Ao menos 26 universidades de 13 estados brasileiros tiveram relatos de ação contra supostas campanhas eleitorais irregulares; há registro de evento ‘antifacista’ cancelado por determinação da Justiça
Uma série de universidades brasileiras estão sendo alvo de ações de policiais e TREs (Tribunais Regionais Eleitorais) para fiscalizar supostas propagandas eleitorais irregulares. Desde o meio desta semana, que antecede o segundo turno das eleições presidenciais de Fernando Haddad (PT) e Jair Bolsonaro (PSL), os relatos têm se espalhado pelas redes sociais com denúncia do que os estudantes e professores chamam de censura.
Um dos casos que mais chamou a atenção foi o que aconteceu na Faculdade de Direito da UFF (Universidade Federal Fluminense). Uma faixa com os dizeres “Direito UFF Antifascista” foi colocada na fachada da instituição de ensino, mas a Justiça mandou que ela fosse retirada. A ordem foi atendida, mas estudantes colocaram outra no lugar com a palavra “censurado”. A decisão teria sido tomada por conta de denúncias apontando o conteúdo como de propaganda eleitoral contra o candidato Bolsonaro.
Outro fato também aconteceu na UFF. A professora de física do IFF (Instituto de Física), Juliana Rocha Tavares foi dar uma aula usando uma camiseta com a estampa #EleNão. Ela conta que, no meio da aula, a comunicaram dizendo que fiscais do TRE estavam passando nas salas de aula. “Recomendaram que eu me escondesse no banheiro. Na hora, fiquei atordoada e acabei me escondendo mesmo. Deveria ter permanecido na sala e bancado a minha posição, afinal, eu não estava fazendo nada de errado”, afirma a professora.
Uma aluna, então, a emprestou uma camisa e ela voltou pra sala. “Expliquei o ocorrido para os alunos, comentei um pouco a respeito da situação política do nosso país e prossegui com a aula”, explica. No dia seguinte, chegou uma denúncia formal contra a professora no instituto. Nela, Juliana é acusada de estar promovendo propaganda política irregular. Fiscais do TRE marcaram uma reunião com a professora no instituto e, segundo ela, foram “super gentis e educados” ao apresentarem a denúncia.
“Esclareci sobre tudo o que havia ocorrido e o fiscal disse que a denúncia seria arquivada, já que não havia provas contra mim”, afirmou a professora. Ela também perguntou para os fiscais se poderia continuar usando blusas com dizeres como Mulheres contra o fascismo. “Eles disseram que isso poderia ser entendido como propaganda subliminar”, diz a docente. “Estou me sentindo acuada, limitada, cerceada”, desabafa.
Os casos tem levado temos aos alunos. De acordo com a estudante de História da UFF Lavinia Martins, de 20 anos, coordenadora e políticas institucionais do Centro Acadêmico Carlos Marighella, os alunos estão com medo de fazer qualquer tipo de debate sobre política na faculdade porque podem ser denunciados a qualquer momento. “A gente não pode debater nada de cunho político. O problema deles não é que a gente fale de partido”, explica.
Segundo ela, antes e depois do caso da faixa do campus de Niterói, onde fica a faculdade de Direito, várias situações parecidas foram vividas no espaço da universidade em Campos, cidade onde ela estuda. O primeiro aconteceu no dia 13, logo após o primeiro turno das eleições. De acordo com a jovem, fiscais do TRE foram até a sala do CA (Centro Acadêmico) e tentaram achar “material político”.
“Os fiscais chegaram e entraram na nossa sala que estava aberta. Eu achei que era porque lá é zona eleitoral”, afirma a jovem. Porém, quando ela foi até o local verificar, os fiscais estavam revirando todos os armários com as luzes apagadas e usando lanternas para poder iluminar o ambiente. “Eles queriam arrombar um armário que estava trancado, mas a gente falou que tinha a chave”, relembra a estudante.
Segundo ela, o único lugar que tinha material político era sua bolsa pessoal, que foi revirada pelos fiscais. Porém, a jovem garante que o material era dela e que não iria ser distribuído na universidade. Ainda de acordo com Lavinia, teve uma pequena confusão no dia, com um fiscal chutando uma porta de uma sala e alunos e professores sendo ameaçados de prisão por desacato.
Na semana seguinte, houve uma reunião de comitê pela democracia e também foi denunciada. “Eles chegaram e perguntaram se tinha alguma coisa de candidatura sendo falada. Eles ficaram circulando por lá. Não acompanharam tudo, mas a gente estava com microfone, então eles ouviram tudo”, lembra a jovem.
A partir disso, várias ações sobre política foram denunciadas. Uma assembleia geral, uma virada cultural e uma mesa de debate do coletivo feminista. Depois de a faixa do Direito ter sido retirada pela Justiça, a que foi colocada pelos alunos de História também saiu de onde estava. Lavinia diz que foi a própria organização da universidade que promoveu a retirada. Como os alunos do outro campus, eles colocaram outra faixa no local, com nome de desaparecidos políticos da época da Ditadura Militar.
Os alunos que querem debater política na universidade acreditam que outros estudantes são os responsáveis pelas denúncias ao TRE. Lavinia afirma que, desde que o segundo turno começou, estudantes têm feito mais debates fora do que dentro da instituição. Mesmo assim, ela garante que serão promovidas mais ações de resistência. “A gente depende muito do resultado do segundo turno para saber do nível da resistência que a gente vai fazer. Eu acho que o que é mais difícil de aceitar é que a gente não possa debater democracia dentro da universidade”, desabafa.
