laudos periciais feitos pela Polícia Civil, Henrique foi atingido quatro vezes. A polícia também disse que a vítima estava armada com uma pistola .380 da marca Taurus, com numeração raspada.

    A imprensa divulgou, na época, que Henrique faria parte de uma quadrilha que, cinco dias antes, tinha explodido e roubado caixas eletrônicos de uma agência bancária da cidade. Um dos portais de notícias da região chegou a afirmar que o “suspeito tinha morrido após intensa troca de tiros“.

    Henrique também mantinha uma horta e chegava a comercializar verduras na região | Foto: arquivo pessoal

    A família de Henrique contesta a história toda e afirma que ele não participou de roubo algum, porque no dia do fato estava com o filho na casa da mãe em Santos. Ainda segundo a família, Henrique não tinha armas em casa e teria sido executado pelos policiais. O irmão da vítima, que também é advogado e atua no caso, Humberto Martinez, 39 anos, aponta que Henrique teria demorado para ser socorrido e que o horário da ocorrência informado pelos policiais não bate com o dos disparos.

    Os PMs que participaram da ação são o tenente Fernando Luiz Malagute, o cabo Maurício Lofiego Leite e os soldados Igor José de Almeida e João Paulo Domingues Sarto.

    “Há uma testemunha que conseguimos, e que não foi ouvida pela polícia, que disse que escutou os disparos quando os créditos do filme da Tela Quente estavam passando. Pesquisamos e, naquela data, o programa terminou 00h41. Os policiais informaram que a ocorrência foi à 1h05. Meu irmão foi para o pronto atendimento à 1h28, eles fizeram a comunicação ao Copom quase uma hora e meia depois”, afirma. O boletim de ocorrência foi registrado na única delegacia de polícia de Bofete e concluído às 6h27 pelo delegado Lourenço Talamonte Netto e a perícia foi solicitada aproximadamente no mesmo horário.

    A Justiça de São Paulo arquivou o processo em agosto do ano passado e a família, munida de novas provas, pediu, no dia 31 de janeiro deste ano, a reabertura do caso na Vara Única da Comarca de Porangaba. No dia 19 de fevereiro, atendendo ao pedido do Ministério Público, a Justiça desarquivou a investigação e determinou novo prazo para apresentação de provas.

    Henrique era piscicultor e vivia em Bofete, no interior de SP, desde 2008 | Foto: arquivo pessoal

    “A gente sabe que no Brasil o histórico permanece. A condenação é perpétua. Os policiais realizaram uma incursão sem mandado, sem investigação, sem ordem da Justiça, e executaram meu irmão”, afirmou Humberto Martinez. “A presunção de legitimidade desses policiais foi usada para que eles se escorassem numa mentira”, criticou.

    Humberto também manifesta indignação com relação ao fato de tentarem usar o roubo aos caixas eletrônicos para justificar a invasão da PM na casa do irmão. Isso porque, entre os dias 13 e 14 de junho, data do roubo ao banco em Bofete, Henrique visitava o filho no litoral sul de São Paulo.

    Imagens de câmeras do elevador da casa da mãe da vítima, mostram Henrique com o filho em dois momentos: na véspera do roubo aos caixas eletrônicos, no final da noite, após 22h, e no dia seguinte pela manhã, às 7h30, quando levava o garoto para a escola, segundo relatou o irmão. Segundo informações do portal G1, o crime aconteceu por volta das 4h do dia 14 de junho.

    “As imagens colocam meu irmão a quilômetros de distância da cena do crime. Ele não conseguiria estar nos dois locais ao mesmo tempo”, alerta.

    Noite do dia 13 de junho, véspera do assalto, Henrique está com o filho às 22h04 no elevador | Foto: reprodução
    No dia seguinte, segundo Humberto, Henrique aparece mais uma vez às 7h31, quando levava o filho para a escola | Foto: reprodução

    Humberto incluiu as imagens na petição feita pedindo a reabertura das investigações. “Eu sofro muito vendo essas imagens. Viu o carinho dele com o filho? Em poucos segundos beija, abraça. Meu irmão era um cara bom”, lamenta.

    Ele também afirma que a perícia científica foi incompleta. Tanto que a família contratou um perito particular para fazer o trabalho que deveria ter sido feita pela Polícia Civil. A única coisa que as investigações fizeram, segundo o irmão e advogado de Henrique, foi a reprodução simulada — a reconstituição com todos os envolvidos. Humberto questiona o resultado desse procedimento.

    O perito contratado para o trabalho, Sérgio Hernandéz Saldias, afirma que a versão dos policiais é “mentirosa” e que, além do homicídio de Henrique, os PMs deveriam responder por fraude processual e o delegado por prevaricação (quando um servidor público deixa de cumprir sua função), já que, na visão do especialista, a investigação estaria repleta de lacunas.

    Uma delas diz respeito à localização dos ferimentos no corpo de Henrique. Segundo a versão descrita pelos policiais no boletim de ocorrência, a vítima só poderia ter sido atingida do lado direito.

