“A tortura é inadmissível”, diz presidente da Comissão de Direitos Humanos a alunos agredidos na Faculdade de Medicina da USP

    Para o deputado estadual Adriano Diogo (PT), os depoimentos dos calouros submetidos a trotes humilhantes mostram diferentes formas de tortura. “Ninguém é fascista em meio período”

    Nesta terça-feira (11/11), mesmo dia em que a Ponte publicou reportagem exclusiva sobre os graves atentados aos direitos humanos ocorridos em eventos da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), cerca de 100 pessoas, em sua maioria docentes e alunos da instituição, participaram de uma audiência pública na Assembleia Legislativa sobre os casos de agressões físicas e psicológicas no meio acadêmico e, principalmente, durante as festas de integrações entre veteranos e calouros.

    Segundo o professor de Patologia da Faculdade de Medicina e ex-diretor da Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz (AAAOC) Paulo Saldiva, duas cartas lhe foram enviadas entre segunda-feira, 10, e terça-feira, 11: eram pedidos de auxílio de diretores do Show Medicina e da Atlética. “Reconhecem a existência de excessos e ambos gostariam de pedir apoio e apuração dos fatos”, relatou o professor.

    “Há tempos, desde 2002, escuto relatos bem parecidos. Há necessidade de mobilizar a opinião pública para acabar com essa cultura de violência, que inclui racismo e homofobia. É uma cultura que acaba por virar um currículo oculto.”

    A audiência pública teve início por volta das 15h e contou com a presença do presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alesp, deputado Adriano Diogo (PT), do deputado Marco Aurélio de Souza (PT), e das deputadas Beth Sahão (PT) e Leci Brandão (PCdoB), além da promotora de Direitos Humanos do Ministério Público, Paula de Figueiredo Silva.

    Primeiro convidado a discursar e um dos organizadores do encontro, Ricardo Kobayashi, assessor da Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, mostrou que não são fatos isolados. “Há tempos, desde 2002, escuto relatos bem parecidos. Há necessidade de mobilizar a opinião pública para acabar com essa cultura de violência, que inclui racismo e homofobia. É uma cultura que acaba por virar um currículo oculto.” Kobayashi fez questão de lembrar o caso do calouro de medicina Edison Tsung Chi Hsueh, encontrado morto dentro de uma piscina da universidade após um trote em 1999.

    Para a promotora Paula de Figueiredo Silva, é necessário que toda a comunidade da faculdade seja influenciada pelo debate. “Tomei conhecimento há 2 meses dos casos, com relatos amplos. Mas o que acendeu uma luz vermelha é que não são violações pontuais, mas uma realidade de exclusões voltadas às mulheres e aos homossexuais. Foi instaurado um inquérito civil, um instrumento de investigação. O objetivo é o fortalecimento da cultura de direitos humanos na faculdade”. Para a representante do Ministério Público na audiência, a vítima acaba sendo revitimizada quando expressa sua situação.

    Durante a audiência pública, que durou quase 6 horas, 8 alunos relataram os acontecimentos de que foram vítimas. Deputados e presentes ao evento emocionaram-se com as histórias contadas, que vieram acompanhadas de fotos, gravações e vídeos que comprovam as violências denunciadas.

    “O grande desafio é perder o medo e enfrentar a ditadura. Há [na Faculdade de Medicina] todos os tipos de violação e intimidação, até morte. Mobilizar tanta gente para um assunto que até então não existia, é mostrar que de fato existe.”

    Xingamentos, humilhações e gritos de guerra entoados pelos agressores durante as “festas” puderam ser escutados. Três garotas que estudam na Faculdade de Medicina e fazem parte do coletivo feminista Geni disseram que são tratadas como “loucas e histéricas”.

    Para Ivan Seixas, membro da Comissão da Verdade, o principal desafio é perder o temor da denúncia. “O grande desafio é perder o medo e enfrentar a ditadura. Há [na Faculdade de Medicina] todos os tipos de violação e intimidação, até morte. Mobilizar tanta gente para um assunto que até então não existia, é mostrar que de fato existe”.

    Presidente da Comissão dos Direitos da Pessoa Humana, da Cidadania e Participação das Questões Sociais, o deputado Adriano Diogo pediu desculpas por ser deputado hoje e no passado ter sido estudante da USP e não ter feito nada em relação aos trotes violentos. “Nós temos que trazer agora a cadeia de comando. A tortura é inadmissível, são depoimentos de diferentes formas de tortura. Ninguém é fascista em meio período.”

    A deputada Leci Brandão, que muitas vezes fazia caretas de nojo e repúdio ao que vinha sendo contado, pegou o microfone e se disse “estarrecida” com tal situação. Na mesma linha, Amelinha Teles, feminista e militante há mais de 40 anos, disse ser um absurdo que ocorram situações como essa em pleno século XXI. “O Brasil é o sétimo país com mais assassinatos de mulheres”, frisou.

    Médicos divergem sobre o assunto

    Entre os que defendem o modo como são conduzidos os eventos na Faculdade de Medicina, está o hoje profissional e ex-aluno da Faculdade de Medicina, Reinaldo Morano Filho. Dez minutos depois de sua fala, saiu apressado do debate. Ele disse que o “ressentimento e a mágoa”, são péssimas companhias quando se trata de fazer política. “Essa reunião é essencialmente política. O relatório de que pude tomar conhecimento me parece em alguns momentos muito carregado de ressentimento e mágoa. Esta reunião é amplamente fundamental, mas eu fiz parte do Show de Medicina, eu fiz parte, e posso trazer colegas de faculdade que têm orgulho de terem participado da costura (principal atribuição conferida às mulheres do curso durante a festa).”

    Ao terminar seu discurso, Reinaldo soltou a frase que tem servido de mote para o pacto de silêncio vigente na escola. “O que me preocupa é se, ao jogar a água suja do banho, nós jogamos o bebê junto”. Ou seja, não se deveria denunciar as violências a fim de poupar a instituição.

    “Precisamos rever valores para que os direitos humanos sejam permanentemente respeitados. Nós queremos que o Ministério Público e a Assembléia Legislativa nos ajudem. Os estudantes conseguiram superar o medo das retaliações, o medo de vir a público.”

    O professor Francisco Miraglia, representante da Adusp (Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo), disse que,se houver denúncia contra os direitos humanos e a autoridade não tomar providência, ela estará prevaricando. “Demissão no caso de funcionário e expulsão no caso de aluno. Precisa ser tratado com direito, com clareza, mas precisa ser tratado.

    Um dos membros da comissão que verifica diversas situações envolvendo a Faculdade de Medicina da USP, além de ser médico formado pela instituição, o professor titular Milton de Arruda Martins busca nos valores um novo rumo para a FMUSP. Para ele, é uma questão de respeito e ajuda mútua entre os órgão reguladores.

    “Precisamos rever valores para que os direitos humanos sejam permanentemente respeitados. Nós queremos que o Ministério Público e a Assembléia Legislativa nos ajudem. Os estudantes conseguiram superar o medo das retaliações, o medo de vir a público.” Ao se dirigir aos alunos que contaram sobre as agressões sofridas, Arruda Martins disse que sentiu “orgulho” de tê-los no corpo discente.

    Ao final, cerca de 40 estudantes que permaneceram no plenário gritaram por 3 vezes: “A nossa luta é todo dia, contra o racismo, o machismo e a homofobia”.

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