Além de inundações, presos do RS sofrem com discriminação e fake news de políticos e moradores

Prefeito de Porto Alegre Sebastião Melo (MDB) disse que detentos podem “contaminar” abrigos comuns, associando falsamente casos de violência sexual a presos do semiaberto que foram liberados e ficaram em alojamentos

Imagem aérea da Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ) | Foto: divulgação/Susepe

A falta de visibilidade da população carcerária em meio as inundações que afetaram 90% das cidades do Rio Grande do Sul, sob a gestão Eduardo Leite (PSDB), nos últimos 15 dias tem propiciado um terreno fértil para a propagação de informações falsas e discursos discriminatórios contra os apenados.

O mais recente foi dado pelo prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), no domingo (12/5), à Rede Pampa, depois de ter publicado no X (antigo Twitter) que era necessária a criação de “abrigos alternativos” para os detentos do regime semiaberto por uma questão de “segurança” nos locais. “Não é uma questão de preconceito. Não posso ter 15 mil pessoas acolhidas, crianças, mulheres, homens, trabalhadores, e contaminar com gente do sistema penal. Não, isso é papel da Susepe, é um papel de polícia, é um papel do judiciário”, disse.

Ele ainda diz que os presos devem ser retirados dos abrigos gerais e colocados em outro lugar, frisando sem titubear: “os abrigos vão permanecer e não podem ser contaminados”.

Essa questão veio à tona especialmente por conta das denúncias de violência sexual contra mulheres e crianças em abrigos durante a tragédia e prisão de alguns suspeitos pelos crimes. O cenário, além das ocorrências de saques e assaltos em estabelecimentos que foram abandonados, como a Ponte revelou nesta terça-feira (14), fez com que moradores se organizassem por conta própria em grupos armados, alguns com a presença de policiais de folga contratados irregularmente, com o objetivo declarado de combater “vagabundos”, o que abre margem para surgimento de milícias.

À Ponte, a delegada Adriana Regina da Costa, diretora do Departamento de Polícia Metropolitana, esclareceu que nenhum dos casos de violência sexual em abrigos que a Polícia Civil atuou houve participação de detentos do regime semiaberto.

“Nós tivemos crimes sexuais pontuais em abrigos. O que nós temos notado é que são fatos que muitas vezes envolvem familiares e que suspeita-se que isso já acontecia quando as pessoas estavam nas residências, mas que vieram à tona agora porque como a criança ou o adolescente está num espaço com a presença da polícia, com a presença de outras pessoas, isso vem à público”, explica. “Nós temos apenados de maioria de crimes patrimoniais, mas o perfil do agressor do crime sexual é diferente porque muitas vezes é praticado por pessoas próximas ou até da mesma família.”

A Associação Juízas e Juízes para a Democracia (AJD) emitiu nota, nesta segunda (13/5), repudiando as declarações e apontando que elas só agravam a situação o sofrimento da população, geram preocupação desnecessária e estigmatizam a população prisional. “Nesse momento de tanta tristeza e desesperança, o que se almeja de um chefe do executivo municipal são condutas concretas – que não sejam discriminatórias e preconceituosas – em estrito cumprimento aos termos de nossa Constituição Federal, propiciando às vítimas, independentemente de suas condições pessoais, sociais e econômicas, acolhimento seguro e adequado, abstendo-se, inclusive, de desviar o foco da gravíssima situação do nosso estado”, diz o texto.

Na Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ), parte dos detentos foram realocados para galerias superiores, enquanto outros 1.057 presos, que foram transferidos em 3 de maio para Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc), já retornaram, de acordo com a Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe). Familiares temem a elevação do nível da água no local com a previsão de chuvas para esta semana após alertas da Defesa Civil sobre o Rio Jacuí.

Abaixo veja a localização das unidades prisionais em pontos amarelos em meio a mancha de inundação do dia 6 de maio na capital e na região metropolitana de Porto Alegre, que alcançou o pico de 5,3 metros de altura, a partir do mapa adaptado com informações geográficas levantadas por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Clique no sinal “+” para aproximar a visualização de cada região.

