‘A sociedade compactua com policiais assassinos’: o grito da mãe de mais um jovem negro morto pela PM do Rio

Decisão de júri permite ao policial Alessandro Marcelino responder em liberdade dez anos depois de matar o adolescente Johnatha Lima com um tiro nas costas na favela de Manguinhos. Mãe da vítima, Ana Paula de Oliveira segue em busca de justiça

Ana Paula. mãe de Johnatha, fala após o resultado do julgamento | Foto: Rafael Daguerre/M1508

No último dia 6 de março, o cabo da Polícia Militar Alessandro Marcelino de Souza foi condenado por homicídio culposo — quando não há a intenção de matar — pela morte, com um tiro nas costas, de Johnatha de Oliveira Lima, de 19 anos, durante durante a repressão a um protesto em 2014 na favela de Manguinhos, zona norte do Rio.

Com a decisão, tomada pelo Conselho de Sentença do 3º Tribunal do Júri da Capital, o processo — que já se estende por 10 anos — deverá ser enviado para novo julgamento pelo Superior Tribunal Militar (STM). Enquanto isso, Marcelino continuará respondendo em liberdade.

O resultado revoltou os parentes e amigos de Johnatha. A maioria dos presentes virou as costas para a corte, se recusando a ouvir um poema que a juíza Tula Mello tentava ler após pronunciar o veredito.

“Essa é a resposta que a sociedade dá pra mim? A sociedade compactua com policiais assassinos!”, se indignou Ana Paula de Oliveira, mãe da vítima.

“A culpa é da sociedade desses vermes continuarem matando nossos filhos. E eu aqui, com a dor de ter meu filho assassinado. Meu filho foi assassinado com um tiro nas costas. Essa luta não pode ser só minha. Por que fizeram isso com o meu filho? Acabaram com a minha vida. Acabaram com a vida da minha família”, desabafou.

A reportagem da Mídia1508 registrou o momento. Assista o vídeo:

Manifestação e julgamento

O julgamento teve início na manhã do dia anterior (5/3). Em frente ao prédio do Tribunal de Justiça do Estado de Janeiro (TJRJ), no centro da cidade, dezenas de familiares de vítimas da letalidade policial, a maioria mães, colocaram no chão as fotos de seus entes queridos assassinados.

Durante o ato, Ana Paula disse que lutava por justiça há quase 10 anos e esperava que o policial fosse responsabilizado pela morte do filho:

“É muito tempo para uma mãe que teve um filho assassinado por quem tinha obrigação de garantir a vida dele. O mínimo que eu espero da Justiça é que ela seja justa e igual para todas as pessoas, independente de cor, gênero, religião ou classe”, afirmou, em depoimento à imprensa horas antes do início do julgamento.

Ana Paula de Oliveira, mãe de Johnatha, fala com jornalistas durante o ato em frente ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), na véspera do julgamento, 05/03/2024 | Foto: Rafael Daguerre/M1508

Nove testemunhas foram ouvidas, sendo cinco de acusação e quatro de defesa. As quatro testemunhas de defesa eram policiais militares que participaram da ação que resultou na morte de Johnatha.

Pela acusação, a primeira testemunha a depor foi Glicélia Souza, vizinha e amiga de infância de Johnatha, seguida pela também moradora de Manguinhos Fátima dos Santos.

Já a perita da Polícia Civil, Izabel Solange de Santana, durante o interrogatório, narrou que, das 12 armas recolhidas para perícia técnica (sendo 9 pistolas e 3 fuzis), uma foi compatível com a que atingiu Johnatha.

Segundo dia do julgamento pela morte de Johnatha de Oliveira Lima, 06/03/2024 | Foto: Rafael Daguerre/M1508

A tia de Johnatha, Patrícia de Oliveira, foi a quarta a ser ouvida. Ela contou que ficou sabendo do crime por um primo.

“Foi tudo muito rápido. Recebemos a informação que ele foi baleado nas costas, fui à UPA e disseram que estava morto, sendo que vi policiais circulando no interior da UPA e não haviam socorrido meu sobrinho. Quando fui na delegacia registrar boletim de ocorrência, descobri que policiais que teriam participado da ação prestavam depoimento como auto de resistência”, afirmou. “Se não fosse o braço armado do Estado, ele estava entre nós”.

Patrícia recordou ainda o ativismo de Ana, que se tornou uma conhecida liderança comunitária após o ocorrido:

“Minha irmã criou com muita dificuldade ele e os outros dois filhos. Para uma mulher preta e moradora de favela é muito difícil tudo. Atualmente, ela lidera o movimento Mães de Manguinhos, que presta auxílio para familiares de vítimas da violência assim como a que Johnatha sofreu”, lembrou.

