Além da Vaza-Jato: juiz e promotor ‘juntos e shallow now’ é comum no Brasil

    Combinações entre juízes e promotores, como as que havia entre Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, são uma forma de ‘farsa processual’ comum nos tribunais brasileiros, afirma ex-procurador

    A relação promíscua entre um juiz, que deveria ser imparcial, e um promotor responsável pelas acusações veio à tona com a série de reportagens do Intercept Brasil que mostrava conversas privadas entre o então juiz Sérgio Moro, hoje ministro da Justiça e Segurança Pública do governo Jair Bolsonaro (PSL), com o promotor do Ministério Público paranaense Deltan Dallagnol, no processo da Operação Lava-Jato que levou à condenação e prisão do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT). Apesar de ser ilegal, prejudicar o direito de defesa e facilitar a condenação de inocentes, a atuação de juízes mancomunados com promotores e procuradores está longe de ser incomum nos tribunais brasileiros.

    Roberto Tardelli é procurador de Justiça aposentado do MP de São Paulo. Com 31 anos de experiência no órgão, ele considera que a revelação envolvendo Moro e Dallagnol reflete algo histórico no sistema de justiça brasileiro. O caso divulgado nessa semana evidencia uma “regra das relações” entre juiz e promotor, principalmente quando se trata de profissionais em cidades pequenas, onde é menor o número de representantes do judiciário e do Ministério Público.

    “É uma coisa que sempre existiu, é imemorial. Eu entrei no MP em 1984 e já era assim há muitos anos, coisa de décadas. É histórico no Brasil esse compadrio entre juiz e promotor, por várias razões. Por exemplo, tenho juízes que são amigos de fé por conta do trabalho. É o lado bom da coisa, você consegue estabelecer com o juiz uma relação civilizada, próxima, de amizade, mas tudo de bom que uma amizade sadia tem. O limite para isso descambar para uma simbiose é muito curto”, diz o agora advogado.

    O problema é exatamente estabelecer um limite neste convívio ao trabalhar no mesmo espaço e ao tempo todo. Tanto juízes como promotores vão todos os dias ao mesmo local de trabalho, os fóruns, enquanto advogados ficam em seus escritórios. Outro ponto destacado por Tardelli é o fato de os promotores atuarem ao lado dos juízes em diferentes casos, enquanto os representantes de defesa variam de caso a caso, dificultando o reencontro e, automaticamente, a criação de proximidade. Enquanto a dupla cria vínculo, como sair para tomar cerveja juntos, advogados “nunca, de forma alguma,” mandam um WhatsApp para juízes ou promotores. “Existe uma relação intensa. E pode ser promíscua de uma maneira imperceptível”, diz Tardelli.

    “Um exemplo prático: tem muito serviço. O promotor e o juiz naturalmente se aproximam e fazem, às vezes expressamente e às vezes veladamente, um acordo no seguinte sentido: ‘eu [juiz] defiro tudo de você [promotor] e você não recorre do que eu decidir’. Está feita a merda, está feita a simbiose no seu pior aspecto”, argumenta o procurador aposentado. “E, nesse aspecto, existe um ‘russo’ com quem ninguém nunca quis combinar as coisas direito, que é o advogado. Esse advogado quebra essa relação, ela começa a recorrer, a insistir, ele é chato… A solução para o cliente dele já estaria ‘dada’ entre os dois. Isso vai acontecendo”, complementa. “Russo”, segundo os diálogos revelados pela Lava-Jato, era o codinome usado pelos promotores da Lava-Jato para se referirem a Sérgio Moro.

    ‘Juiz não pode ser auxiliar de acusação’

    Pela letra da lei brasileira, o juiz deve ser imparcial e não pode se manter mais próximo da acusação do que da defesa. O Código de Processo Penal afirma no artigo 254 que “o juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes se tiver aconselhado qualquer das partes”. O Código Ético da Magistratura é ainda mais claro em seu artigo 8, ao determinar que “o magistrado imparcial” deve “manter ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes”.

    Mesmo assim, a relação desigual aparece até na disposição física do tribunal do júri, em que juiz e promotor ficam numa bancada elevada, acima dos demais, inclusive dos advogados de defesa. Contestada pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), essa organização espacial foi considerada correta por uma decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça), que, em 2007, considerou que não prejudicava a isonomia entre acusação e defesa.

    Há juízes que negam de sobremaneira a possibilidade de debater minúcias de um processo, como é o caso de Luis Carlos Valois, da Vara de Execuções penais do Tribunal de Justiça do Amazonas. Ainda que tenham tido oportunidades para tal. “Já fui procurado várias vezes por delegados para falar de operação, ou promotor, sinceramente, mas eu não trato sobre esses assuntos, simplesmente não converso. A não ser que seja na audiência na frente de todo mundo”, sustenta o juiz.

    Segundo Valois, a questão da imparcialidade está além do julgador considerar uma conversa suficiente ou não para quebrar sua independência de análise. “Não posso dizer que confio na minha imparcialidade, posso ouvir quem for e não vai atingi-la. Só que é a questão da imagem, o problema é a imagem. O juiz não trabalha só com a consciência dele, ele trabalha com a atuação dele e a imagem que a atuação dele passa para as outras pessoas”, sustenta.