Somente detentos do regime semiaberto tiveram a liberação à prisão domiciliar autorizada pela Vara de Execução Penal de Porto Alegre em algumas unidades prisionais da região metropolitana que foram afetadas por inundação, falta de abastecimento de água ou pane elétrica.

Foi o caso do Instituto Penal de Canoas (IPC), do Instituto Penal de Montenegro, do Instituto Penal de Novo Hamburgo (IPNH), do Instituto Penal de São Leopoldo (IPSL) e o Instituto Penal de Charqueadas (IPCH) – este último que faz parte de um complexo de sete unidades que permanece ilhado e sem autorização para visitas de familiares desde 2 de maio. “Elas [pessoas privadas de liberdade em regime semiaberto] seguem monitoradas e acompanhadas pela Polícia Penal, que já solicitou autorização judicial para que deixem a monitoração eletrônica e retornem a estabelecimentos prisionais compatíveis com seu regime de pena”, disse a assessoria da Susepe.

Diversos comentários em redes sociais, tanto na postagem do prefeito quanto em notícias sobre a medida, tinham tom discriminatório, como “abrigo de apenado é no presídio”, “não é à toa que começaram a aparecer noticias de saque e roubos no meio da tragédia”, “como a situação do RS é desumana, tinha que ter deixado trancado e perdido a chave no meio da enchente”. Além de postagens por parlamentares em tom alarmista e falso, como do deputado federal Paulo Bilynskyj (PL-SP) de que o judiciário proibiu prisões, o que não é verdade.

As ações foram tomadas antes de o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicar diretrizes para atuação do Poder Judiciário nos sistemas penal e socioeducativo, em 9 de maio. Entre elas, estão restringir a aplicação de prisão preventiva (por tempo indeterminado em regime fechado) a situações extremas; flexibilizar a prisão domiciliar como qualquer lugar seguro e não considerar o deslocamento inevitável como descumprimento da medida; restringir a aplicação de tornozeleira eletrônica e não considerar falta de sinal ou de bateria como descumprimento da medida; suspender o comparecimento obrigatório em juízo; e, em fiscalizações nas unidades prisionais, os(as) juízes(as) da execução penal devem garantir acesso a serviços essenciais (como água potável) e comunicar famílias.

De acordo com boletim divulgado na manhã desta quarta-feira (15) pela Susepe, além do Complexo Prisional de Charqueadas, as visitas de familiares foram suspensas por conta de bloqueios de pista na Penitenciária Feminina Estadual de Guaíba e nas 13 unidades da região central do estado: Penitenciária Estadual de Santa Maria, Presídio Regional de Santa Maria, Instituto Penal de Santa Maria, Presídio Estadual de São Sepé, Presídio Estadual de Júlio de Castilhos, Presídio Estadual de Santiago, Presídio Estadual de São Francisco de Assis, Presídio Estadual de Jaguari, Presídio Estadual de São Vicente do Sul, Presídio Estadual de Agudo, Presídio Estadual de Júlio de Castilhos (que está tendo reparos no telhado danificado), Presídio Estadual de Caçapava do Sul, Presídio Estadual de Cacequi.

Segundo a Susepe, “algumas unidades apresentam oscilação nos serviços de internet e telefone” e “em menos de 4% do total de estabelecimentos prisionais, o fornecimento de energia elétrica está sendo mantido por geradores”. O órgão garante que em todas as unidades está havendo alimentação e água potável a servidores e apenados – apesar de familiares contestarem essa informação.

Como a Ponte revelou, parentes se arriscam para levar água, roupas e alimentos para os detentos do regime fechado, que é de competência do Estado fornecer, enquanto os presos que foram autorizados à prisão domiciliar enfrentaram chuvas e alagamentos sem apoio institucional, tendo que buscar retornar para casa de familiares por conta própria.

Não à toa, a Susepe confirmou à reportagem que “algumas pessoas privadas de liberdade que utilizam tornozeleira eletrônica ficaram desalojadas e necessitaram de acolhimento em abrigos públicos em Porto Alegre”. A assessoria do órgão não quis informar a quantidade de monitorados em abrigos ao alegar “questão de segurança”.

