Ação de ‘Corolla misterioso’ aponta formação de milícia na zona sul de SP

    Reportagem teve acesso a áudios, fotos, vídeos e mensagens de texto de Whatsapp que relatam tiros na favela e agressões na disputa entre supostos milicianos e traficantes

    ‘Corolla misterioso’ em dois locais do extremo sul de SP | Foto: Reprodução Whatsapp

    A forma de agir de um grupo na região do Grajaú, periferia da zona sul de São Paulo, indica a possível formação de uma milícia para supostamente combater o tráfico de drogas. A Ponte teve acesso a detalhes de ações deste grupo durante um mês, entre maio e junho do ano passado.

    A reportagem obteve com exclusividade 35 áudios, além de fotos, vídeos e mensagens de texto trocadas pelo Whatsapp que descrevem a ação criminosa dos supostos milicianos que, segundo fontes ouvidas, se apresentam como policiais civis. Utilizando um Toyota Corolla cinza modelo de 2001, o grupo teria cometido agressões contra adolescentes e efetuado disparos em favelas da região para se impor.

    Embora os documentos tenham sido acessados pela reportagem apenas entre maio e junho, há relatos de ações dos supostos milicianos no Corolla antes e depois do período que a Ponte acompanhou.

    Em um dos primeiros dias de acompanhamento das ações, em 16 de maio, a Ponte perguntou para a assessoria de imprensa da SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo) se o Corolla pertencia à Polícia Civil paulista. Não houve retorno para este questionamento. No entanto, a reportagem apurou que o carro não é da polícia. Embora o Corolla cinza tenha placas de São Paulo, está no nome de uma empresa localizada no interior do estado. O veículo está licenciado, sem nenhuma restrição.

    Primeiro caso

    Em uma das ocorrências, na tarde de 15 de maio deste ano, um comerciante de um bairro a 4 km do Terminal Grajaú – as localizações serão feitas pela reportagem sempre com base no terminal de ônibus do distrito – relatou que o Corolla cinza chegou na região, um homem desceu do veículo, deu um golpe com o cabo de uma arma de fogo na cabeça de um adolescente e o levou para dentro do carro.

    Pouco depois da abordagem, um homem vestido com roupa de frentista suja teria saído do veículo, ido a um terreno baldio no bairro e pego uma sacola com drogas que seriam vendidas na região.

    Depois de localizar os possíveis entorpecentes, os homens saíram com o veículo e levaram o adolescente, que foi liberado cerca de duas horas depois, por volta das 17h, sem ser conduzido à delegacia ou fazer qualquer tipo de registro formal.

    Saindo do local, o mesmo carro teria ido em outro ponto de tráfico de drogas, em um bairro a 6,3 km distante do Terminal Grajaú — 7,2 km de distância do primeiro ponto. Nesta outra “boca” – como são conhecidos os locais de venda de entorpecentes-, duas mulheres teriam ido antes e, em seguida, chegaram dois homens no Corolla cinza para pegar as drogas que seriam comercializadas.

    A reportagem apurou que um traficante da região chegou a falar com um dos ocupantes do veículo, na tentativa de negociar a devolução das drogas. O entorpecente, no entanto, não foi devolvido para a venda ilegal porque os homens teriam dado para “uns noias” (dependentes químicos).

    Neste dia, não houve nenhum registro de ocorrências com drogas em nenhuma das delegacias próximas à região: 85º DP (Jardim Mirna), 101º DP (Jardim das Imbuias) e 25º DP (Parelheiros). Essa informação foi confirmada pela Delegacia Geral da Polícia Civil em dezembro de 2018.

    Tiros na favela

    A disputa entre os supostos milicianos e os possíveis traficantes da região do Grajaú também coloca os moradores de bairros na linha de tiros. Um dia antes de o grupo tomar as drogas de forma ilegal, por volta das 12h do dia 14 de maio, um homem alto, pele parda e magro, vestindo uma camiseta branca da seleção da Alemanha, calça jeans azul, tênis da Nike vermelho e branco e boné da Calvin Klein cinza havia ido em uma favela no mesmo bairro distante 6,3 km do Terminal Grajaú.

