Seguranças do supermercado Ricoy foram condenados por lesão corporal, cárcere privado e compartilhamento de cena de nudez; criminalistas afirmam que juiz errou
Os seguranças Valdir Bispo de Santos e David de Oliveira Fernandes foram absolvidos, nesta quarta-feira (11/12) da acusação de tortura por terem amarrado um adolescente negro, de 17 anos, sem roupa, e o chicoteado. A sessão de agressões, praticada em uma loja da rede de supermercados Ricoy, na Vila Joaniza, zona sul da cidade de São Paulo, foi filmada pelos próprios seguranças e distribuída nas redes sociais em setembro deste ano.
No julgamento, Santos e Fernandes foram condenados a três meses e 22 dias de detenção (regime aberto ou semiaberto) por lesão corporal, 3 anos e 10 meses de reclusão (regime fechado) por cárcere privado, e 12 dias de multa pelo crime de compartilhamento de cena de nudez de um adolescente, já que publicaram o vídeo em redes sociais.
Na sentença, o juiz Carlos Alberto Correia de Almeida afirma entender que não houve crime de tortura, e, sim, de lesão corporal. “Não ocorreu crime de tortura, uma vez que as agressões infringidas ao menor não foram com a finalidade de obter informações e também não foram aplicadas por quem estava na condição de autoridade, guarda ou poder”, justificou Almeida.
A pena para lesão corporal, se não deixar sequelas, vai de três meses a um ano de detenção, enquanto a punição para tortura vai de 2 a 8 anos de reclusão.
Para André Lozano, advogado criminalista e coordenador-adjunto do laboratório de ciências criminais do Ibccrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), o juiz deveria ter condenado os réus pelo crime de tortura, baseado no que diz o artigo 1º, inciso II, da lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997, que diz ser tortura “submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”.
“O garoto estava sob poder dos seguranças. Ainda que não seja um poder exercido devido a uma obrigação legal, ele estava submetido a eles. Eles o detiveram e o impediram de exercer resistência”, pondera Lozano. O criminalista também destaca o que seria uma tentativa do juiz em justificar a ação dos seguranças. “Me parece que em determinado momento o juiz tenta justificar a atitude dos seguranças ao falar dos furtos que os supermercados sofrem”, apontou.
Lozano se refere a esse trecho da decisão: “Conforme se observou nos autos, a vítima era suspeita de praticar, de forma reiterada, subtrações no interior do supermercado, o que já era de conhecimento dos prepostos do supermercado. Não havia qualquer informação a ser obtida até, até porque os acusados já conheciam a vítima e sabiam quem ele era e o que ele já teria feito, reiteradamente, em malefício ao patrimônio do supermercado”.
Ariel de Castro Alves, advogado e conselheiro do Condepe (Conselho Estadial de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana), concorda com a análise de Lozano e aponta falta de sensibilidade do juiz na interpretação da lei. “É lamentável que não tenham sido condenados por crime de tortura. O adolescente estava sob o poder e autoridade dos agressores e a tortura foi utilizada como castigo em razão do furto no mercado. Os acusados deixaram ele nu. Depois foi amordaçado, chicoteado, humilhado e ameaçado. O que mais faltou para ser considerado tortura?”, questiona. “E tudo isso foi filmado. Imagine só se não fosse”.
Na época em que agrediram o adolescente, os dois seguranças trabalhavam para a KRP Valente Zeladoria Patrimonial, que pertence à esposa de um policial militar aposentado, o tenente-coronel aposentado Cláudio Geromim Valente, conforme revelado pela Ponte.
O Ministério Público Estadual vai recorrer da absolvição do crime de tortura. A Ponte não conseguiu contato com Flávio Munhoz Assis, que defende David de Oliveira Fernandes.
De acordo com a GloboNews, o advogado Fermison Guzman Moreira Heredia, defensor do réu Valdir Bispo dos Santos, comemorou a absolvição pelo crime de tortura, mas afirmou que as condenações por lesão corporal, cárcere privado e divulgação de cena de nudez “não merecem prosperar” e que pedirá progressão de pena em fevereiro de 2020.
Naturalização da violência contra gente preta
Luana Vieira, coordenadora da Uneafro, que integra a Coalizão Negra Por Direitos, e moradora da região onde o crime aconteceu, afirma que o caso foi uma barbárie cometida contra um menino negro e pobre. “A tortura é uma violação de direitos humanos, afeta a integridade física, psicológica e mental por estas razões viola o direito do cidadão de sua integridade, de sua liberdade, de sua convivência social , e seu direito a vida com dignidade humana, os direitos desse menino foram totalmente violados”, afirmou.
“Nós, enquanto sociedade civil, não podemos aceitar essa decisão, visto que o genocídio e extermínio da população preta e pobre está sendo cada dia mais legitimado pelo Estado”, pontuou Luana.
De acordo com Leandro Machado de Oliveira, integrante da Rede de Prevenção e Combate ao Genocídio e capoeirista do coletivo Cativeiro, a decisão evidencia o racismo estrutural e naturaliza a violência contra o jovens negros e periféricos. “A gente entende que o sistema de justiça criminal é um aparelho político de um determinado grupo da sociedade. Nosso trabalho é desnaturalizar essas atitudes, essa violência institucionalizada, o racismo estrutural. Isso que aconteceu é mais uma prova que o espancamento de jovens pretos é normal. Para nós esse tipo de prática não cabe. Indigna a absolvição pelo crime de tortura”, avalia.
Para ele, não apenas os seguranças, como o supermercado deveria ser responsabilizado. “Não foi feita justiça. Não só os seguranças devem ser penalizados, o supermercado, que ganha aqui na região, lucra com a população, também teria que ser responsabilizado”, criticou.
O caso teve repercussão internacional e a cobertura da Ponte sofreu censura do YouTube, que removeu o conteúdo do vídeo que mostrava a cena de tortura contra o adolescente, por supostamente “violar as políticas do YouTube sobre nudez ou conteúdo sexual”. Procurado, o Google afirmou que iria analisar o caso, mas não deu qualquer resposta.