Estupro e morte de Lucía Pérez, em 2016, internacionalizou movimento Ni Una Menos; feministas chamaram absolvição de ‘machista’, mas especialista em direito penal afirma que é ‘consistente’
No último 25 de novembro, quando se comemora o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra Mulher, o movimento feminista argentino sofreu um duro revés. Responsáveis por julgar o caso Lucía Pérez, jovem estuprada e morta em outubro de 2016, os juízes Aldo Daniel Carnevale, Juan Facundo Gómez Urso e Pablo Javier Viñas do Tribunal Oral nº 1 de Mar de Plata, cidade da Província de Buenos Aires, consideraram inocentes por unanimidade os acusados Matías Farías, Juan Pablo Offidani e Alejandro Maciel.
Farías e Offidani, no entanto, foram condenados a 8 anos de prisão pelo delito de venda de entorpecentes com o agravante de venda para menor de idade, uma vez que Lucía tinha apenas 16 anos quando foi drogada, estuprada e empalada. Maciel foi absolvido de todas as acusações. O feminicídio de Lucía motivou a gigantesca mobilização conhecida como Primeira Paralisação Nacional de Mulheres, impulsionada pelo movimento NiUnaMenos que se internacionalizou. O Ni Una Menos foi criado em março do ano anterior justamente para denunciar violências contra as mulheres.
Na época dos fatos, a promotora Maria Isabel Sánchez chegou a dizer que além da intoxicação pela alta dose de cocaína, é bem possível que Lucía tenha chegado ao ápice da dor provocada pelo estupro e empalamento e acabou tendo uma parada cardiorrespiratória. Ainda na versão da acusação, os criminosos teriam banhado o corpo dela já sem vida e levado até um atendimento de saúde na Praia Serena, bairro de Mar Del Plata (província de Buenos Aires) para simular uma simples overdose. “Nunca vi um conjunto de fatos tão aberrantes”, disse Sánchez à época dos fatos.
A repercussão do caso sensibilizou mulheres em outros países na América Latina. No Brasil, um protesto aconteceu na escadaria do Theatro Municipal, no centro de São Paulo, além de a hashtag #NiUnaMenos ter viralizado nas redes sociais.
Na sentença, os juízes alegam que a acusação “não pôde provar que Lucía foi abusada sexualmente num contexto de violência de gênero” e acusam a promotora responsável María Isabel Sánchez de não atuar de “maneira objetiva, recorrendo a conceitos destinados a provocar um efeito determinado ante um auditório particular” ao que chamaram de uma “desenfreada atividade por buscar uma ‘sanção exemplar'”. “Somos juízes, não carrascos, e é a lei, não a política, que rege nossa função”, declararam.
Em nota intitulada “Não esquecemos, não perdoamos: contra a revanche misógina da justiça patriarcal, colonial e racista”, o coletivo feminista Ni Una Menos lamentou a decisão dos juízes. “Mataram Lucía Pérez duas vezes. A primeira, os executores diretos; a segunda, quem os absolveu e, assim, negaram que dois adultos que fornecem cocaína a uma adolescente são responsáveis de abuso e feminicídio”. E enfatizaram: “Foi feminicídio. […] Querem desaparecer com todos os sentidos que elaboramos desde as ruas daquilo que significam as violências machistas nas vidas concretas”.
Em ato simbólico convocado por Ni Una Menos em frente à Corte Suprema da Nação Argentina na última terça-feira (27/11), a advogada feminista Silvina Bentivegna não escondeu sua indignação: “O poder judicial é inimigo. Todos tem que ir presos, os juízes também. Temos que seguir mobilizadas até que todos estejam na cadeia”, afirmou. De lá, clamando por “rebeldia constante contra a violência machista”, as manifestantes marcaram uma assembleia para o próximo dia 3 de dezembro que visa a coordenar uma paralisação de mulheres para exigir justiça por Lucía. “Lucía Pérez, presente! Hoje e sempre!”, gritaram.
Consultado pela Ponte para a analisar a íntegra da sentença, Nelson Vicente, advogado especialista em direito penal, é categórico: “a decisão judicial é consistente. Os juízes utilizaram o que tinham que usar, que são as provas de juízo, não o que dizem os sociólogos ou os psicólogos sobre se uma garota de 16 anos é vulnerável ou não. O que se provou aqui, com as mensagens de celular, com as declarações das testemunhas, é que não há nada que comprove que a relação [entre Lucía e os acusados] não tenha sido consentida. Os juízes não podem inventar provas”.
Contestado se o simples fato de um maior de idade se relacionar com uma adolescente não pode ser visto como uma forma de coação, Vicente respondeu: “pela lei argentina, um menor de [idade, mas já com] 16 anos já pode até votar. É um ‘menor adulto'”.