Bruno Cândido gravou série de vídeos em que denuncia que motorista o conduziu à delegacia ao questioná-lo por não seguir rota indicada pelo aplicativo; inspetor da 9ª DP se recusou a registrar ocorrência na sexta-feira (6/10)
O advogado e professor de sociologia Bruno Cândido, 35 anos, tinha acabado de participar de uma reunião para formalizar o instituto que está criando para atender pessoas negras, na região da Lapa, no centro da cidade do Rio de Janeiro, quando resolveu solicitar uma corrida de aplicativo para ir à Casa de Arte de Laranjeiras, onde estuda artes cênicas, por volta das 19h da última sexta-feira (6/10).
O caminho daria em torno de 16 minutos. Dali, não imaginava que o trajeto o levaria a uma delegacia. Durante o percurso, contou, percebeu que o motorista não estava seguindo a rota indicada pela Uber e resolveu questioná-lo. “Eu percebi que o motorista tinha perdido três entradas que o aplicativo estava dando para ele como alternativa e ele estava seguindo para uma direção de fluxo que eu já conhecia porque, inclusive, eu dirijo. Eu virei para ele e falei ‘amigo, você não tá seguindo o caminho do aplicativo’. E ele falou ‘porque eu não quero’. E eu falei ‘como assim você não quer?'”, lembra.
Bruno aponta que insistiu em indagá-lo e o motorista, identificado apenas como Edson, teria lhe dito “então desce do carro”. “Ele não parou o carro e eu tô lidando com aquela informação, tive um choque”, disse o advogado. “Ele já estava indo na direção da delegacia, tanto que quando ele fala ‘vamos para a delegacia’ e eu resolvo filmar, vocês acompanham o momento exato em que ele se dirige à delegacia”, relata ele em um dos vídeos que gravou sobre a situação.
O advogado gravou o momento em que ele pergunta o nome completo do motorista e fala que faz questão de ir à delegacia, já que Edson teria dito que chamaria a polícia. “Tu vê um homem preto no carro e chama a polícia”, diz a ele. O motorista responde “que homem preto, meu irmão? Que isso?”. Bruno rebate “que crime eu tô cometendo para você chamar a polícia?”. Edson diz: “você não quer sair do carro”. Indignado, Bruno afirma que não quer conversar com ele e repete questão de ir à delegacia.
Ao chegarem na 9ª Delegacia de Polícia, o advogado continua filmando, e é possível ver Edson se dirigir a um policial civil que se identifica como Campos e diz “sou motorista de aplicativo, peguei o rapaz aí e ele exigiu outro caminho”. Bruno interrompe, questionando “eu exigi outro caminho? você não seguiu o aplicativo” e os três começam a discutir. O inspetor pergunta: “se não tem crime, por que vocês estão aqui?”. Bruno fala que não tem crime cometido por ele, mas que ele foi vítima de racismo.
Eles continuam discutindo, momento em que Bruno questiona que crime teria cometido para que o motorista quisesse chamar a polícia. “Que racismo? Você sabe quem eu sou?”, declara o motorista. Bruno retruca “quem é você?” e Edson recua e diz que não tem que dar satisfação. “Então por que você disse que ia chamar a polícia?”, perguntou. “Porque você não quis sair do carro”, rebateu o motorista. “Quando você diz que quer chamar a polícia para mim, você tá dizendo que eu sou criminoso”, disse Bruno. O motorista se dirige ao policial dizendo que Bruno estava sendo agressivo.
O advogado explica que ao ter sua integridade contestada, ser colocado como agressivo por questionar a rota que Edson seguiu e o motorista dizer que vai chamar a polícia por isso, estaria sendo alvo de discriminação por ser negro pois o mesmo não teria acontecido se o passageiro fosse branco. Edson, que é um homem branco e grisalho, chega a chamá-lo de mentiroso e a mostrar uma carteira, indicando que também seria advogado e volta a dizer que Bruno estava sendo agressivo.
O inspetor diz que não houve crime e o motorista resolve sair da delegacia. Bruno insiste em querer registrar a ocorrência, citando a Lei estadual 2235/1994, que obriga as delegacias do Rio de Janeiro a registrarem ocorrências quando a vítima alegar que sofreu racismo, e o policial se nega.
Em outro vídeo, o policial aparece sentado atrás de uma mesa, diz que Bruno não pode entrar na área após o balcão. O advogado insiste em querer registrar a ocorrência e diz que, por ser advogado, o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) permitem o ingresso livre em repartições públicas. O inspetor manda ele se retirar e o ignora ao atender o celular, deixando o local.