    O homem teria falado que queria comprar cocaína e começou a fazer outros questionamentos. Os áudios obtidos pela Ponte apontam que um dos traficantes que estava no local segurou o homem e, armado com uma foice, começou a questionar se ele era “ganso” – termo usado para designar pessoas que levam informações para polícia.

    Foice usada pelo traficante para ameaçar suposto “ganso” (informante da polícia)

    O suposto “ganso” teria negado estar a serviço de policiais, alegando que havia acabado de deixar o sistema carcerário e era usuário de drogas. Enquanto estava sob domínio do traficante, o telefone celular dele – um aparelho LG Dual SIM, que custa em torno de R$ 90 – começou a receber ligações de um número da operadora Tim e com o contato salvo apenas como “P”.

     

    Contato estava salvo como “P”

     

    Ainda de acordo com as informações do áudio, o traficante pediu para o homem atender o celular e colocar no viva voz. O suposto “ganso” desligou e teria dito que era mensagem, e não ligação. “Percebi que era um código com os policiais”, disse o traficante no áudio obtido pela Ponte.

    Depois das ligações recusadas, pelo menos dois homens armados teriam invadido a favela e um efetuou um disparo na rua, sem nenhum alvo. Neste momento, os traficantes teriam saído correndo levando o celular do suposto “ganso”. O homem possivelmente a serviço dos ocupantes do veículo conseguiu escapar e o grupo teria fugido no mesmo Corolla cinza.

    Ação um mês depois

    Depois que a Ponte questionou oficialmente se o veículo era da polícia, o grupo teria ficado por 28 dias sem aparecer na região. Até que por volta das 11h do dia 12 de junho, os homens do Corolla cinza apareceram novamente. Desta vez, os ocupantes do veículo teriam pego pelo menos dois adolescentes de um bairro a 4,3 km do Terminal Grajaú e os torturaram para apontar onde eles encontrariam drogas.

    Dois dias depois, o veículo teria ido a um bairro a 6,7 km do Terminal Grajaú por volta das 15h e, meia-hora depois, pego um jovem de um bairro distante 4 km. O jovem teria sido questionado sobre possíveis nomes de traficantes e pontos de armazenamento e venda de drogas. Como o abordado não soube dar informações para o grupo, foi liberado e o homem foi embora com o Corolla cinza.

    A reportagem apurou que houve três registros de flagrante de tráfico de drogas no 25º DP (que fica a cerca de 20 km do local das ocorrências) e um de ato infracional com apreensão de dois adolescentes com entorpecentes no 85º DP (que atende a região). No dia 14 de junho, houve apenas um registro de ato infracional e um flagrante de tráfico de drogas no 85º DP.

    Dono do carro

    A empresa proprietária do veículo está localizada no interior de São Paulo, existe desde abril de 1999 e tem dois sócios. A reportagem entrou em contato com a empresa e foi informada que os dois sócios (donos do carro) não são mais donos do estabelecimento “há quase 20 anos”.

    Os novos donos da empresa não souberam informar o paradeiro dos antigos donos do estabelecimento e disseram que o Corolla não é mais utilizado pela empresa. A reportagem não conseguiu contato com os antigos sócios responsáveis pelo veículo.

    Outro lado

    A Ponte questionou a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, do Governo João Doria (PSDB), se a pasta e a Polícia Civil têm conhecimento da suposta ação de milicianos no Grajaú, além de ter perguntado sobre possíveis investigações contra o grupo e o carro que eles utilizam. Em nota, as polícias Civil e Militar informam que “realizam operações constantes na região citada pela reportagem. Até o momento, não houve registro de denúncia ou ocorrência sobre a ação dos grupos mencionados. Em relação ao veículo, não foi encontrada qualquer irregularidade. As corporações permanecem à disposição da população para o registro de denúncias”.

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