    Croqui da casa de Henrique e posição dos PMs e da vítima, segundo a versão contida no boletim de ocorrência e contestada pela família de Henrique | Foto: reprodução

    Contudo, há pelo menos um tiro que atingiu a vítima do lado esquerdo na perna, em uma trajetória “de baixo para cima”, como explica o perito.

    Três tiros atingiram Henrique na parte direita do tronco | Foto: reprodução

    Sendo assim, segundo o perito Saldias, há suspeita de que a vítima foi atingida pelas costas, quando já estava caída de bruços no chão, conforme mostra a simulação contida no laudo particular.

    “Os ferimentos encontrados no corpo do Henrique são divergentes com a versão dos policiais. Henrique não morreu no local apontado pelos PMs. Ele foi ferido em mais de um local. Tinha um tiro na perna, ele estava de bermuda e deveria ter um empoçamento de sangue embaixo do ferimento e estava limpo”, explica, ao destacar que, pelo formato do ferimento, o tiro foi a uma curta distância e o chão, sendo de azulejo, deveria ter um vestígio, já que a bala o “transfixou”, ou seja, entrou e saiu do corpo.

    Há um outro disparo, identificado no laudo pericial como nº 3, que foi transfixante e, sendo assim, deveria haver uma marca com o final da trajetória da bala na parede (tecnicamente chamado de “mossa”), mas que não foi encontrada na cena do crime. Isso aumentando a suspeita de que a vítima foi baleada em outro local e depois levada para lá.

    “Se de fato tivesse acontecido da forma como os PMs dizem, as provas teriam comprovado. Mas os policiais mentiram. E por que mentiram? É isso que queremos saber. Basicamente, o depoimento dos policiais é falso. Provavelmente tudo que disseram foi para encobrir um erro deles”, pontuou Sérgio.

    Ainda segundo o perito, não havia motivo para o socorro a Henrique ter demorado, já que o pronto-socorro fica a 7 quilômetros dali. Segundo uma testemunha que ainda não foi ouvida pela polícia, os disparos teriam acontecido à 00h41, mas Henrique chegou ao hospital somente à 1h28. “O que eles ficaram fazendo com ele esse tempo todo?”, questiona o perito.

    Há também um outro elemento levantado pela família e que está sendo contestado pela perícia particular: um pacote de pouco mais de um quilo do que supostamente seria cocaína e que estaria sendo embalada por Henrique, configurando o crime de tráfico, além de uma balança de precisão. “O objeto foi periciado e não estava funcionando. O resultado do exame da substância que existia em maior quantidade deu negativo para cocaína”, explica. Havia 32 gramas de cocaína acondicionadas em pinos plásticos.

    Por fim, Sérgio critica o rumo das investigações, uma vez que, segundo ele, a família pediu ao longo do processo uma série de produção de provas, como, por exemplo, o documento de confronto balístico e todos os pedidos foram negados pela Polícia Civil. “O delegado responsável poderia então incorrer no crime de prevaricação, já que tem obrigação de fazer todas as diligências para o esclarecimento dos fatos”, critica.

    Para o advogado e irmão da vítima, Humberto Martinez, o que mais importa é que os PMs envolvidos no caso sejam expulsos da corporação. “Não importa se esses caras forem presos, não me importo se pagarem nesse plano de vida. O que eu quero é que eles não façam isso com quem não tem condição de fazer o que estou fazendo agora. Não espero justiça, prisão. Só espero que não façam isso com aqueles pobres coitados que não podem lutar. Então eu me sinto na obrigação de tirar a farda deles”, afirma. 

    Outro lado

    A Ponte procurou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo e a Polícia Militar e questionou a versão dos policiais e a suposta falha na apuração pela delegacia local, citada pelo perito contratado pela família da vítima. Também solicitou entrevista com todos os policiais que participaram da ação e com o delegado Lourenço Talamonte Netto.

    Em nota enviada pela assessoria de imprensa privada InPress, a pasta informa que o caso foi registrado pela delegacia local, mas quem coordenou as investigações foi a Delegacia de Investigações Gerais (DIG) de Botucatu. “Foram solicitados perícia ao local, exame necroscópico à vítima, e o Ministério Público e a Corregedoria da Polícia Militar comunicados sobre os fatos. Também foi realizada reconstituição do caso, que contou com a participação dos peritos contratados pela família do rapaz. O inquérito do caso foi concluído e relatado para apreciação da Justiça. A PM também concluiu o IPM e encaminhou à Justiça Militar em agosto de 2017”.

    A reportagem fez um novo questionamento sobre quem era o delegado responsável pela condução da investigação da DIG, mas, até a publicação, não houve retorno.

    O Tribunal de Justiça de São Paulo confirmou o pedido de novas investigações e coleta de provas a partir da alegação de novos indícios. “Foi determinado a remessa do inquérito para a delegacia para a realização de novas diligências”, diz a nota. O caso corre em segredo de Justiça.

    O Ministério Público Estadual de São Paulo também foi procurado pela reportagem e, em nota, afirmou que a promotora do caso, por enquanto, prefere não se manifestar.

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