A liberação dos detentos, apesar de importante, foi feita de forma improvisada e desarticulada, aponta Vanessa Chiari, professora de direito penal da Faculdade de Direito e orientadora do Grupo de Estudos e Intervenção em Penal (Geip) do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (Saju) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Não faz nenhum sentido você tirar a pessoa de dentro do sistema e deixá-la ao relento”, afirma. “Se o Estado liberou essas pessoas, ele precisa dar conta de abrigá-las.”

Chiari destaca que as prefeituras devem fazer esse acolhimento em parceria com o sistema de justiça. “Se ela [a prefeitura] não quer que pessoas que ainda cumprem pena estejam misturadas com outros abrigados que não estão cumprindo pena, que organize um abrigo específico para pessoas que estão em prisão domiciliar e estão desabrigadas”, diz.

Além de 162 abrigos da prefeitura de Porto Alegre e entidades parceiras, existem aqueles que foram montados de forma independente por organizações, escolas, sindicatos, universidades, como a própria UFRGS, e outras instituições da sociedade civil. A professora, que visitou alguns abrigos para dar assistência jurídica, e conta que também atendeu apenados. “As pessoas que chegam aos abrigos chegam sem documento. Então a gente precisa identificar com base nas informações que elas nos prestam. Inclusive, um dos grandes trabalhos que tem sido feito é a providenciar certidão de nascimento e certidão de casamento, para que a partir dessa segunda via dos documentos, eles possam providenciar carteira de identidade”, afirma.

Por outro lado, a falta de assistência à população prisional, seja dentro ou fora do cárcere, escancara e potencializa um problema anterior, segundo Chiari. “Se nós formos parar para pensar, a população prisional, de um modo mais amplo, é vista, exceto pelas famílias, pelas pessoas que militam por direitos humanos, que têm uma consciência mais ampla, como a escória”, critica. “Quando acontece uma situação de calamidade, se as instituições diretamente envolvidas não tomarem uma medida e esperarem que os agentes políticos ou que a sociedade se preocupe, é inútil porque realmente não existe essa preocupação. Eles seriam os últimos a merecerem, digamos, a preocupação da sociedade”.

O que dizem as autoridades

A assessoria da prefeitura de Porto Alegre mandou um áudio direcionado às perguntas da reportagem com a seguinte resposta do prefeito Sebastião Melo, que manteve o posicionamento da entrevista à Rede Pampa:

Essa questão dos abrigos, nós temos hoje quase 15 mil pessoas em quase 160 abrigos. Mulheres, homens, crianças. E começou a aparecer nesses abrigos apenados. Bom, tão logo isso foi detectado, pessoas que estão cumprindo regime aberto ou semiaberto, eu liguei ao governador e disse para ele da minha preocupação, porque pode ter uma tragédia num abrigo desse, porque tem gangues de diferentes facções que atuam na cidade.

Bom, aí o governador designou o vice-governador, conversamos junto com o Ministério Público. Eu entendi que deveria estender essa conversa também com a Defensoria Pública e com o próprio Judiciário. Bom, e nesta conversa envolvendo todos esses órgãos, de certa forma, houve uma certa discordância por parte do Judiciário e por parte também da Defensoria Pública.

Eu mantive a minha posição, que continuo reafirmando esta posição, de que nós não devemos misturar nos abrigos apenados com o acolhimento das 15 mil famílias. E que esse é um papel do executivo estadual, junto que tem o órgão da Susepe, porque a regra diz o seguinte, que o apenado que está cumprindo pena e liberdade, ainda não cumpriu todas as suas obrigações, deve voltar para dormir em um abrigo.

E defendi, continuo defendendo, que eles devem ter por parte da Susepe um abrigo separado para que eles possam, então, lá estar, e não estar nos abrigos que tem 15 mil pessoas. Esta é a minha posição, que eu tenho defendido e vou continuar defendendo.

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A Susepe informou que no dia 11 de maio “o Estado e a Prefeitura de Porto Alegre, com a participação do Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública, realizaram uma reunião para tratar das questões de segurança dentro dos abrigos.”

Procurada, a assessoria da Defensoria Pública disse que não iria se manifestar pois o assunto está sendo tratado internamente.

A assessoria do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) não respondeu até a publicação.

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