Ailton e Guilherme, presos após reconhecimento por foto: ‘A aparência foi o que fez a gente ficar lá’

    Amigos de infância ficaram 193 dias presos e relatam os detalhes do cárcere; reconhecidos pela foto do RG, eles fazem um apelo: “não age desse jeito, mano, se você achar que só porque tá na delegacia é bandido… não vai nessa”

    Mais do que amigos, irmãos. É assim que o entregador Ailton Gonçalves Nascimento, 20, e o estoquista Guilherme da Silva, 19, se definem. Eles se conheceram ainda no primeiro ano do ensino fundamental e nunca mais se afastaram. Crias de Guarulhos (Grande SP), os amigos de infância passam 193 dias presos por um crime que não cometeram.

    Presos 29 de março de 2020 acusados de roubar uma moto, Ailton e Guilherme foram absolvidos pela juíza Patrícia Cotrim Valério, da 2ª Vara Criminal da Comarca de Guarulhos (Grande SP), do Tribunal de Justiça de São Paulo, em 8 de outubro de 2020. Reconhecidos de maneira irregular pela foto do RG no estacionamento da delegacia, os jovens foram soltos após empenho de suas famílias, que conseguiram provar sua inocência.

    Agora, os amigos de infância recebem a Ponte para contar como foram os seis meses que passaram presos injustamente. “Esse pesadelo que passou só fez a gente crescer mais. Um ajudando o outro mais e mais. Hoje em dia eu sei que depois de tudo isso que a gente passou… mano, esse cara pra mim é tudo”, conta Ailton sobre a amizade com Guilherme.

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    Ailton conta que, antes de comprar a sua moto e começar a ser entregador de aplicativos, tirava seu sustento vendendo drinques para a galera do bairro. Guilherme o ajudava. “A rapaziada pede bastante, mas conforme aconteceu tudo isso aí, fiquei sem essa rendinha. Faz uns três anos que eu faço essas bebidas”.

    Ele lembra como foi o dia da prisão. “Era domingo, acordei cedo e fui trabalhar, cheguei às 9h. Mas meu trabalho não abriu, meu chefe me avisou ia dar 11h. Como tava um dia lindo, decidi fazer alguma coisa”, conta Ailton. Guilherme completa que recebeu uma mensagem do amigo para irem para o Rodoanel para andar de moto”.

    Quando o tempo fechou e a chuva ameaçou cair, Ailton chamou Guilherme para ir embora. “Parecia que tinha alguma coisa atrás seguindo, mas olhei e não tinha ninguém. Aí olhei de novo e ouvi ‘para’. Já estavam do meu lado me emparelhando. Se eu tivesse ouvido, eu teria parado: a moto era minha, tinha habilitação. Aí a gente caiu com os guardas”.

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    Ailton só ficou sabendo que foi derrubado da moto quando já estava preso e o advogado contou o que viu nas imagens de segurança. O jovem levou a reportagem no local da abordagem, para mostrar a dinâmica da prisão e as imagens fornecidas pelas testemunhas.

    “A moça que mora aqui filmou tudo. Ela não conhecia a gente, mas foi fundamental”, afirma Guilherme. “Ela foi lá e deu depoimento ao nosso favor, que foi essencial pra gente ser absolvido”.

    Ailton até hoje tem as marcas da agressão, em seu ombro, braço e perna. “Aí começou a tortura. Pediram para eu tirar o capacete e eu não conseguia falar de tanta dor. O guarda que tava mais alterado tentou tirar o meu capacete, que estava fechado, quando tirei ele me deu uma joelhada em minhas costas”.

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    Apesar das agressões, Ailton conseguiu ver um primo de uma ex-namorada, para quem pediu ajuda para avisar sua família. Seus ex-sogros foram os primeiros a chegar, mas foram impedidos de ver os jovens pelos agentes de segurança.

    “Passou uns cinco minutinhos e a minha mãe chegou. Ela já chorando. Quando levantou a porta da viatura e ela viu a gente cheio de sangue, aí desesperou. Eu não sabia o que falar, mas ela sabia que não tínhamos feito nada de errado”.

    No posto de saúde, Ailton conta que os policiais pediram para que ele assumisse o roubo da moto. Foi nesse momento que ele entendeu que estava sendo acusado de roubo.

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    Uma funcionária perguntou para os policiais se eles seriam presos e os policiais negaram. “Aí ela disse que não ia nem limpar os ferimentos porque se não iria machucar muito. Me disse para chegar em casa e tomar banho”. Mas eles não foram para casa por seis meses.

    Ailton e Guilherme sabem por qual motivo foram presos: “Julgaram nóis pelo corte de cabelo, pelas roupas, pela tatuagem, pelo jeito de falar”, assegura Ailton.

    “A aparência foi o que fez a gente ficar lá. Se fosse uma pessoa branca e com uma roupa de boy não iam ficar lá. Se a gente não fez nada, não roubamos nada, não estávamos com nada, estávamos limpos, o único motivo foi esse”, completa Guilherme.

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    “Como a pessoa chega em uma delegacia para reconhecer e reconhece um cara que não foi ele? Eu falo para as pessoas: não age desse jeito, mano, se você achar que só porque tá na delegacia é bandido… não vai nessa. Nem sempre quem tá na delegacia cometeu aquele fato. Se você foi assaltado, foi roubado, não faz isso. Não pensa em si, pensa na família do cara que tá lá”, clama Ailton.

    Apesar da absolvição, Ailton relata que terá medo de ser abordado de novo. “É ruim porque se eu tomar enquadro vou ter que falar que fui preso, que não cometi nenhum erro, que fui absolvido, e cabe ao policial acreditar na minha palavra”.

    “Isso foi uma tortura, só a gente sabe como é. Eu até evito dele sair na rua. Ele só costuma ir na casa do Ailton e voltar, não é de ir em balada. Eu falo: vamos viver daqui para frente, esquece o que você viveu lá esses seis meses, você não pode nem lembrar, tem que viver o agora. Sua família unida, você voltando para o trabalho, para o estudo. Só isso que eu quero”, afirma o analista operacional de segurança Valter da Silva, 58, pai de Guilherme.

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