Colega contratada pelo grupo teria dito à vítima em junho, a respeito de seu cabelo, que ela poderia “enfiar um celular aí”. Demissão ocorreu quatro meses após denúncia feita à empresa — que nega haver relação entre os dois fatos
Valéria* sempre gostou de enaltecer sua ancestralidade pelo visual. Até poucos meses atrás, usava longas tranças que, de vez em quando, enrolava num coque como um turbante. Mas a advogada negra de 36 anos conta que sua autoestima e saúde mental foram afetadas desde que denunciou um comentário racista de uma colega de trabalho quando atuava no setor jurídico na rede de supermercados Assaí Atacadista. “Eu não usei mais tranças”, lamenta, com a voz embargada.
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Ela, que pede para não ter a identidade exposta, trabalhava há cinco anos na empresa cuja sede está localizada na Avenida Aricanduva, zona leste de São Paulo. De acordo com a advogada, no dia 27 de junho deste ano, durante um dia comum de trabalho, uma colega contratada em abril foi até sua mesa. “Ela disse a seguinte frase: ‘Nossa, esse seu cabelo é ótimo pra você ir para a balada, você pode enfiar um celular aí dentro e não ser assaltado’.”
Imediatamente, Valéria disse que repreendeu o comentário e que a colega respondeu que se tratou de uma “brincadeira”. O episódio foi confirmado por uma testemunha à reportagem.
Dois meses depois, em 30 de agosto, Valéria afirma que o setor jurídico estava participando de um evento online sobre direito imobiliário transmitido da Bahia. A palestra estava atrasada e, segundo ela, a mesma advogada fez outro comentário, dessa vez de cunho xenofóbico. “Ela levantou a voz e disse ‘tinha que ser esse povo baiano’, como se fosse um povo letárgico, que ‘eles são todos atrasados'”.
Naquele dia, Valéria conta que tentou ligar na Ouvidoria do Assaí, mas não teve retorno. Nos corredores, encontrou uma funcionária da área de Recursos Humanos (RH) que a levou numa sala e relatou o que havia acontecido, incluindo o comentário sobre o cabelo. “Eles perguntaram ‘o que você gostaria que a gente fizesse para poder te ajudar, te auxiliar nessa questão?’ Eu falei ‘eu não sei o que vocês vão fazer, mas eu não quero que essa advogada repita nunca mais essas falas preconceituosas, eu não admito na minha frente’. Se o Assaí prega diversidade, isso é inadmissível”.
De acordo com ela, o RH disse que apuraria o caso e que daria uma advertência verbal a advogada — mas não sabe se isso de fato ocorreu.
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Na mesma semana, uma das coordenadoras da área jurídica, em reunião individual de devolutivas sobre desempenho, teria minimizado a denúncia de Valéria. “A primeira fala da minha coordenação foi ‘você tem que entender que existe racismo contra branco porque eu tenho uma prima que mora na Europa e ela sofre preconceito, né? Porque preconceito é preconceito em qualquer lugar, talvez doa mais em você, mas todos nós sofremos preconceito'”, afirma.
“A coordenadora ainda disse que ela [a advogada] não fez por mal, mas a questão é que ela fez”.
Crises de pânico e afastamento
Valéria descreve que começou a viver um “terror psicológico” por estar sendo desacreditada por seus superiores, não conseguindo frequentar o ambiente de trabalho por conta de crises de choro. “A agressora começou a se fazer de vítima e angariar [o apoio de] pessoas da coordenação. Um coordenador que tinha me encontrado em um momento de desespero e de choro disse que não era para tudo isso, que eu não deveria ter levado a situação tão a sério”.
Ela compartilhou com a reportagem dois atestados médicos, totalizando 28 dias de afastamento, desde o dia 23 de setembro, por crises de pânico e reação aguda ao estresse.
Antes do episódio com a advogada novata, Valéria denuncia que já ouviu comentários de outros coordenadores contestando viagens internacionais que ela fez ou troca de modelo de carro para um melhor. “Como se por ser negra eu não pudesse acessar essas coisas”, diz.
Valéria e outros dois ex-funcionários do Assaí disseram à Ponte que ela era a única advogada negra na equipe jurídica até a contratação de mais um rapaz. “O Assaí se coloca como uma empresa pela diversidade, dizendo que a maioria dos seus colaboradores são negros, mas a gente só vê essas pessoas nos cargos de atendente de caixa, na segurança, na limpeza, que são posições dignas, mas você não vê nos cargos de direção e de chefia”, relatou um deles.
Ainda informaram que o Assaí costuma fazer pelo menos uma vez por ano encontros para discutir o racismo no ambiente de trabalho e, quando há casos de maior repercussão, há reforço nesses tipos de palestra. “Mas parece que sempre é algo visto como chato, que não é levado a sério”, afirmou um ex-colaborador. Uma ex-funcionária afirmou que existe um curso a ser feito de forma obrigatória sobre essa temática, via online, chamado de “ABC da Raça”, mas não sabe se isso é fiscalizado ou se pode vir a interferir na progressão da carreira.
Avaliação médica na empresa
Valéria relatou à Ponte que, antes de terminar os dias previstos no segundo atestado médico, o RH entrou em contato com ela para pedir que o afastamento fosse trocado por um retorno ao trabalho via home office — ou seja, para ela trabalhar de casa. “Dadas as insistências deles, eu conversei com a minha psiquiatra e ela me deu um auto de não aptidão [ao trabalho], mas para tentar um retorno via home office”, conta.
