Tentativa de ocupação de prédio da USP acaba em detenções, depredação e bombas. “Bota pra dormir” ouviu um dos alunos antes de desmaiar e acordar algemado
Por Nyle Ferrari, do Jornal do Campus*
“Sai da minha casa.” Essa era uma das frases que estudantes de rostos cobertos berravam contra a Tropa de Choque da Polícia Militar à medida que seus homens avançavam com bombas de efeito moral e de gás lacrimogêneo pelo corredor G do Conjunto Residencial da USP (CRUSP), na noite do dia 16 de junho.
Perto dali, o estudante Davi Tochetto perdeu a consciência graças a um “mata-leão” que recebeu de um policial militar que o deteve sem dar explicações. Em pânico e sem enxergar bem, já que havia perdido os óculos no meio da confusão, Davi reagiu instintivamente. “Bota pra dormir” foi uma das últimas frases que ouviu antes de desmaiar e então acordar algemado. Ele foi um dos cinco detidos naquela quinta.
Durante a tarde daquele dia, alunos dos movimentos negro e indígena ocuparam a área externa do novo prédio da reitoria, onde organizaram uma atividade para debater cotas e decidir os rumos da greve. Dentro do espaço, o Conselho Universitário se reunia para discutir propostas de inclusão na USP. Alunos interromperam o encontro, que foi finalizado sem nenhuma deliberação, e foram expulsos com spray de pimenta. Para evitar outra tentativa de ocupação do prédio, a Polícia Militar formou um cordão de isolamento na entrada da reitoria, e lá permaneceu até à noite.
No começo da noite, ainda no estacionanmento da reitoria, foi realizada uma assembleia geral, às escuras e na presença da Polícia Militar – a luz não foi ligada para desestimular o evento, o que não surtiu efeito. Participaram aproximadamente 400 alunos e os ânimos estavam exaltados. Seria decidido, entre outras coisas, se os estudantes ocupariam ou não o prédio da reitoria, assim como os blocos K e L.
Atualmente, tais blocos são usados pela administração da Universidade. Porém, a utilização deles para a moradia estudantil é uma pauta histórica do movimento. Apesar de hoje pertencentes à reitoria, os blocos K e L fazem parte do Conjunto Residencial (CRUSP), moradia coletiva destinada a estudantes de baixa renda.
Às escuras
O clima da assembleia estava tenso. Boa parte dos presentes concordou em não ocupar o prédio da reitoria – “com a PM aqui, isso é suicídio. Vocês têm peito de aço?”, argumentou um dos alunos junto à mesa. Para fazer a contagem dos votos sobre a ocupação dos blocos K e L, integrantes dos movimentos negro e indígena que conduziam a assembleia precisaram separar os favoráveis e os contrários em lados opostos.
Enquanto braço por braço era contado, estudantes trocaram farpas. “Daquele lado ali, só tem gente que vai voltar para a casa de Uber”, satirizou uma das alunas favorável à ocupação dos blocos. “Respeita a gente, meu. Ninguém está desrespeitando você aqui”, retrucou outra estudante, contrária.
Por 11 votos (192 contra a ocupação e 181 a favor), a ocupação dos blocos K e L do CRUSP foi rejeitada. Àquela altura, esgotava-se o prazo dado pela PM para que os alunos deixassem o estacionamento da reitoria. Com o avanço dos policiais, a assembleia precisou ser encerrada às pressas.
Um grupo de estudantes favorável à tomada dos blocos se retirou com os ânimos exaltados. Eles chamaram todos ali presentes para que fossem até a frente do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo “terminar a assembleia”. O local era estratégico, já que próximo do CRUSP. O que se veria depois é que os apoiadores da tomada dos blocos K e L não buscavam votar novamente. Estavam convictos de que ocupariam esses espaços, então se reuniram para fazê-lo.
O saldo da noite foram cinco detenções, um carro da Guarda Universitária destruído, danos à porta do bloco K e uma noite de muito pânico nos corredores do CRUSP.
Pedrada e bomba
Por volta das 22h, estudantes danificaram um carro da Guarda Universitária e tentaram ocupar um espaço atualmente usado pela administração da reitoria – o chamado “bloco K”. Policiais lançaram bombas para dispersar cerca de 50 alunos, que responderam com pedras e xingamentos. Instintivamente, a maioria dos estudantes fugiu para o corredor G do Conjunto Residencial, a poucos metros do bloco K. Alguns moradores do CRUSP que encabeçavam a tentativa de retomada do espaço se mantiveram incólumes. “Sem correr, sem correr! Estamos em casa”, gritou um deles. “Aqui na USP é bomba, lá na favela é bala.”
Mesmo depois de evitada a ocupação do prédio e contida a destruição do carro da Guarda, as bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral continuaram, assim como as pedradas e os xingamentos por parte dos alunos, em sua maioria de rosto coberto. “Sai da minha casa”, “Fora, PM”, “Fascistas”, “Vermes malditos” eram algumas das frases que ecoavam pelos corredores.
