‘A transição me salvou e isso reflete na minha profissão’

    Homem trans, negro e psicólogo, Pedro tocou pela primeira vez no Carnaval de rua de São Paulo no bloco ‘Unidos da gandaia’, no bairro da Pompeia

    Foto: Daniel Arroyo/ponte.org

    O processo de transição de Pedro Martins, 27, não foi fácil. “Ser mulher era uma coisa muito difícil, era um peso muito grande. Mas o masculino em mim sempre foi muito reprimido. Lá atrás, quando eu me lia como lésbica, a primeira coisa que a minha família me falou foi ‘ok, beleza você ser lésbica, mas não vai cortar o cabelo, não vai se transformar em menino agora’”, conta o jovem.

    Quando entendeu sua identidade de gênero, Pedro se isolou de tudo e parou todas as atividades que vinha realizando. Seu maior medo era não ser aceito pela família e pelos amigos. Ser invisível para a sociedade foi a solução temporária para fugir da transgeneridade.

    Foto: Daniel Arroyo/Ponte.org

    Em outubro de 2017, durante o segundo encontro de uma oficina de expressão corporal e subjetividade para pessoas trans, Pedro usou pela primeira vez o seu nome social, deixando de lado o nome de registro durante a apresentação. “Eu senti vontade que todas as pessoas me chamassem assim, eu não queria usar o nome de registro em determinados lugares e Pedro em outros. Queria ser Pedro em todos os lugares”, afirma.

    Com a certeza de que é um homem trans, Pedro quis mudar o seu nome nas redes sociais, mas antes precisava contar para sua mãe como gostaria de ser tratado daquele dia em diante. Em uma viagem em novembro, Pedro conversou com ela. A primeira reação de Josefa Maria da Silva, 58, foi de negação, dizendo que seria muito difícil. Mesmo não aceitando, Josefa chamou o filho três vezes seguidas pelo nome que ele havia escolhido. “Dois minutos depois, a gente estava na água, e ela me chamou de Pedro por três vezes. Foi uma experiência muito bonita, muito significativa”, conta Pedro.

    Foto: Daniel Arroyo/Ponte.org

    Apesar de não haver diálogo com sua mãe, a relação com a sua irmã, Andrea Maria da Silva, 38, e a sobrinha, Jennipher Piovani da Silva Correia, 18, é diferente. “Minha irmã e a minha sobrinha me perguntam mais, é com elas que eu mais falo das minhas questões. Recentemente eu troquei meus documentos, pedi para incluir meu nome social, então elas foram perguntando como que eu ia fazer isso. A minha sobrinha sempre está comigo nesses momentos, ela foi comigo no dia de tirar o RG”, pondera.

    Dois meses depois de usar o nome social pela primeira vez, Pedro começou as sessões de hormonioterapia. “Com o passar do tempo, fui cortando o cabelo e tomando hormônio”, disse Pedro.

    Antes de assumir a transexualidade, o consultório de Pedro vivia vazio. Ele se formou em Psicologia no Centro Universitário São Camilo. O primeiro ano foi um desafio, Pedro atendia apenas uma pessoa. “Quando você não se aceita, você não se aceita com o mundo, você não se aceita com as coisas que nele existem. Era muito difícil estar e ocupar esses espaços, ocupar esse espaço do meu consultório. Eu me sentia uma pessoa falsa, se eu não conseguia dar conta de mim, como eu ia ajudar qualquer pessoa? Oferecer uma escuta verdadeira para as pessoas que estivessem passando por problemas quaisquer?”, argumenta.

    Hoje ele realiza vários atendimentos, muitos deles de pessoas trans. “Muitos dos meus pacientes vem de uma plataforma chamada Transerviços. A galera que tem me indicado, não indica só pra pessoas trans, mas também para pessoas cis. É dessa forma que a minha clínica vem crescendo, e eu tenho crescido junto, porque agora eu tenho me sentido mais vivo e mais apto para dar conta das questões”, conta.