Reações do TSE e do STF
Ações consideradas como censura teriam acontecido em 26 universidades, entre públicas (federais e estaduais) e privadas, em ao menos 13 estados do país. São relatos desde a invasão de espaços para o recolhimento de materiais considerados irregulares pelos TREs, como panfletos, ou cancelamento de eventos que têm em seu nome ou teor relacionado ao combate ao fascismo.
A Ponte tentou entrar em contato com alunos e professores de outras universidades envolvidas em ações do TRE, mas o clima é de medo entre as pessoas, que tem se recusado a darem entrevistas ou, até mesmo, atenderem os telefones.
A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) do RJ considerou abusivas as ações por parte do TRE local e da polícia. Em nota, chamou os casos de “censura”. “A manifestação livre, não alinhada a candidatos e partidos, não pode ser confundida com propaganda eleitoral. Quaisquer restrições nesse sentido, levadas a efeito, sobretudo, por agentes da lei, sob o manto, como anunciado, de “mandados verbais”, constituem precedentes preocupantes e perigosos para a nossa democracia, além de indevida invasão na autonomia universitária garantida por nossa Constituição”, posicionou-se a instituição.
Presidente do TSE, a ministra Rosa Weber, integrante do STF (Supremo Tribunal Federal), garantiu que os casos serão investigados para verificar “eventuais excessos”. “A legislação eleitoral veda a realização de propaganda em universidades públicas e privadas, mas a vedação dirige-se a propaganda eleitoral, e não alcança, por certo, a liberdade de manifestação e de expressão, preceitos tão caros à democracia, assegurados pela Constituição da República de 1988”, sustentou a ministra.
Além dela, outros membros do Supremo se posicionaram. Atual presidente do Tribunal, Dias Toffoli defendeu a “autonomia a independência das universidades brasileiras, bem como o livre exercício do pensar, da expressão e da manifestação pacífica”. O ministro Marco Aurélio Mello apontou que as universidades são “o campo do saber” e pressupõe “liberdade no pensar”, sendo “toda interferência de início, incabível”. Luís Roberto Barroso declarou que “a polícia, como regra, só deve entrar em uma universidade se for para estudar”, já Gilmar Mendes pediu “cautela” para “verificar se alguma manifestação de fato desborda daquilo que a lei prevê e o que é manifestação normal dentro do ambiente acadêmico”.
Rigidez de instâncias locais
De acordo com Irapuã Santana, mestre e doutorando em Direito Processual pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), em situações como essa, o TRE costuma ser mais rígido que o TSE (Tribunal Superior Eleitoral). “Contra o fascismo não é campanha contra nenhum candidato, mas a gente consegue fazer um raciocínio lógico de que, dentro desta questão em que o candidato Bolsonaro é considerado fascista, seria contra ele”, afirma Santana.
Essa, segundo o especialista, está sendo a interpretação usada pelos tribunais regionais. Porém, o TSE, geralmente, traz a necessidade de se colocar o nome de um candidato para se dizer que é propaganda. Segundo Santana, esse tipo de análise acontece durante todas as eleições. Porém, como este ano o debate político está mais intenso, há maiores chances de casos como esse acontecerem.
“O que está acontecendo é que as pessoas estão se manifestando mais, então isso vai acabar tornando as coisas mais noticiadas”, explica o especialista. “Quando você coloca a UFF contra o fascismo, todo mundo sabe que é contra o Bolsonaro. É uma coisa que dá pra todo mundo entender que é contra o Bolsonaro”, diz.
De acordo com o professor Juarez Xavier, da Unesp (Universidade Estadual Paulista), existe uma cisão hoje em relação à política nacional e que o judiciário não está isento disso. Segundo ele, as universidades têm a autonomia de fazer debates sobre política, mas sem fazer campanha para nenhum político.
Xavier diz que, se mantida e respeitada a legislação, não se pode impedir que as pessoas se manifestem politicamente. Porém, “a ausência do debate político vai criando interpretações que não nos compreende entender a natureza do que está em jogo”, afirma o professor.
De acordo com o professor Pablo Ortellado, da USP (Universidade de São Paulo), foram dezenas de ações simultâneas de combate a uma suposta propaganda eleitoral irregular nos campi universitários de todo o País. “Não sabemos se essa simultaneidade e abrangência se deve à uma ação coordenada de denúncias ou a ação planejada das forças polícias”, disse ele.
Ortellado afirmou que alguns dos alvos tinham materiais que poderiam caracterizar propaganda irregular, mas houve muitos relatos de abuso. Segundo ele, foram analisados alguns conteúdos de cursos e filmes, por exemplo, o que nada tem a ver com campanha eleitoral.
Além da UFF, casos de ações da PM para recolher cartazes teriam acontecido nas seguintes universidades:
UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro)
UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro)
UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
UENF (Universidade Estadual do Norte Fluminense)
UCP (Universidade Católica de Petrópolis)
UniRio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro)
UFPB (Universidade Federal da Paraíba)
UEPB (Universidade Estadual da Paraíba)
UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais)
UFU (Universidade Federal de Uberlândia)
UFAM (Universidade Federal do Amazonas)
UFG (Universidade Federal de Goiás)
UNEB (Universidade do Estado da Bahia)
UFERSA (Universidade Federal Rural do Semi-Árido)
Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira)
Unifei (Universidade Federal de Itajubá)
UFBA (Universidade Federal da Bahia)
UFCG (Universidade Federal de Campina Grande)
UFMT (Universidade Federal do Mato Grosso)
UEPA (Universidade do Estado do Pará)
UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados)
Unesp (Universidade Estadual de São Paulo)
UFSJ (Universidade Federal de São João del-Rei)
UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
UFFS (Universidade Federal da Fronteira Sul)
Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo)
* Colaborou Leonardo Coelho, do Rio de Janeiro