Em meio à fumaça, enquanto tossiam, enxugavam os olhos e encharcavam de vinagre as roupas que cobriam seus narizes, manifestantes conversavam entre si, indignados. “Mano, eu não acredito que isso tá acontecendo”, disse um deles. Abordado pela repórter, o aluno respondeu: “essa é a minha casa. Eu não vou deixar a PM fazer o que quiser aqui.”
Os arredores do CRUSP estavam cercados. Para evitar o avanço da Polícia pelos demais corredores do Conjunto Residencial, estudantes formaram barricadas improvisadas com sacos de lixo, papéis e o que encontraram por perto. Eram cerca de 23h quando a Tropa de Choque chegou.
“Acorda, CRUSP! O Choque tá aqui! O Choque tá no CRUSP!”, berrou uma das lideranças femininas da ocupação, que estava à frente do confronto. A primeira bomba foi lançada pela Tropa e, daquele momento em diante, pânico. Para fugir da fumaça e também dos policiais, que avançaram para dentro do Conjunto Residencial, os estudantes correram para os apartamentos. Até então, a PM havia se mantido nos arredores e disparava os artefatos à distância.
Como observou a reportagem, algumas das bombas foram, inclusive, lançadas na área de acesso aos apartamentos, onde também vivem mães e crianças. Estudantes se esconderam nos quartos, nas cozinhas e nos corredores das moradias.
Depois da dispersão, os policiais recuaram para a área externa do CRUSP, mas permaneceram em formação. As bombas diminuíram, assim como as pedradas e os xingamentos, mas o conflito se estendeu pela madrugada.
Por volta das 2h, manifestantes deliberaram que não tentariam mais, naquela noite, ocupar os blocos. A Polícia Militar recuou, apesar de permanecer em alerta, e nos dias posteriores marcaria presença por todo o campus.
“A gente vai dar um passeio”
Naquela mesma noite, perto dali, estudantes foram detidos e encaminhados para a 91° DP. De acordo com a Secretaria da Segurança Pública (SSP), foram quatro detenções – no entanto, o Jornal do Campus ouviu relatos de cinco alunos que alegaram terem sido levados pela PM. A nota da SSP comunica, ainda, que um boletim foi registrado por dano qualificado e esbulho possessório (invasão com uso de violência). Eles foram liberados pela madrugada.
Victoria Ribeiro caminhava na companhia de colegas pela Praça do Relógio, nas proximidades do CRUSP, quando perceberam o conflito. “Nós queríamos saber o que estava acontecendo.” Ela e outros alunos foram avistados por policiais militares, que começaram a persegui-los. Lançaram bombas para tentar impedir que os estudantes corressem para a Escola de Comunicação e Artes (ECA). Já na ECA, Victoria e mais dois alunos foram detidos violentamente.
“Eu estava sozinha na viatura quando perguntei para onde estávamos indo. O PM me disse “a gente vai dar um passeio”. Fiquei desesperada”, diz a estudante. “Esse “passeio” durou cerca de cinco minutos, com ele dirigindo por ali. Até que nos colocaram todos juntos em uma única viatura. Nesse momento, fiquei um pouco mais calma. Até então, não sabia o que poderia acontecer comigo.”
Victoria também conta que viu seu colega, Davi Tochetto, receber um “mata-leão” da PM. Tentou alertar o policial que o estudante tinha asma, mas o estrangulamento continuou até que Davi perdesse a consciência. Amanda Monteiro também foi detida junto a Davi e Victoria. A estudante ficou com hematomas por conta da abordagem violenta que recebeu.
Os alunos de pedagogia Steve Silva e André Zampronio também estavam nas redondezas do CRUSP, embora longe do local onde ocorria a violência policial, quando foram abordados. Relatam que policiais chegaram a apontar armas para eles e os levaram até outros PMs. Steve e André foram filmados e acusados de depredar o carro da Guarda. Negaram ter participação no episódio, mas acabaram na 91° DP.
Victoria comenta: “Os cinco são acusados pelas mesmas coisas, mas foram detidos em locais diferentes, sem flagrante. É absurdo.”
Procurada pelo Jornal do Campus, a Secretaria da Segurança Pública diz que “não recebeu nenhuma denúncia de excesso policial.” Sobre o número de detenções que ocorreram na noite do dia 16, o órgão nega que foram cinco estudantes e reforça terem sido quatro. Segundo a SSP, os alunos foram detidos em flagrante; mas o órgão não respondeu à pergunta sobre a existência de provas. A nota ainda diz que não foram usadas balas de borracha – as informações sobre a utilização delas foram do Sindicato dos Trabalhadores e do DCE Livre.
*A matéria foi originalmente publicada no Jornal do Campus