    Bloco Unidos da gandaia

    No mesmo período que iniciou a transição, Pedro procurou locais para que pudesse expressar sua militância. À época, se identificava como lésbica e sentia falta de um grupo em que pudesse ter feminismo, negritude e sexualidade juntos. Foi quando conheceu o projeto “Tô de Chico”, que traz no nome uma homenagem ao cantor e compositor Chico Buarque. Com encontros no Roda Viva Bar, o projeto debate temas como Violência Contra a Mulher, Relacionamentos Abusivos, Mulher LGBT e Mulher no Esporte, e busca sempre um público plurigênero para compartilhar experiências e percepções, e refletir sobre as implicações de estereótipo, preconceito e desigualdade.

    Foto: Daniel Arroyo/Ponte.org

    “Foi por intermédio do Roberto Biela, do Roda Viva Bar, que acabou se tornando um grande amigo e professor de canto e pandeiro, que eu conheci o ‘Tô de Chico’. Fui em uma reunião e adorei. A primeira impressão que eu tive foi de um grupo acolhedor e democrático. Nesse primeiro encontro eu só fiquei observando, não participei. Minha sobrinha e o namorado dela foram comigo. Eu saí de lá querendo participar do grupo, querendo conhecer aquelas pessoas que organizavam. Entrei em contato pelo Facebook diretamente com a Paula Margarido, perguntando se tinha espaço para eu ajudar, e fui muito acolhido por ela e pela Verônica Borges”, relembra Pedro.

    Foi Verônica quem apresentou Pedro aos blocos Unidos Venceremos e Unidos da Gandaia. “Quando cheguei lá, a Verônica me apresentou para galera, mas ela não dizia meu nome. Daí ela me apresentou pelo meu nome de registro para o Mestre do bloco. Eu falei que queria tocar caixa, aí ele perguntou se eu tocava algum instrumento. Quando falei que tocava bateria e que tinha familiaridade com a percussão, ele concordou em me aceitar. Já no ensaio, fui cumprimentando a galera, mas ninguém perguntava meu nome. Aí quando acabou o ensaio a gente foi ensaiar separadamente, com outro menino das caixas, ele fez a pergunta que eu estava temendo: qual o seu nome. Respondi que poderia parecer estranho, mas meu nome é Pedro”, relembra. O novo amigos perguntou a Pedro como ele queria ser chamado e assim ele foi se familiarizando e se apropriando do nome que para ele fazia sentido. “Eu achei muito legal, achei que ia ter que me explicar. Me senti mais seguro, isso foi no meu primeiro dia, no meu primeiro contato. Nos próximos eu já passei a me apresentar como Pedro e fui muito acolhido”, relata.

    Pedro e a irmã que foi prestigiá-lo no bloco | Foto: Daniel Arroyo/ponte.org

    Desse dia em diante, Pedro passou a fazer parte do grupo e ensaiar para o Carnaval de rua. No desfile de sábado (10/2), uma dupla realização: além de tocar pela primeira vez em um cortejo, Pedro contou com a presença da família. “Minha irmã e a família do meu cunhado vieram me ver. Quando saímos de lá minha irmã ficou falando como ela sentia orgulho de mim, de ver como as pessoas me tratam como eu respeitosamente peço, no meu nome social e no masculino”, completa.

    Diálogos Transversos

    Pedro mantém o canal Diálogos Transversos no YouTube desde dezembro de 2017, com Ierê Papá, falando sobre as questões de vivência trans. “Minha família e amigos vêm assistindo ao canal. Uma amiga me falou que não sabia quanto era difícil pra mim a questão do nome, não sabia como isso era importante. Minha tia e minha prima, depois que assistiram o canal, passaram a me chamar de Pedro”, conta.

    O canal se tornou uma terapia para Pedro, em que ele consegue compartilhar todos os sentimentos em relação à transgeneridade. É pelo canal que ele percebe o impacto das pessoas ao seu redor. “As pessoas me falam que percebem como eu tô melhor, como estou mais seguro no mundo. A cada vídeo que a gente grava, a cada pessoa que nos dá um retorno, a gente percebe o quanto essa construção está sendo coletiva”, afirma.

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