Bruno conversa com outro policial civil, explicando a situação no vídeo. À Ponte, o advogado disse que depois da insistência, conseguiu registrar o caso. Contudo, o documento está indicando “medida assecuratória de direito futuro”, que é um conjunto de medidas dispostas no Código de Processo Penal para que a pessoa sofra responsabilização pecuniária, ou seja, tenha que ressarcir o prejuízo que causou à vítima sem ter que passar por um processo criminal. É semelhante a casos em que a vítima pede indenização por algum dano sofrido, seja moral ou material, por exemplo, na esfera cível.
Já o crime de racismo, previsto na Lei 7.716/1989, prevê pena de dois a cinco anos de prisão, é inafiançável e, após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2021, também tornou o crime imprescritível – ou seja, pode ser investigado e os agressores, punidos, a qualquer tempo, independentemente de quando ocorreu a violência.
Para ele, também foi uma forma de descredibilizá-lo e de não ser reconhecido como cidadão. “Quando uma pessoa negra domina o que ela está falando e ela tem razão, apesar disso existem outras formas da estrutura de desconversar, desestimular e camuflar o interesse daquele grupo que já é apagado dentro da história e sofre esse processo de invisibilidade”, afirma.
Na manhã desta terça-feira (10), Bruno disse à reportagem que estava indo à 9ª Delegacia, acompanhado pela Advocacia Preta Carioca, Comissão de Prerrogativas e Comissão de Direitos Humanos da OAB do Rio de Janeiro, para que o delegado retifique o registro e o caso seja investigado como crime de racismo. Ele também relatou que vai representar contra o policial civil na corregedoria, já que o inspetor também teria se negado a registrar outros casos em que atuou como representante de vítimas de discriminação racial.
“É uma questão de segurança pública, porque se as pessoas continuarem indo até o Estado, através da delegacia, e não conseguirem registrar as suas ocorrências, o que vai acontecer é um problema muito maior no futuro. Se eu tivesse batido no motorista da Uber, eu teria sido um homem negro agressivo, criminoso, que ele queria que eu fosse, mas o Estado não está me permitindo nem investigar o que eu passei. E se não vai investigar, não vai punir, e se o Estado não vai punir, como fica a minha dor, como fica a minha lesão?”, declarou à Ponte a caminho da delegacia.
O que diz a Uber
Questionada sobre a conduta do motorista e dos vídeos gravados por Bruno, a assessoria da empresa encaminhou a seguinte nota:
A Uber não tolera qualquer forma de discriminação e informa que a conta do motorista já foi desativada da plataforma. Em casos dessa natureza, a empresa encoraja a denúncia tanto pelo próprio aplicativo quanto às autoridades competentes e se coloca à disposição para colaborar com as investigações, na forma da lei. Além disso, em parceria com o MeToo, a Uber disponibiliza um canal de suporte psicológico que será disponibilizado ao usuário.
A Uber busca oferecer opções de mobilidade eficientes e acessíveis a todos. A empresa reafirma o seu compromisso de promover o respeito, igualdade e inclusão para todas as pessoas que utilizam o app.
Sabemos que o preconceito, infelizmente, permeia a nossa sociedade e que cabe a todos nós combatê-lo. Como parte desses esforços, a Uber lançou, por exemplo, o podcast Fala Parceiro de Respeito, em parceria com a Promundo, com conteúdos educativos sobre racismo. Além disso, em parceria com as advogadas da deFEMde, a empresa revisou o processo de atendimento na plataforma, a fim de facilitar as denúncias de racismo e acolher melhor o relato da vítima. Em 2021, a Uber também lançou uma campanha que convida usuários e motoristas parceiros para serem aliados no combate ao racismo. A iniciativa tem o objetivo de promover um conteúdo educativo dentro do próprio aplicativo e é parte de um compromisso global assumido pela empresa em 2020 com o objetivo de combater o racismo e criar produtos igualitários por meio da tecnologia.
O que diz a polícia
A reportagem encaminhou os vídeos gravados pelo advogado à assessoria da Polícia Civil e a questionou sobre a atuação do inspetor neste caso e em outros em que teria se negado a registrar a ocorrência, conforme relatado por Bruno e aguarda resposta.
O que diz a OAB/RJ
A Ponte tentou buscar os canais de comunicação da OAB seção Rio de Janeiro sobre a situação relatada por Bruno na delegacia e para confirmar se o motorista também tem registro na Ordem como advogado, mas até a publicação não houve retorno.