A defesa do policial, sem nenhum tipo de prova, acusou Johnatha de ser traficante — chegando a dizer que Ana Paula deveria usar sua energia para criar um grupo de apoio que acolha jovens e evite que eles entrem para o tráfico. A estratégia já era esperada pela ativista:

“Eu sabia que hoje seria assim, que não só o assassino sentaria no banco dos réus, mas que colocariam o meu filho ali sentado”, declarou, em um depoimento emocionado à 1508.

Contradições da defesa

Entre as testemunhas trazidas para tentar inocentar o réu, estava o ex-PM Marcelo Nicolau de Carvalho, expulso da corporação acusado de participação em milícias. Já a sargento Larissa Elaine da Rocha chegou a ser acusada pelo Ministério Público por falso testemunho durante o julgamento — o que não foi aceito pelo júri. Na audiência, Larissa negou ter visto Johnatha armado. No julgamento, no entanto, ela afirmou que o rapaz portava uma arma e que havia atirado contra os policiais.

O próprio Marcelino deu mais de uma versão dos fatos ao longo do processo. Inicialmente, o cabo havia relatado não ter disparado sua arma na noite em que matou Johnatha. No entanto, após a perícia ter deixado evidente que ele disparou pelo menos sete vezes com uma pistola .40, passou a admitir que efetuou sim os disparos, mas que não teria conseguido ver se havia acertado alguém.

Advogados de defesa e o acusado, o PM Alessandro Marcelino de Souza, condenado por homicídio culposo, quando não há a intenção de matar, pela morte de Johnatha de Oliveira Lima | Foto: Rafael Daguerre/M1508

Questionado no julgamento sobre a contradição, apresentou uma explicação pouco convincente.

“Perguntaram apenas se havia atirado de fuzil e eu disse que não”, afirmou o agente, que antes do assassinato de Johnatha já havia sido preso pelo envolvimento em um triplo homicídio na Baixada Fluminense, o que não o impediu de voltar à ativa. Um ano depois ele desferiu o tiro que matou Johnatha.

Com a confirmação pelo exame de confronto de balística, o policial incorreu em mais uma contradição e, no entender da promotoria, também em um crime: o de fraude processual. Na época, Marcelino apresentou suas armas (um fuzil e uma pistola .40) com cartuchos completos, quando afirmou — em sua primeira versão — que não havia efetuado disparos.

Marcelino disse também que, quando fez os disparos, não havia populares no local. E que teria atirado na direção de uma pessoa que estava junto a um poste. Foi então que a promotoria apontou uma segunda contradição: em depoimento prestado na delegacia, o cabo teria dito que havia cerca de 70 pessoas hostilizando os policiais.

“Não me lembro de ter dito isso. A multidão apareceu depois e atacou a base da UPP [Unidade de Polícia Pacificadora]”, alegou, em narrativa que se choca com a apuração feita pela imprensa à época, que dá conta de que o crime ocorreu em meio a um manifestação dos moradores contra a violência da guarnição.

Em suas considerações, o Defensor Público Daniel Lozoya chamou atenção para as inconsistências nas falas dos PMs:

“No primeiro depoimento deles, eles falam que estava um maior tumulto. Aí chega em juízo muda. Mas por que em juízo mudou? Porque o laudo de confronto balístico deu positivo. A primeira teoria que eles falam é que não tinha nenhum policial atirando. Era confusão. Ia ser um caso de bala perdida. Qualquer coisa, não sei quem atirou, não. Ninguém viu. Não vi nenhum policial atirando” criticou. “Mas como o laudo deu positivo, aí tem que criminalizar a vítima. Tem que falar que ela tava armada. Por que? Porque é o único meio de defesa que eles têm”.

Reforço da impunidade

Para a entidade de defesa dos direitos humanos Justiça Global, a decisão é mais um exemplo do racismo e da impunidade que se verifica nos casos de homicídios de jovens negros no Brasil.

“Impunidade não é falar do policial que atira. A gente tá falando de todo um processo que envolve a própria polícia, o comando das polícias, o governador, o Ministério Público e todo um rol de instituições públicas que deveriam atuar no controle externo da polícia e não fazem”, analisou, em entrevista à reportagem, Monique Cruz, coordenadora do Programa Violência Institucional e Segurança Pública da organização.