    Ele explica que o normal é ser procurado por integrantes da Polícia Civil e da Militar, por atuar em âmbito estadual, e o máximo do diálogo é para que os pedidos referentes ao processo sejam apresentados ao seu gabinete, mas sem favorecimento ou direcionamento. “Falo para apresentar o pedido, vou analisar o mais rápido possível e aguarde minha decisão. Pronto. É o máximo que se pode fazer. Agora, combinar como vai fazer, é outra história. ‘Peticiona desse jeito, faz desse jeito para poder deferir…’ Isso, no mínimo que se pode dizer, é que não é ético”, afirma.

    Do outro lado, os advogados reclamam da “sintonia espúria entre juízes e promotores”, como definiu um profissional ouvido pela Ponte sob condição de anonimato. “Tive casos que tinha um MP agressivo e um juiz complacente, com alinhamento ideológico, de finalidade. Eu entrava com suspensão em vários casos por conta disso. Tem um alinhamento ilegal, não acho que deva ser naturalizado. Quanto mais se fala que é comum, pior vai ficar. O uso do cachimbo entorta a boca, como dizem. Enquanto está na lei que não pode acontecer, fazem porque são audaciosos. Quem tem poder no Brasil hoje são os coronéis de toga”, critica o advogado.

    O IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) ressaltou em nota que a revelação das conversas entre Moro e Dallagnol exemplifica uma quebra da imparcialidade vista em outros casos. “Nos últimos anos, advogados e advogadas de defesa viram com frequência juízes abrindo mão da imparcialidade e da objetividade para fortalecer, de maneira velada, o lado da acusação. Esse movimento gerou aberrações, atropelos e arbitrariedades que, aos poucos, corroeram as garantias processuais que dão sustentação ao sistema de Justiça”, explica a organização. ” Em cada um destes episódios, não estavam em risco apenas os direitos de um ou outro réu, mas o próprio Estado Democrático de Direito”.

    Presidenta do Conselho Executivo da associação Juízes para a Democracia, Valdete Souto Severo, considera que é comum juízes conversarem com promotores e advogados, mas não sobre questões processuais por meio do WhatsApp, por exemplo. No entanto, ela descarta que seja uma prática corriqueira essa proximidade maior com o MP afetar nas decisões. “Posso ter amizade, não falar sobre questões de processo, sobretudo aconselhar, definir provas a serem colhidas”, diz, exemplificando uma das ações apontadas com ilegais cometidas por Moro junto a Dallagnol.

    Juíza desde 2001 no Rio Grande do Sul, Severo considera que o ex-juiz cometeu uma irregularidade grave. “O juiz, para ter isenção, não pode agir como auxiliar de acusação. Não há nenhum problema serem amigos de casa de quem exerça a função de procurador ou de advogado. Sou casada com um advogado, não posso conversar sobre um processo que esteja na jurisdição de ambos. Ali [nos diálogos publicados pelo Intercept], eles conversam sobre as investigações. Isso é proibido”, explica.

    E o que pode acontecer com juízes e promotores que se aproximam e cuja relação afeta diretamente no direcionamento dos processos? “Nenhuma punição. Talvez um fique padrinho do filho do outro. Nem uma semana sem sobremesa, nem parar de brincar com o vídeo-game… Sabe por que? Essa relação é cultural. Você vai encontrar o desembargador que vai julgar o juízo, o procurador que vai julgar o promotor, é capaz de serem amigos de todo mundo. ‘Isso nunca aconteceu, a gente sempre fazia o melhor para as pessoas’. Todo mundo pensa naquele varejo com o qual estamos acostumados. Esses dois [Moro e Dallagnol] deram um passo além, pularam a cerca. Caminharam em um nível muito mais alto”, explica Tardelli.

    ‘É uma quebra institucional imperceptível’

    O caso de Moro e Dallagnol resultou na condenação e prisão do ex-presidente Lula, o impossibilitando de disputar a eleição presidencial vencida por Jair Bolsonaro (PSL), que convidou para comandar o Ministério da Justiça e Segurança pública de seu governo justamente o juiz que condenou o adversário político. O procurador aposentado vê o caso como um “projeto de poder” e o coloca como mais grave do que o golpe militar de 1964, que iniciou a ditadura militar que perdurou até 1985.

    “Foi uma coisa que ninguém teve dúvida que era golpe militar, que era ascensão de poder militar. ‘Que ninguém duvide disso, nós estamos aqui’. Esse não, é camuflado. É uma quebra institucional feita de forma imperceptível e tão bem elaborada que tem gente que sai na rua pedindo intervenção militar, achando que o ministro da Segurança Pública era um juiz bem intencionado”, aponta Tardelli. “Há um projeto de poder, não é só um conluio de juiz e procurador, existia um projeto de poder. Esse projeto de poder que acho de uma gravidade que a história do Brasil nunca registrou”, emenda.

    No dia a dia, Tardelli explica que as consequências vão além de prender pessoas, podem influenciar na vida inteira de uma família. “Pense numa Vara de Infância e Juventude. Adoção ou manutenção de guarda, por exemplo. Os caras brincam de Deus. ‘Vamos tirar essa guarda, já temos interessado para ela, conheço um casal espetacular muito melhor do que esse’. É muito pior, mais nefasta. Por mais que tomem a liberdade de alguém, um dia ela será devolvida, um filho, não vai. É um horror o resultado disso”, argumenta.

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