Após 13 dias do retorno à distância, em 4 de novembro, a advogada afirma que foi chamada pelo RH para fazer uma avaliação médica na empresa. “Eu cheguei muito ansiosa, não estava bem de estar ali, chorei bastante”, lembra.
Valéria afirma que a médica, após atendê-la e ouvir toda a situação, disse que o diretor da área jurídica queria falar com ela. “Eu fui ao banheiro pegar papel porque eu não conseguia parar de chorar, fui até a sala que ela me indicou e, para minha surpresa, quem estava lá era a minha coordenadora. Ela falou ‘a gente está aqui para tratar do seu desligamento’.”
A justificativa para a demissão seria uma “redução de quadros”, o que Valéria não acredita. “Eu disse para ela ‘eu sofro racismo dentro dessa empresa e a forma como vocês arrumam pra solucionar a questão é me demitindo? Eu não vou assinar [o papel da demissão]’.” Dali, ela saiu da empresa e buscou um advogado. Registrou boletim de ocorrência por injúria racial na Polícia Civil contra a colega de trabalho e fez uma denúncia ao Ministério Público do Trabalho de São Paulo (MPT-SP).
À Ponte, o advogado Rafael Prazeres Maresti, que representa Valéria, disse que enviou notificação extrajudicial ao Assaí para que fossem preservadas as imagens das câmeras de segurança do local, já que mostrariam as crises de choro da advogada no dia em que foi demitida, e para que a homologação da demissão fosse feita sem a necessidade de ela ter de ir presencialmente à empresa por conta de sua condição de saúde.
Valéria compartilhou com a reportagem mensagens via aplicativo WhatsApp do setor de Recursos Humanos solicitando uma data para ela comparecer à sede a fim de assinar os documentos, e as respostas dela apontando que não estava bem, inclusive com o envio de um terceiro atestado assinado por uma psiquiatra em 19 de novembro. Com a Reforma Trabalhista de 2017, a homologação da rescisão não fica mais a cargo do sindicato da categoria e deve ser feita diretamente com a empresa.
Rafael afirma que Valéria já recebeu as verbas rescisórias, mas não a sua documentação para assinar de forma remota ou mediante procuração via advogado. “O problema é que ela precisa dos documentos para poder dar entrada no seguro-desemprego. E a empresa só vai fornecer isso na homologação. Como eles não estão aceitando a nossa recomendação, nós notificamos para dizer que eles estão em mora [em atraso]. Nós estamos dizendo que ela não tem condições, isso já foi esclarecido, isso já foi passado para a empresa mais de uma vez, e mesmo assim eles insistem que ela tem de ir lá”, diz ele.
O defensor também afirma que a advogada pretende ajuizar uma ação judicial trabalhista e outra cível com pedido de indenização por assédio moral e injúria racial no ambiente de trabalho. O defensor entende que o Assaí também não poderia ter feito Valéria “abonar” parte dos dias previsto no atestado para retornar ao trabalho porque após o 15º dia de afastamento médico consecutivo ela já poderia requerer o benefício por incapacidade temporária, como chama atualmente o auxílio-doença, via Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
“É uma situação grave, em que caberia uma medida um pouco mais incisiva por parte do empregador e eles simplesmente não tomaram. Pelo contrário, eles inverteram a situação de um jeito que ela acabou sendo desligada e a pessoa que cometeu a injúria racial segue trabalhando no Assaí”, critica o advogado.
O que dizem os citados
A Ponte procurou a advogada denunciada por Valéria via LinkedIn para solicitar entrevista, mas o perfil dela sumiu dias após o pedido. Solicitamos entrevista também por meio do Assaí Atacadista — além de outra com um representante da empresa sobre as denúncias. A empresa respondeu por meio de nota:
O Assaí tem compromisso com a promoção de um ambiente de trabalho inclusivo e respeitoso, mantendo uma agenda contínua de treinamentos obrigatórios sobre relações étnico-raciais a todos(as) os(as) colaboradores(as). Sobre as alegações da ex-colaboradora, a Companhia informa que foram analisadas pelo Canal de Ética interno tão logo foram feitas. Todo o processo é conduzido seriamente a partir de investigações com os(as) envolvidos(as) e é realizado de forma totalmente anônima. Como mencionado, foi registrado um Boletim de Ocorrência e a empresa se coloca à disposição para as investigações, reforçando seu compromisso com a não tolerância de qualquer ato discriminatório se comprovado. Em relação ao desligamento, a ação decorreu de uma reestruturação na área em que atuava, não sendo a única desligada, e não possuindo qualquer relação com o encaminhamento de sua denúncia, já que todas são tratadas de forma anônima, sem conhecimento dos(as) gestores(as).
A assessoria do MPT-SP disse que a denúncia já está sendo investigada pelo órgão.
A Secretaria da Segurança Pública (SSP-SP) enviou a seguinte nota:
O caso foi registrado na Delegacia Eletrônica e encaminhado ao 66º Distrito Policial (Aricanduva), responsável pela área onde os fatos ocorreram. A vítima foi intimada a comparecer à unidade para fornecer mais detalhes que possam auxiliar na elucidação do caso.
*O nome foi trocado e os demais foram omitidos a pedido da vítima que teme represálias.