Na sexta-feira (8/3), a entidade divulgou em seu site uma nota assinada por mais de 40 coletivos e movimentos sociais prestando solidariedade à Ana Paula de Oliveira e à família de Johnatha e reiterando “o compromisso no enfrentamento à violência policial, com a luta antirracista e pela garantia de direito à vida e por justiça“.

O documento defende que o julgamento de violações de direitos humanos e crimes contra a vida, como os homicídios perpetrados por militares contra civis, não podem ser julgados por um tribunal militar:

“Transferir esses julgamentos para uma instância militar viola as obrigações do Brasil sob o direito internacional de direitos humanos, incluindo o direito a um julgamento, pois os tribunais militares não garantem independência judicial. É importante salientar que os parâmetros internacionais de direitos humanos apontam que a jurisdição militar deve ser excepcional, aplicada apenas aos membros das forças armadas por infrações à disciplina militar”, explica o comunicado, que informa que o Ministério Público e a Defensoria Pública, na condição de assistentes da acusação, deverão recorrer da medida.

O histórico do Superior Tribunal Militar demonstra ser fundada a preocupação de movimentos e entidades quanto à isenção desse tipo de fórum. Um levantamento recentemente feito pela Agência Pública revela que, nos pelo menos 35 casos de mortes de civis por militares que foram a julgamento pela corte entre 2010 e 2020, ninguém foi punido.

A única condenação foi a de oito dos doze militares acusados pelos assassinatos do músico Evaldo Rosa dos Santos e do catador Luciano Macedo, após dispararem 257 tiros em direção ao carro em que o artista passeava com sua família, em abril de 2019, no subúrbio carioca de Deodoro. No entanto, até os réus desse caso ainda se encontram em liberdade. No lance mais recente do processo, em decisão que contraria o laudo pericial juntado pelo Ministério Público Militar, os ministros Carlos Augusto Amaral Oliveira e José Coêlho Ferreira votaram, no último dia 29 de fevereiro, pela absolvição dos acusados pela morte de Evaldo e, no caso de Luciano, pela tipificação de homicídio culposo, o que poderá causar uma redução de até 28 anos da pena.

Mesmo diante da ameaça de ver o assassino de seu filho ser tratado com essa mesma leniência pelo Estado brasileiro, Ana Paula não desiste da sua busca por justiça.

Após o julgamento, no início da tarde de quinta (7), ela já estava novamente em frente ao Tribunal de Justiça, ao lado das mesmas mães e familiares que a apoiaram desde a manhã da terça-feira (5) e a acompanham em sua jornada.

“Nós conseguimos sentar um policial assassino no banco dos réus. A gente sabe que isso não acontece todos os dias, mas nós conseguimos. E nós vamos conseguir mais! Foram muitas mensagens que recebi de ontem para hoje. Foram vocês que conseguiram me levantar para estar aqui hoje, de punho cerrado, exigindo o mínimo. É o mínimo. Esse tribunal de Justiça vai ter que nos enxergar”, disse a ativista sob aplausos.

Ato do dia 07/03/2024, um dia após o resultado do julgamento, mães e amigos foram para frente do Tribunal de Justiça (TJRJ) em repúdio à decisão do caso seguir para Justiça Militar | Foto: Rafael Daguerre/M1508

De preto e ainda abalada, ela fez questão de ler um manifesto, escrito por ela naquele dia, intitulado “Carta de uma mãe para a reflexão de toda a sociedade brasileira“.

“A criminalização da pobreza e o racismo que permeiam o sistema de Justiça fazem com que a palavra de policiais, mesmo que já tenham sido presos, mesmo que já tenha sido expulso da corporação por práticas criminosas, tenha mais validade para um grupo de jurados, representantes da sociedade que nos julgam e nos condenam pela cor da pele e pela classe social”, disse Ana Paula, lendo o texto distribuído aos presentes em folhas de papel sulfite com o nome das Mães de Manguinhos.

Na visão de Fransérgio Goulart, coordenador da Iniciativa de de Direito à Memória e Justiça Racial e um dos ativistas que acompanhou o julgamento, é fundamental que a luta de Ana Paula não pare:

“Só existe essa resistência porque é de fato um projeto coletivo. Por mais que a gente fale que o capitalismo destrói essas possibilidades, acho que hoje é a prova viva disso. Ou seja, o Movimento Mães de Manguinhos ontem fez um ato, na perspectiva atual, muito grande, com outros movimentos sociais presentes”, avalia. “Esse processo é para se destacar muito”.

Publicada originalmente pela Mídia1508

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